No SUS, uma alternativa à “guerra às drogas”

Cresce a compreensão de que a política brasileira para substâncias psicoativas é brutal e desastrosa. Nos CAPS-AD e nas Redes de Atenção Psicossocial há bases para a mudança, diz a assistente social, psicanalista e ativista Fernanda Almeida

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Entrevista a Antonio Martins

O Brasil poderá, um dia, livrar-se da “guerra às drogas”? No início de novembro, um estudo internacional conduzido pelo grupo Harm Reduction Consortium [“Consórcio pela Redução de Danos”] apontou a política do país em relação a substâncias psicoativas como a pior, entre 30 nações analisadas – abaixo de México, Indonésia e Uganda. O relatório apontou dois problemas essenciais na conduta do Estado brasileiro. Sua base é a repressão generalizada – cujo foco não são nem as grandes redes de distribuição, nem os consumidores de classe média, mas comunidades onde o comércio das drogas “ilícitas” é feito. E, por se apoiarem num proibicionismo sem nuances, as políticas não dão apoio aos usuários que de fato necessitam de tratamento.

Mais ou menos à mesma época, Fernanda Almeida, trabalhadora de um CAPS-AD – serviço de saúde mental do SUS – e ativista da Reforma Psiquiátrica, foi convidada a ministrar o primeiro encontro de um curso sobre o assunto e atuar como mediadora dos demais olhares e reflexões de profissionais de campos diversos. Desenvolvido e realizado pelo Sesc-SP e com presença de pesquisadores que são referência no debate sobre o tema, o curso Questão Social das Drogas propôs olhares que, ao invés de partirem da proibição, enxergam contextos sociais, políticos, e práticas de atenção e cuidado. Considerou o vasto sofrimento psíquico demonstrado nos dados de saúde mental no Brasil. Percorreu a história da proibição, o racismo e as mudanças de políticas públicas e medidas jurídicas associadas às drogas, além de estratégias de redução de danos e práticas de cuidado à saúde mental. O curso faz parte de uma série de ações do Sesc-SP em torno da Questão Social das Drogas, como a publicação de textos e vídeos, que podem ser encontrados no endereço sescsp.org.br/questaosocial.

Ao falar a Outra Saúde sobre o curso, Fernanda destacou três aspectos abordados durante os dez diálogos que o compuseram. O primeiro é que já existe no SUS um dos elementos para uma nova política brasileira em relação a psicoativos. “O que muitas pessoas não sabem”, lembra ela, “é que existe uma rede potente e consolidada de atendimento e cuidado para as pessoas. Os CAPS-AD, por exemplo, são a porta de entrada para o cuidado em saúde. A partir daí a pessoa pode acessar toda uma rede socioassistencial de apoio, que inclui educação, moradia e cultura, somadas ao acompanhamento psicossocial”. Este sistema complexo, sabe-se, está sob ataque. O governo Bolsonaro tem desviado recursos crescentes para as chamadas “Comunidades Terapêuticas”, que partem de uma lógica primária baseada em confinamento e abstinência indiscriminada. Mas o Brasil pode mudar, em 2022. E é ótimo saber que já há raízes para uma política nova. Existe base e desejo, por parte dos movimentos sociais, para a construção de uma verdadeira e democrática “Nova Política sobre Drogas”.

Ela precisará, é claro, ir muito além dos CAPS-AD. Deverá enfrentar, em especial, o proibicionismo e a repressão. Estas atitudes, lembra Fernanda, não expressam uma “guerra às drogas” – mas “às pessoas” – os mesmos grupos sociais subalternizados durante 520 anos de colonialidade.

Por fim, tratou-se de um tema que para muitos é tabu: o uso adulto dos psicoativos. Eles nem sempre são um problema de Saúde, lembra a ativista. “A dependência química e a devastação que as drogas produzem, em certos casos, na vida das pessoas, têm muito menos a ver com as substâncias e muito mais com a sociabilidade absolutamente compulsiva e consumista”, afirma ela. Em contrapartida, há o uso moderado e prazeroso. “É preciso que a gente se reconheça como usuários de substâncias psicoativas… todos nós, em algum grau, fazemos o uso de substâncias lícitas ou ilícitas. Elas fazem parte da nossa vida”. Uma sociedade madura precisa estar preparada para levar este fato em conta. Fique, na sequência, com a entrevista completa com Fernanda Almeida.

Um estudo internacional divulgado há poucos dias, e coordenado pela rede Harm Reduction Consortium, avaliou que, entre 30 países, o Brasil é o que tem a pior política em relação às drogas psicoativas. O que levou você, trabalhadora de um CAPS-AD, serviço de saúde mental do SUS e ativista da Reforma Psiquiátrica, a aceitar convite do Sesc-SP para mediar as aulas de um curso, em São Paulo, que se propõe a repensar estas políticas?

Foi uma construção coletiva. Sou grata pela oportunidade de ocupar esse espaço oferecido pelo Sesc-SP. As três unidades (Bom Retiro, Carmo, Parque Dom Pedro II) que produziram esse trabalho tão importante – em conjunto com a Gerência de Estudos e Programas Sociais (Gepros) – estão em territórios em que a circulação de usuários é frequente. Nesse sentido, cumprem uma baita função social.

Buscamos uma abordagem que expresse uma práxis possível, quando estamos diante de pessoas que vivenciam o limite da existência, quando descobrem que o “remédio” transformou-se em “veneno” – ou seja, para aquelas cuja dose excessiva transformou o prazer em martírio. Antonio Lancetti, em um texto que eu considero primoroso defende que “para suportar paixões violentas como essas ou mergulhar na biografia de pessoas silenciadas carcerariamente, além de plasticidade psíquica, os terapeutas de CAPS-AD exercitam uma espécie de atletismo afetivo”.

Infelizmente, temos visto que existe uma devastação de tudo aquilo que representa avanço. O governo federal construiu uma estratégia “ardilosa” de corroer por dentro as estruturas. A pauta da política sobre drogas sempre foi controversa, sempre foi uma arena de disputas. Mas o que temos visto agora é mais que retrocesso, é a corrosão das bases que fundaram a Reforma Psiquiátrica Brasileira. É preciso que a sociedade entenda o prejuízo desse retrocesso. O movimento da reforma psiquiátrica foi um dos movimentos mais importantes e potentes desse país.

No CAPS temos observado uma mudança no padrão de uso das substâncias psicoativas. Para alguns, a insuportabilidade do cotidiano os leva a terem atitudes cada vez mais arriscadas, cada vez mais disruptivas. Há uma piora dos quadros psiquiátricos existentes. A desesperança e as ansiedades se confundem e fazem com que haja uma excessiva patologização das manifestações sintomáticas do mal-estar do nosso tempo. Depressão aparece como manifestação sintomática de um modo de sentir, uma dada melancolização da vida. Ao mesmo tempo, o empobrecimento, a fome. Ou seja, além de todas as questões que envolvem o emaranhado campo Álcool e Drogas, a conjuntura atual traz um impacto muito expressivo. E que a gente ainda não sabe dimensionar o tamanho, o volume e os impactos de tudo isso na vida das pessoas.

No primeiro módulo do curso, vocês debateram políticas de drogas, histórico de seu uso e práticas de cuidado. Um dos diálogos tratou da abordagem adotada na atenção primária à saúde. O que você ressaltaria a respeito?

Qual é a primeira coisa que a maioria das pessoas pensam quando querem ajudar uma pessoa que está fazendo uso abusivo de álcool e outras drogas? Retirar do convívio social, internar. Levar a pessoa para um lugar, de preferência afastado da cidade. Nesse lugar ela não terá acesso às substâncias. A expectativa é que surja uma consciência crítica que não existia antes, uma mobilização interna vai “brotar” a partir do trabalho psicossocial (quando esse existir), e então ela estará pronta para retornar ao convívio social e retomar sua vida. Ou seja, a raiz desse pensamento prega que o “cuidado” para o sujeito passa por afastá-lo das drogas e do convívio.

Esse pensamento pode até ser lógico, mas infelizmente as coisas não são bem assim. Porque quando a pessoa retorna, é comum o uso dos psicoativos de maneira mais intensa e arriscada. Esse tipo de pensamento massifica as formas de uso e homogeneiza o cuidado.

Mas então, o que fazer? Onde encontrar apoio público para o tratamento? Onde buscar um apoio em que a pessoa não precise se afastar de seus vínculos e das suas atividades cotidianas? O que muitas pessoas não sabem é que existe uma rede potente e consolidada de atendimento e cuidado para as pessoas no próprio SUS. Os CAPS-AD, por exemplo, são a porta de entrada para o cuidado em saúde e a partir daí a pessoa pode acessar toda uma rede socioassistencial de apoio.

A histórica luta do movimento antimanicomial e antiproibicionista instituiu no âmbito da política de saúde mental as RAPS – Redes de Apoio Psicossocial. E o que significa isso?

Significa que o cuidado para as pessoas que fazem uso abusivo das substâncias psicoativas deva ser ampliado, ou seja, um trabalho territorial e em rede que articule as várias políticas públicas no território, como por exemplo, o trabalho da assistência social (através do SUAS – Sistema Único de Assistência Social), da educação, da moradia, da cultura, somado ao acompanhamento psicossocial.

Essa compreensão de cuidado territorial em rede se opõe à lógica simplificada da abstinência e do confinamento, pois compreende que é preciso respeitar alguns princípios fundamentais: a autonomia dos sujeitos; a promoção da equidade; o combate aos estigmas; a diversificação das estratégias de cuidado; a redução de danos e, acima de tudo, a compreensão de que tanto os usos quanto o cuidado são singulares.

Certa vez um homem que luta contra a dependência do álcool me disse que os problemas começam com a abstinência, pois quando ele estava entorpecido ele não via os problemas da vida. A sobriedade lhe trouxe a angústia de ter que lidar com o real. Com a necessidade de restabelecer laços e vínculos… ou seja, ter que encarar a vida. Nesse sentido, o trabalho territorial em rede é fundamental, pois pode apoiar essas pessoas em seus projetos de vida a partir do fortalecimento das relações existentes e da construção de novas relações.

É importante as pessoas saberem que existe uma rede potente de trabalhadores nos territórios que executam um trabalho com muita criatividade e que apostam no estabelecimento dos vínculos e emprestam um tanto de afeto e vitalidade para esses sujeitos. Muitas vezes, são as únicas relações que essas pessoas têm. Nós acreditamos que o fortalecimento do vínculo e que o trabalho em rede tem uma potência extraordinária. Isso para mim é atenção primária em saúde. Isso para mim é a potência do SUS.

Nesse mesmo módulo, discutiram-se estratégias para a redução de danos. A ausência delas foi, no estudo do HRC, um dos fatores que mais rebaixou a avaliação do Brasil. Como você vê os esforços de fazer do SUS um espaço para estas políticas? E como estes esforços têm sido afetados pela tentativa de impor uma agenda moral ultraconservadora?

Há uma generalização quanto a compreensão dos males que as drogas causam, materializado na focalização do uso problemático, mas o mesmo tempo, há uma negligência do acolhimento necessário para os sujeitos que de fato precisam, pois as políticas estão cada vez mais centradas na moralização e culpabilização pelo uso e pelos problemas decorrentes.

Os usos podem atender as mais várias necessidades, que vão desde o uso recreativo, até o alívio da dor (entendida num sentido bem amplo). De elixir de cura à mais devastadora das quedas. As drogas ocupam um imaginário e precisam ser localizadas no tempo. O historiador Henrique Carneiro, um autor que precisa ser lido, revela como as drogas ocupam no capitalismo contemporâneo um lugar de destaque no crescimento do mercado.

Foi um debate muito interessante e instigante. Pudemos discutir questões como: O que mata mais, as consequências do consumo ou os resultados da proibição? O Estado existe para fazer a gestão e regulação do “prazer”, das escolhas individuais? Quais foram e quais são os critérios para definir a licitude ou ilicitude das substâncias psicoativas?

Eu sou ciclista. Pedalar em São Paulo é muito perigoso. Posso morrer. Você imagina o que seria se o Estado proibisse o uso de bicicletas em virtude do risco? O que então é razoável? Que haja leis de trânsito, que haja educação e sinalização em vias de acesso para os mais frágeis – ciclistas e pedestres. Ou seja, que haja redução dos riscos. Oras com as drogas não poderia ser assim? Quando a gente começa a refletir mais a fundo sobre a questão das drogas, percebemos que existe uma barreira moral que impede o debate franco sobre o tema.

Com isso, quero dizer que eu entendo a redução de danos como uma ética, mais que como um conjunto de estratégias. É uma ética do cuidado, no qual o usuário está no centro, com todas as suas características, desejos, sonhos, vícios e virtudes. Sujeitos inteiros.

Este tema nos remete à proliferação das chamadas “comunidades terapêuticas”. Custeadas cada vez mais com recursos públicos, são apresentadas como opção “da família” diante da Reforma Psiquiátrica – inclusive no que diz respeito às ações relacionadas a drogas. O curso debateu algo a respeito?

As comunidades terapêuticas cumprem uma função social no contexto atual, semelhante ao desempenhado antes pelos manicômios. Não quero generalizar, tem gente séria fazendo um trabalho importante, mas é pontual. A questão não é “fulanizar”, essa ou aquela comunidade terapêutica. Mas tomar a questão no seu aspecto político. As comunidades terapêuticas estão levando parte significativa dos recursos públicos para saúde psíquica – e mantêm políticas com pouca resolutividade. Os usuários ficam abstinentes quando estão lá, mas não vivenciam a experiência de terem que estabelecer outra relação com as substâncias na vida cotidiana. Não é raro encontrar pessoas que já passaram por diversas internações. Torna-se um ciclo, enxugamos gelo no sol.

Não se trata da falsa polêmica entre ser contra ou a favor das internações ou da abstinência.. As internações, por vezes, são necessárias, a abstinência pode ser uma meta, mas estes não podem ser dispositivos a priori. Com os usuários nós construímos a melhor intervenção, e eles devem se comprometer com essa decisão. Mas é difícil pensar que os sujeitos possam ter autonomia.

O saudoso Antonio Lancetti desenvolve, em um de seus livros, o conceito da contrafissura. O que move o governante, segundo ele, é o afã de se livrar dos usuários e das cenas de uso, assim como o usuário necessita das drogas para se livrar da fissura. São forças que operam na mesma direção. Livrar-se do mal-estar. Ou seja, o tempo necessário para a construção do vínculo com usuários não é respeitado, pois há pressa. E com essa pressa atabalhoada a gente não vai resolver um problema tão sério. A nossa urgência é outra.

Num dos debates mais instigantes do ciclo, falou-se da história do proibicionismo. O que ela ensina aos profissionais de Saúde, especialmente aos que lidam com Saúde Mental?

Pensando exclusivamente nas substâncias, a gente pode pensar numa classificação que são: as lícitas recreacionais, lícitas medicamentosas e as ilícitas. Consolida-se uma base moral e ideológica que impede a sociedade de perceber os interesses por trás da proibição de determinadas substâncias psicoativas – extraídas fundamentalmente da cannabis, coca e papoula. Eles nada têm a ver com a preocupação legítima de proteger os sujeitos, tampouco com a suposta periculosidade atribuída isoladamente a cada uma destas substâncias.

A dependência química e a devastação que as drogas operam na vida dos sujeitos têm muito menos a ver com as substâncias em si e muito mais com as determinações da vida social e com suas trajetórias. O modelo societário, a vida cotidiana, e a forma como nos relacionamos com as coisas e com as pessoas têm maior relação com as adicções. A mesma sociedade que demoniza as “drogas” é a que busca de toda maneira medicalizar qualquer manifestação sintomática do psiquismo. Antonio Escohotado, que escreveu a mais importante obra sobre o tema do proibicionismo, diz que da pele para dentro do indivíduo deveria ser soberano.

Na abertura do curso, você abordou o que chama de “Questão Social das drogas”. O que entende por isso?

É preciso mostrar que são muitas as possibilidades de discutir o tema, mas é preciso construir junto à sociedade uma necessária quebra de paradigmas. Disputar do ponto de vista discursivo e revelar a serviço do que opera a “guerra às drogas”. Revelar que ela nunca foi contra as substâncias, mas sim contra as pessoas.

Nós, os antiprobicionistas, temos discursos muito bem fundamentados e setorizados que explicam a questão, mas por vezes, não comunicam com setores importantes da sociedade. Eu me refiro a uma disputa discursiva e ideológica, pois, o proibicionismo mata mais do que o consumo em si das chamadas drogas ilícitas. Minha impressão é que a chave do debate está em revelar as contradições internas e discursivas que estruturam a lógica proibicionista. Antes inclusive, de defender uma posição, seja ela qual for.

Uma base moral e ideológica impede a sociedade de perceber que a dependência química e a devastação que as drogas, em certas circunstâncias, produzem na vida das pessoas têm muito menos a ver com as substâncias e muito mais com a sociabilidade absolutamente compulsiva e consumista. O modelo societário, a vida cotidiana, a forma como nos relacionamos com as coisas e com as pessoas têm maior relação com as adicções. Estou aqui falando das compulsões de maneira geral. Posso afirmar isso não só pelas pesquisas e estudos que vêm sendo realizados, mas a partir da prática cotidiana com os usuários. É preciso que a gente se reconheça como usuários de substâncias psicoativas… todos nós, em algum grau, fazemos o uso de substâncias lícitas ou ilícitas. Elas fazem parte da nossa vida. 

Voltando ao relatório do HRC, um segundo aspecto muito negativo que ele aponta sobre o Brasil é a repressão – que vitima em especial as periferias, os pobres e os negros. Vocês dedicaram uma das sessões do curso a “História, drogas e racismo”. Como estes fatores afetam o uso de drogas pela população e as ações do Estado?

O que mata mais, as consequências do uso de drogas ou os resultados da proibição? Essa é a pergunta central e foi uma das questões mais importantes do curso. A intersecção entre raça, classe e gênero. Em verdade esse é o ponto transversal de todo o debate. A guerra às drogas no Brasil é um verdadeiro massacre ao povo pobre, preto e periférico. O que acontece no Rio de Janeiro é indecente. A matança que se opera em nome da “guerra as drogas”. A aula do Cristiano Maronna sobre a Questão Jurídica, Criminalização e Políticas de drogas no Brasil foi muito interessante. Apoiado na denúncia sobre a falácia da “epidemia de drogas”, ele mostrou dados alarmantes que expressam a criminalização da pobreza, sobretudo dos negros. Ele chegou a mencionar a importância de um trabalho de resgate da memória e da verdade sobre os resultados nefastos da Guerra às Drogas no Brasil.

Rachel Gouveia, importante intelectual negra, professora e pesquisadora da UFRJ, em sua aula, trabalhou elementos concretos sobre a centralidade do racismo na criminalização dos usuários pretos. Ela também trouxe a importância da não homogeneização do tratamento, tendo como base o referencial em Frantz Fanon; e trabalhou a necessidade de racializar a escuta do sofrimento. Emiliano de Camargo David, na mesma direção, trouxe a importância do sentido do “aquilombamento” como estratégia racializada de escuta terapêutica e cuidado no campo da saúde mental.

Rebeca Lerer e Adriano de Camargo abordaram, no curso, o “Uso adulto de drogas”. Ao contrário da visão proibicionista, o curso parece enxergar o uso de drogas não como algo a ser proibido e criminalizado, mas como um desfrute humano, que pode gerar problemas de saúde ou não. O sistema sanitário atuaria, neste contexto, para evitar ou corrigir as situações em que surgem estes problemas. Como isso poderia se dar, na prática?

O encontro abre uma conversa honesta sobre estigmas e preconceitos associados ao uso de psicoativos na sociedade, abordando políticas e ativismo sobre drogas.

A cocaína e o crack, por exemplo, são as mesmas substâncias. Seus efeitos no organismo são os mesmos segundo Carl Hart. Para ele, dizer que um é mais perigoso que o outro é ridículo. Portanto, quando vemos a devastação que o crack produz na vida das pessoas temos que nos perguntar. Isso é efeito da droga ou existem outras coisas degradantes para as pessoas chegarem a esse ponto? Em geral, pela minha experiência, consigo afirmar que a miséria é mais “feia” que os efeitos das drogas.

Ao mesmo tempo, a condição de vida nas cidades impõe vivências adoecedoras, tais como: desemprego prolongado; intensificação da competitividade; exploração e precarização do trabalho; exigências de desempenho e competitividade (eficiência como modo de vida); exploração das condições de trabalho, violências: raça/cor, classe, gênero, uso abusivo de substâncias psicoativas, insegurança e medo social.

Uma “cultura whatsapiana” se impõe para os encontros e as relações – curto, rápido e autoexplicativo. A velocidade como valor normativo da vida cotidiana produz muito sofrimento – a aceleração traz consequências que alteram e moldam o modo de ser da sociedade, e essa parece ser uma característica central, o impacto dessa sociabilidade nos primeiros 20 anos deste novo século é incalculável. Essas determinações já estavam postas antes do período pandêmico, mas é a partir dele que essa compreensão pode ganhar força.

Uma pesquisa das Nações Unidas aponta que o consumo de SPAs (Substâncias Psicoativas) na pandemia aumentou. Mas eu chamo a atenção para os números. 275 milhões de pessoas usaram e 36 milhões tiveram problemas. Ou seja, 239 milhões de pessoas não tiveram problemas. O neurocientista afro-americano Carl Hart lançou no Brasil, em 2020, um livro muito interessante. Diz ele: “Sou um usuário não apologista de drogas. Usar drogas faz parte da minha busca pela felicidade, e elas funcionam. Sou uma pessoa mais feliz e melhor por causa delas. Também sou cientista e professor de psicologia especializado em neurociência na Universidade Columbia, conhecido por meu trabalho sobre abuso e dependência de drogas. Levei mais de duas décadas para sair do armário quanto ao meu uso pessoal de substâncias. Dito de modo simples, fui um covarde”.

É possível que a onda de retrocessos que o Brasil vive desde o golpe de 2016 esteja se esgotando, e que no próximo ano seja possível pensar sobre a reversão dos retrocessos e a reconstrução do país. Que bases você vê para uma política avançada sobre drogas?

Oxalá você esteja certo! O fato é que agora estamos sob o manto do retrocesso, desde a aprovação da contrarreforma da política de drogas, o Decreto nº 9.761,estamos resistindo. Os movimentos conseguiram barrar o “revogaço” no final do ano passado.

Por fim, o uso de substâncias psicoativas é antes de tudo uma prática social. Pode tornar-se um problema de segurança, pode tornar-se um problema de saúde, mas não é a priori nem um, nem o outro. Tratar a questão nessa polaridade também não auxilia na discussão. No âmbito da sociedade contemporânea é preciso situar suas questões (agravos à saúde e segurança) no campo das expressões da questão social.

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