Quando a ciência curva-se a dinheiro e poder

Cresce a investigação sobre as “determinantes comerciais” que submetem a atividade científica aos interesses de grandes corporações – levando a pesquisa, muitas vezes, a fechar os olhos para o que poderia produzir benefícios públicos

.

A antropóloga e pesquisadora de saúde pública Cecília Tomori lança, num texto publicado na revista Nature, um olhar crítico sobre a mercantilização da atividade científica. Seu alerta não é inédito, mas coloca antigas preocupações em novo patamar. Os cientistas, pensa ela, demoraram muito para perceber “como a ‘ciência’ é usada para desviar a atenção da realidade e impedir (a realização de) uma política eficaz”. Cecília trabalha para compreender melhor esse fenômeno, batizado, entre outros nomes, de “determinantes comerciais”, e que vem ganhando grande espaço na investigação acadêmica, nos últimos anos.

Trata-se, em termos simples, de sequestrar a ciência para fins que interessam ao mundo corporativo. Para ficar em casos célebres recentes, busca-se, por exemplo, silenciar as propostas de proteger da covid pessoas com deficiência ou imuno-comprometidas e trabalhadores que ficaram sobre-expostos a contato público perigoso. Ou se produzem argumentos a favor da “imunidade de rebanho” como combate socialmente aceitável à pandemia. “Vi vários colegas respeitados entrarem nesse debate”, lamenta Cecília. Ela diz que resolveu escrever a respeito durante a COP26, onde vê esse padrão se repetir, com cientistas envolvidos não com a razão, mas com dinheiro e poder.

Os determinantes comerciais não são novidade, claro. Eles têm sido denunciados e documentados desde meados do século XX em todas as áreas econômicas: tabaco, combustíveis fósseis, farmacêutica, alimentos. Sua influência é tão poderosa que os pesquisadores de saúde pública passaram a considerá-la uma área distinta de estudo, com o nome “determinantes comerciais da saúde”. São muitos os exemplos recentes, sustenta a especialista em saúde pública. Ela menciona o Instituto Internacional de Ciências da Vida, de Washington, financiado por empresas líderes nos setores de alimentos e produtos químicos.

Esse instituto, diz Cecília, promove dúvidas sobre a ciência que vincula alimentos ultraprocessados ​ a questões de saúde. Também mobiliza “especialistas” para atribuir a obesidade a “responsabilidade pessoal”, e afastar regulamentações sobre junk food. A mais importante observação da autora, no entanto, talvez seja a que destaca o conflito entre saúde privada versus pública. As ações de determinação comercial durante a pandemia, segundo ela, “ajudaram a mudar a opinião pública sobre quais medidas de saúde pública eram ‘aceitáveis’”, concluindo que a medida era: “quanto menos, melhor”.

Imagem: David Plunkert

Leia Também: