O futuro da Saúde estará no Vale do Silício?

Novos aplicativos da Google, Amazon, Apple e Facebook prometem muito, mas buscam essencialmente capturar os dados de bilhões de pessoas. Para Luiz Vianna Sobrinho, pode ser o caminho para uma medicina da desigualdade

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Em seu livro mais recente, O ocaso da clínica – a Medicina de dados, o cardiologista Luiz Vianna Sobrinho narra a mais recente mudança na tecnologia associada à Saúde. Não se observam nem apenas o corpo e seus dados clínicos, nem exames como os de imagem. “Acompanham-se também os dados financeiros de cada tratamento ou linha de cuidado; os custos; os insumos. Tudo é reduzido a um grande banco de processamento de dados, onde se faz a gestão clínico financeira de cada paciente, de cada grupo de pacientes, de cada cidade”.

Uma reportagem da revista norte-americana Jacobin acrescenta um novo elemento a esta “medicina sem médicos”. O chamado “Vale do Silício” – empresas gigantescas de tecnologia como a Apple, Google, Facebook e Amazon, cuja ação é global – está invadindo este campo, antes dominado pelos planos de saúde, com atuação mais localizada. As corporações desenvolvem aplicativos, mapeamentos e algoritmos para calcular doenças, aglomerações, sintomas. Aliam-se ao governo dos EUA e grandes empresas. Por meio de seu imenso poder, forçam os antigos atores a associações, em que os dados dos pacientes são apenas moeda de troca.

Jacobin dá exemplos. A Alphabet, controladora do Google, faz fortes investimentos em startups e empresas de saúde. A DeepMind, uma de suas empresas de inteligência artificial, usa algoritmos para prever a progressão de doenças e oferecer às clínicas informações que maximizam a ocupação de leitos. Isso só é possível graças à captura, processamento e análise, por inteligência artificial, de uma massa imensa de dados – o que não é problema para a Alphabet. Nos últimos anos, conta a revista, a empresa obteve ainda milhões de registros de dados por meio de parcerias com planos de saúde.

Em outros casos, prossegue a reportagem, as gigantes obtêm dados diretamente junto ao público. Fazem-no alegando “prestar serviços”. Obtêm, de fato, alguns resultados importantes. Pesquisa feita em hospitais de Nova York demonstrou que “o Apple Watch pode detectar mudanças mínimas na variabilidade da frequência cardíaca – um possível sinal de infecção por covid – até sete dias antes de os sintomas ocorrerem”.

A Apple chega a afirmar que o usuário está na condição de “cientista-cidadão”… Mas os passos que as gigantes tecnológicas dão apontam para um objetivo que nada tem a ver com uma relação de igualdade. Montam-se bancos de dados cada vez maiores, por meio dos quais será cada vez mais fácil impor condições a Estados e mesmo empresas privadas menores. Isso se dá, diz Vianna Sobrinho, graças a condições incomparáveis de acesso a inteligência artificial, programas de deep learning e capacidade computacional.

O médico e escritor lamenta. A tecnologia poderia ser instrumento importantíssimo para a Saúde pública: a contenção de pandemias, a identificação de sintomas, a interpretação de exames e a própria gestão de recursos. Mas a tecnologia de código fechado, aliada à medicina como negócio agem para apequenar o paciente, o médico e os sistemas não voltados para o lucro.

Se as condições atuais não forem alteradas, as perspectivas são sombrias, finaliza Vianna Sobrinho: “Essas big techs estão entrando na saúde como estão entrando no processo de vida. De controle da vida saúde no sentido amplo. A Saúde tornou-se um grande mercado de venda de insumos, e isso começa a entrar na área de estética, de desejo, de comportamento de performance do corpo. (…) O problema é como isso vai ser implementado na sociedade. Com que grau de equidade. Provavelmente, da mesma forma como tem sido implementada a tecnologia, principalmente no nosso país: com iniquidade imensa.”

Imagem: Leon Zernitsky

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