Planos de saúde propõem vale-tudo

Projeto “Mundo Novo”, apresentado ao governo pelas empresas, quer mudar as regras para saúde suplementar: fragmentá-la e estimular adesão a planos individuais. Leia também: MEC não quer mais hospitais universitários

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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‘MUNDO NOVO’ É APRESENTADO

Antes da regulamentação dos planos de saúde por lei, em 1998, prevalecia um cenário de pegadinhas das empresas nos consumidores. Havia contratos que estipulavam o tempo de internação quando isso é imprevisível. A maioria limitava bastante a cobertura, excluindo de antemão doenças – como se alguém pudesse adivinhar se vai desenvolver uma enfermidade cardíaca ou pulmonar. Fora situações de flagrante discriminação: tratamentos para portadores de HIV simplesmente não existiam na saúde suplementar… Mas nem naquela época as empresas pleiteavam usar a infraestrutura do SUS –como fazem agora. A informação chegou na sexta: uma carta enviada ao presidente da Câmara Rodrigo Maia e ao governo resume os pontos do projeto ‘Mundo Novo’, a nova e mais radical ofensiva do setor contra as regras que o regulam.

Tanto O Estadão quanto O Globo tiveram acesso à tal ‘carta’. E chamam atenção para a demanda pelo retorno da cobertura fragmentada. Para estimular a adesão aos planos individuais, que hoje representam 20% do mercado, as empresas querem vendê-los em módulos: um primeiro, mais barato, daria direito às consultas; um segundo a especialistas, um terceiro a internações. Mário Scheffer, da USP, destacou para o Estadão: se uma criança sofre de asma e tem o módulo de consultas, não vai poder ser internada numa crise. E Ligia Bahia, da UFRJ, explicitou o contrassenso – econômico, inclusive: “Quando sofre um acidente, o reembolso do seguro ocorre qualquer que seja o outro carro envolvido, caminhão, moto ou outro veículo. A proposta agora apresentada é como se você somente recebesse atendimento se o seu veículo tivesse batido em outro carro.” Esse ponto foi comparado pelo jornal a um ‘pay per view’, com a diferença que ao comprar um jogo de futebol, o único risco que o consumidor sofre é assistir a uma partida ruim ou ver seu time perder. Já com um plano de saúde de baixa qualidade, o risco é de morte…

A sociedade só vai conhecer o projeto na quinta-feira num evento da FenaSaúde, a federação que representa 15 grupos de operadoras de planos, o equivalente a 36% do mercado. Estão previstas palestras do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e do secretário especial da Previdência, Rogério Marinho, além de gente do Judiciário. Marinho, aliás, foi o relator da comissão especial formada no governo Michel Temer, primeira vez que o setor tentou mudar a lei 9.656 e esvaziar o papel da agência reguladora de forma mais explícita. Lígia Formenti, repórter do Estado, contextualiza: daquela vez, as propostas só não emplacaram por resistência de outro tipo de empresas, as administradoras de benefícios, que cresceram justamente com o boom dos planos coletivos (e falsos coletivos). A sociedade, em si, não chegou a se organizar devidamente. 

O fato que mais chamou atenção em notícias da época foi a tentativa de se acabar com a proibição de reajuste por idade para quem tem mais de 60 anos – proposta que volta agora, quase de maneira estratégica para que os parlamentares que embarcarem na iniciativa possam posar de moderados e ‘ceder’ em alguma coisa. Vai ser necessário ser mais atento. Na década de 1990, o faroeste na saúde suplementar só mudou na base de muita pressão, com direito até a uma CPI dos planos no Congresso. Agora, as empresas que patrocinam a reversão dessas conquistas só esperam a conclusão da reforma da Previdência para entrar em campo, tendo como aliados – ao que tudo indica – gente poderosa.

NÃO É SEIS POR MEIA DÚZIA

Construir hospitais universitários está definitivamente fora dos planos do governo federal. Uma proposta da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), em sintonia total com o MEC, prevê que 42 faculdades de medicina contratem centros médicos privados e Santas Casas para garantir a formação dos estudantes. O Ministério estaria disposto a gastar cerca de R$ 100 milhões por ano com isso.  Uma portaria deverá ser publicada até o fim deste ano para disciplinar a liberação do dinheiro. 

A reportagem da Folha compara a quantia que deve caber a cada faculdade – cerca de R$ 2 milhões – com o custo de um hospital universitário construído com recursos de emendas parlamentares no Amapá, que quando estiver em pleno funcionamento, deverá consumir R$ 230 milhões por ano. Só falta lembrar que, até hoje pelo menos, a missão de um hospital universitário é integrar ensino e pesquisa com atenção à saúde. É fazer inovação, servir de modelo, fazer ‘escola’. O quanto essa missão não será abandonada ao se substituir o projeto dos HUs pela compra de espaços em serviços privados?

BOMBA NA J&J

Já falamos muito sobre a batalha legal enfrentada por milhares de pessoas (hoje, são mais de 15 mil) contra a Johnson & Johnson nos EUA: as ações afirmam que o famoso talco da empresa levou ao desenvolvimento de cânceres, devido à presença de amianto na formulação. Ao longo dos processos, foram revelados memorandos internos em que J&J demonstra saber há décadas que eram encontradas pequenas porcentagens da substância em algumas amostras do seu talco – sem, no entanto, alertar consumidores. A OMS não reconhece níveis seguros de exposição à substância, já que, para algumas pessoas, mesmo as menores quantidades são suficientes para desencadear câncer anos depois. Já houve condenações, mas a empresa sempre apela. Diz que não utiliza mais o amianto, proibido em talcos desde os anos 1970. 

Agora, uma bomba: pela primeira vez, órgãos reguladores dos EUA anunciaram que descobriram vestígios de amianto em amostras de talco. Na sexta, a J&J mandou recolher 33 mil unidades do produto. Apesar do recall, mais uma vez a empresa afirmou que não tem amianto nos talcos, e disse que iniciou uma investigação para saber o que houve. Quer “determinar a integridade da amostra testada, bem como a validade dos resultados do teste” e acrescentou que “não podia confirmar se o produto testado era autêntico ou falsificado”, segundo a Reuters. Essa investigação deve durar pelo menos um mês

O talco não é o único produto que levou a empresa para a mira da Justiça. Até agora, medicamentos opioides, dispositivos médicos e o antipsicótico Risperdal também estão rendendo ações. 

BENEFÍCIOS DO ÁLCOOL?

As diretrizes da Austrália sobre o consumo de álcool estão sob revisão e um novo rascunho deve ser publicado no mês que vem. A indústria já está a postos, pressionando para que se leve em conta os “benefícios para a saúde” de beber e para que se considere aumentar o nível de consumo oficialmente considerado de baixo risco. A Alcohol Beverages Australia (ABA) alega que ingerir bebidas alcoólicas pode reduzir o risco de doenças cardíacas, derrame e diabetes, e querem que a revisão leve isso em conta. O problema é que as evidências mais atualizadas mostraram falhas substanciais nas pesquisas que sugerem tais benefícios, explica Peter Miller, professor da Universidade Deakin, no site The Conversation. 

A VEZ DO RUSSO

O biólogo russo Denis Rebrikov detalhou um pouco à Nature sua saga para se tornar o segundo cientista a criar bebês geneticamente modificados, após o controverso chinês He Jiankui. A ideia havia sido anunciada no início do ano. Agora, ele diz que já começou a editar genes de óvulos humanos. Está em contato com cinco casais surdos e espera no futuro editar um gene ligado à surdez em seus bebês. Por enquanto, os genes em que está trabalhando foram doados por mulheres ouvintes. Quando é questionado se a pesquisa clínica com embriões editados deve desacelerar até que sejam finalizados os protocolos internacionais para orientá-la, foi bem direto: “Você está falando sério? Onde você já viu um pesquisador disposto a desacelerar?”

AINDA VIVO

O surto de ebola, ainda que contido, não terminou – e continua sendo uma emergência internacional de saúde pública, segundo alerta da OMS. A doença está agora concentrada em uma área de mineração de ouro em Mandima, no leste da República Democrática do Congo. Na semana passada, foram registrados 15 novos casos, o que é pouco comparado com os quase 130 casos semanais que eram registrados em abril. O problema é que há questões de segurança e acesso em partes de Mandima, inclusive nas minas, e isso dificulta tanto a localização das pessoas infectadas quanto o rastreamento de seus contatos. “Não acreditamos que estamos lidando com uma situação catastrófica, os números são extremamente baixos em comparação com antes, mas não entendemos completamente a dinâmica da transmissão na área da mina”, disse Michael Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da OMS, à Reuters.

BOAS E MÁS NOTÍCIAS

O último relatório global de tuberculose da OMS indica que, no ano passado, houve um recorde no número de pessoas que receberam tratamento, em grande parte devido à melhor detecção e diagnóstico. Em todo o mundo, foram sete milhões de pessoas diagnosticadas e tratadas, contra 6,4 milhões em 2017. Também houve redução no número de mortes por tuberculose: 1,5 milhão morreram no ano passado, e em 2017 havia sido 1,6 milhão. O número de novos casos de tuberculose vem diminuindo constantemente, mas ainda assim dez milhões de pessoas desenvolveram a doença em 2018. Ou seja, foram três milhões sem tratamento. 

SÍFILIS EM ALTA

“No Brasil, a moda é o passado”, escreve Ana Cláudia Guimarães no blog da coluna de Ancelmo Gois. A frase, adequada a várias das notas da newsletter de hoje, faz referência à sífilis. Na semana que vem, informa ela, o Ministério da Saúde vai lançar um boletim que dá conta de um aumento de 32% nos casos notificados da doença em um ano. Em 2017, foram 119.800, já em 2018 o número pulou para 158.051. 

SARAMPO

O Dia D da campanha nacional de vacinação contra o sarampo aconteceu no sábado. De acordo com o Ministério da Saúde, 88% das crianças entre um e dois anos foram imunizadas. No entanto, a Pasta não traz uma parcial sobre a taxa de imunização total das crianças entre seis meses e menores de cinco anos, público-alvo do esforço. A campanha vai até o dia 25 de outubro.

Em novembro, a campanha será voltada para pessoas entre 20 e 29 anos. Reportagem especial da Agência Brasil fala, dentre muitas coisas, sobre os desafios da imunização para adultos. “As maiores dúvidas que recebemos aqui são sobre atualização do calendário de vacinas. Geralmente, esses usuários perderam suas carteiras e não têm noção de seu histórico vacinal”, conta Adriana Desterro, coordenadora de um centro especial de vacinação no município do Rio. Nesses casos, a orientação é tomar as vacinas de novo. 

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