Na pandemia, emerge uma nova Geopolítica da Saúde

De um lado, China e Nova Zelândia: cada caso novo desencadeia testes em massa, pesquisa de contatos, lockdown temporário e contenção do foco. No outro extremo, Brasil, Índia e Paquistão debatem-se em negligência, negacionismo e tragédia

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A QUALQUER MOMENTO

Depois de quase 50 dias sem registrar novos casos, Pequim identificou um novo surto em um dos maiores mercados atacadistas da capital chinesa. Começou com dois homens que tinham ido ao local e testaram positivo na semana passada; desde então, 517 pessoas fizeram testes, dos quais 45 deram positivo. Nenhum dos infectados tinha sintomas. Isso foi mais que suficiente para fechar o mercado, determinar que todos os dez mil funcionários sejam testados nos próximos dias e estabelecer lockdown em 11 bairros do entorno, com monitoramento diário dos moradores. Embora a origem pareça ser o mercado, isso ainda está sob investigação.

Desde a quinta-feira, foram confirmados mais de cem casos relacionados a esse surto, alguns já fora de Pequim. As restrições endureceram. Mais dez bairros entraram na quarentena. Serviços de táxi e circulação de automóveis foram suspensos. Todos os contatos de pessoas infectadas estão proibidos de deixar a cidade. Escolas foram fechadas. Governos de províncias próximas impuseram quarentenas a viajantes vindos de Pequim. Pode soar exagerado, mas foi seqguindo essa mesma cartilha que o país de 1,4 bilhão de habitantes conseguiu controlar sua primeira onda com 83 mil casos e 4,6 mil mortes, números que logo se tornaram baixos diante do sufoco no resto do mundo.

Wu Zunyou, epidemiologista-chefe do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças, afirmou que o problema foi identificado o mais rápido possível e que, se o número de casos não subir muito, o surto pode ser logo contido. É verdade, e só dá para ter essa rapidez quando se consegue, antes de flexibilizar isolamentos, baixar ou zerar o número de novos casos a ponto de conseguir monitorar cada novo pequeno conjunto de infecções.

Não é a primeira vez que novos surtos são detectados em locais onde a covid-19 parecia sob controle, mas, ontem, em coletiva de imprensa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) manifestou preocupação. “Pequim é uma cidade muito grande, conectada, dinâmica“, afirmou Michael Ryan, diretor do programa de emergências da entidade. O diretor-geral Tedros Ghebreyesus, alertou que “mesmo países que demonstraram a capacidade de suprimir a transmissão devem ficar alertas à possibilidade de ressurgimento”.

Falando nisso, a Nova Zelândia confirmou dois novos casos. O país havia comemorado recentemente a erradicação do coronavírus, suspendendo todas as restrições. Ambos os registros estão relacionados a viagens ao Reino Unido. De novo: como são poucas pessoas, as autoridades têm condições de monitorá-las e testar seus contatos.

TRAGÉDIA ANUNCIADA

Há também locais que começam a relaxar suas medidas de isolamento antes de reduzir drasticamente suas mortes e casos diários, como… o Brasil. Um olhar para os Estados Unidos pode ser profético. Lá, mais de 20 estados já registram subidas de suas curvas. Mesmo em Nova Iorque, que reabriu só após a redução sustentada dos números e tem registrado quedas expressivas, o governador Andrew Cuomo estuda voltar a impor medidas mais restritas porque as pessoas estão descumprindo as regras de distanciamento. Há aglomerações em bares, por exemplo. O país inteiro tem mais de 115 mil mortes por covid-19. A Universidade de Washington prevê que, mantidas as reaberturas, haverá 200 mil até outubro.

No Paquistão, o confinamento foi suspenso no dia 9 de maio não porque o coronavírus estivesse contido, mas porque o governo não conseguia mais bancar os efeitos econômicos. Havia 25 mil casos registrados. Um mês depois, são 125 mil (sem falar na subnotificação) e especialistas preveem que esse número chegue a 900 mil até agosto. Hospitais já estão abarrotados, com placas de “cheio” na porta. Profissionais de saúde precisam comprar equipamentos de proteção com o próprio dinheiro, estão ficando doentes e morrendo e, para completar, são também agredidos por familiares que reclamam os corpos de seus parentes.

A OMS incluiu o Paquistão na lista dos dez países onde o vírus mais preocupa, e recomendou a reimposição dos bloqueios. As autoridades rejeitam a possibilidade. “Temos que fazer escolhas políticas difíceis para encontrar um equilíbrio entre vidas e meios de subsistência”, declarou na semana passada o ministro da Saúde Zafar Mirza. A reportagem do New York Times lembra que, no início, o primeiro-ministro Imran Khan dizia que a covid-19 era como uma gripe comum; mais tarde, as autoridades pediram que as pessoas ficassem em casa; depois, rejeitaram a severidade da pandemia de novo. Nas redes sociais, há boatos de que os números estão sendo inflados para o governo conseguir mais dinheiro da comunidade internacional…

Na Índia, a expectativa é de que venham tempos muito, muito difíceis pela frente. Com 332 mil casos conhecidos e 9,5 mil mortes, o país já é o quarto mais atingido pela pandemia, atrás apenas dos EUA, Brasil e Rússia. Este mês, reabriu após um ineficiente lockdown nacional, mas com os casos e mortes subindo. As cidades de Mumbai, Nova Déli, Chennai e Ahmedabad tiveram aumento substancial nas infecções e o governo não sabe ainda o que fazer. Em Déli, prevê-se  que os casos aumentem nada menos que 20 vezes até o fim de julho, chegando a meio milhão, e que só lá serão necessários 150 mil leitos hospitalares. Já há pacientes tendo atendimento negado. 

NOSSA AMÉRICA LATINA

Ontem, o mundo chegou à marca dos oito milhões de casos oficialmente registrados do novo coronavírus. E o ritmo da doença em junho continua acelerada, com cerca de 124 mil novas infecções registradas todos os dias. O diretor-geral da OMS fez um resgate que ajuda a dar a devida proporção a esse número: “Foram necessários mais de dois meses para que os primeiros cem mil casos fossem relatados. Nas últimas duas semanas, mais de cem mil novos casos foram relatados quase todos os dias”, disse Tedros Ghebreyesus ontem.

O Brasil, como sabemos, nas últimas semanas se movimentou rapidamente rumo ao segundo lugar do ranking de infecções e de mortes por covid-19. Estamos com mais de 890 mil casos e 44 mil mortes. Mas de acordo com Michael Ryan, diretor-executivo da OMS, não dá para afirmar que já somos o novo epicentro da pandemia. Para ele, a América Latina “como um todo” está nessa situação. Na última semana, morreram em média 4,3 mil pessoas por dia no planeta por conta da doença; mais de duas mil delas no subcontinente latino-americano.   

Junto conosco, Chile e México merecem destaque, segundo a OMS. E, francamente, a liderança política deste último país também não anima, apesar de ser de esquerda. No domingo, o presidente López Obrador fez um pedido à população mexicana: que não tenha medo de sair de casa. Na segunda, o país atingiu o marco dos 150 mil casos confirmados. Por lá, como aqui, a reabertura do comércio acontece justo no momento em que se está próximo do que os epidemiologistas chamam de pico. 

Já no Chile, que tem 180 mil infectados, o ministro de saúde caiu no fim de semana depois de dias de desgaste: foi denunciado por um consórcio de jornalistas de estar manipulando os números de mortos por covid-19. Divulgava uma cifra à OMS e outra ao público, numa diferença de cinco mil óbitos – bem mais do que os 2,8 mil que divulgava oficialmente o Ministério. No lugar de Jaime Mañalich assumiu  Rafael Araos, que já anunciou que o Chile vai passar a contabilizar como mortes por coronavírus não só os falecidos que fizeram testes do tipo PCR ou em que apareça no atestado de óbito essa causa, mas todas as mortes prováveis

Falando em subnotificação de mortes e manipulação de números, temos sinais contraditórios vindos do Planalto. De um lado, o vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que o governo errou ao mudar de forma abrupta a forma como se divulgam dados sobre a pandemia (mas para ele o “novo” sistema, que omite várias informações importantes para os pesquisadores, é melhor). Já o presidente Jair Bolsonaro é mais… bolsonarista mesmo. Ontem, o chefe do Executivo voltou a questionar, sem nenhuma prova, os números. Disse que “não condizem com a realidade”. Podemos todos concordar com ele, mas pelo motivo inverso: as cifras subestimam a realidade. O mais recente exemplo disso é trazido pela Piauí: para cada dez pessoas que morreram por covid-19 depois de terem sido hospitalizadas, outras oito morreram por Síndrome Respiratória Aguda Grave sem causa determinada, num acumulado de 23 mil casos do tipo. Não que todas as mortes por SRAG sejam, na verdade, causadas por coronavírus, mas parece ser consenso científico que uma boa parte é.

NA COMPLETA CONTRAMÃO

Quando se pensa que nada mais pode espantar quando o assunto é cloroquina e hidroxicloroquina, o governo brasileiro se supera. Ontem, o Ministério da Saúde anunciou que deve editar uma nova orientação sobre o uso das substâncias. Recomendará que sejam receitadas aos primeiros sintomas para grávidas e crianças com comorbidades (obesidade, asma, etc.). 

De novo, coube à secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, fazer o anúncio – embora sua área no Ministério não tenha tradição na discussão de medicamentos e suas doses. De acordo com ela, que ficou famosa por vaiar médicos cubanos, as orientações da pasta seguem pareceres da Sociedade Brasileira de Pediatria. Mas… O Globo mostra que a entidade só orienta o uso dessas drogas se as crianças estiverem participando de algum estudo clínico. 

Como se não bastasse, o anúncio aconteceu no mesmíssimo dia em que a FDA – espécie de Anvisa dos Estados Unidos – revogou a permissão para o uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes de covid-19. A agência afirmou que não é mais razoável acreditar que as drogas possam ser eficazes. Donald Trump reforçou: continuará despejando no Brasil as substâncias que não serão mais ministradas nos cidadãos americanos.

QUANTO CUSTA?

Até agora o remdesivir é o único remédio que apresenta alguma evidência de melhorar o quadro de pacientes com covid-19. Sua performance nem é das mais redentoras – não há cura, e sim uma redução no tempo de internação hospitalar –, mas ainda assim é o que há de mais concreto. Entre sua existência e o acesso da população a ele, porém, um abismo se impõe. A matéria da Repórter Brasil lembra que a fabricante Gilead é conhecida por fazer bom proveito de suas patentes, mesmo que isso inviabilize o tratamento de milhões de pessoas. Foi assim com o truvada (medicamento anti-HIV) nos EUA, e com o sofosbufir (contra a hepatite C), que chegou ao Brasil com um custo de R$ 7 mil por tratamento. 

Quanto ao remdesivir, o custo de fabricação de ampolas para dez dias de tratamento é de menos de US$ 10. Porém, o executivo da Gilead, Andrew Dickinson, calcula que o preço do poderia chegar a US$ 30 mil, e já afirmou que o remédio é uma “oportunidade de negócio para vários anos”… Segundo o Instituto de Revisão Clínica e Econômica, especializado em analisar preços de tratamentos, o mais provável é que o preço do remdesivir seja de US$ 4.460 por tratamento durante a pandemia. Nesse caso, seria necessário R$ 1,1 bilhão para tratar os 52 mil brasileiros que já se hospitalizaram até agora.

Em janeiro, antes de deflagar a pandemia, a OMS havia definido a expansão do acesso a medicamentos em geral como um dos dez desafios para essa década, já que um terço da população mundial não tem esse acesso, como lembra Jorge Bermudez, no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. O problema é antigo e a trava é sempre a mesma: os dilemas entre saúde e comércio. Bermudez salienta que há uma PEC proposta pela Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica para assegurar o acesso a medicamentos como direito humano fundamental; além dela, um projeto de lei também em tramitação estabelece que vacinas, medicamentos, testes, equipamentos de proteção individual, etc. se tornem automaticamente objeto de concessão de licença compulsória durante emergências de saúde pública.

BONS SINAIS

A empŕesa chinesa Sinovac anunciou ontem que sua potencial vacina induziu a produção de anticorpos em mais de 90% dos pacientes que receberam a dose na fase 2 do estudo. Trata-se do mesmo imunizante que vai ser testado em voluntários brasileiros pelo Instituto Butantan. Mas, por enquanto, esses resultados não saíram publicados em nenhum artigo científico.

Mas há uma grande preocupação além da descoberta de uma vacina eficaz, do seu custo, da sua fabricação em massa e da garantia de acesso: é o meio esquecido, mas não extinto, movimento antivacina. Pesquisas recentes mostraram que, nos EUA, só metade das pessoas estão dispostas a tomar a futura espetada, embora o país siga com mais de mil mortes diárias por covid-19. Parte delas não é antivacinação, mas se preocupa com o fato de que a ciência está correndo mais do que o normal e com os riscos que poderiam vir daí. Mas mais de um quarto dos americanos acredita, por exemplo, que a vacina é uma tentativa de Bill Gates implantar um chip neles. Uma ONG chamada Public Good Projects lançou uma campanha para que milhares de voluntários bloqueiem e denunciem informações falsas sobre vacinas.

SUMIU

O pastor Valdemiro Santiago de Oliveira, aliado de Jair Bolsonaro e líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, começou a vender por R$ 1 mil uns feijões ‘milagrosos’ que curariam a covid-19. A bizarrice foi desmentida pelo Ministério da Saúde em seu site, após pedido do Ministério Público Federal. Mas eis que o alerta sumiu, inclusive da lista da página contra fake news da pasta. O MPF quer explicações.

SEM DIÁLISE

O novo coronavírus causa um conjunto de problemas de saúde. Um dos efeitos colaterais é a insuficiência renal aguda. A Sociedade Americana de Nefrologia estima que entre 20% e 40% dos pacientes internados sofram algum comprometimento nos rins. Estamos vendo pacientes que superaram quadros graves da doença saindo do hospital, mas se tornando dependentes de tratamentos de hemodiálise. É nesse contexto que o Ministério da Saúde cortou as verbas para diálise. Entre março e abril, já foram R$ 12 milhões a menos. Há, segundo reportagem da Folha, uma fila de três mil pessoas aguardando vagas para realizar o tratamento.

O corte é um exemplo de gestão acéfala orientada por uma visão fragmentada. Baseia-se em uma portaria editada em 1º de abril que determinou que as transferências de recursos do Ministério para prestadores de serviços (a maior parte das diálises são feitas por clínicas conveniadas ao SUS) deveria se balizar pela média dos gastos nos últimos 12 meses. Antes da pandemia, portanto. O número de 140 mil pacientes renais crônicos tem, infelizmente, muitas chances de aumentar com o avanço da doença. Será preciso direcionar mais recursos para atender a população e, idealmente, montar uma rede própria do SUS para prestar o tratamento.

DUAS COMPLICAÇÕES

E o novo coronavírus pode desencadear o aparecimento de diabetes em pessoas saudáveis, além de causar complicações graves em pacientes que já tinham a doença. O alerta foi feito na sexta-feira por 17 cientistas em uma carta publicada no New England Journal of Medicine. Ligados ao projeto “CoviDiab Registry”, eles chamam afirmaram que “existe uma relação bidirecional” entre as doenças. 

“Por um lado, a diabetes está associada a um risco maior de desenvolver a covid-19 grave. Por outro, foi observada em pacientes com covid-19 uma diabetes desenvolvida recentemente e também complicações metabólicas graves decorrentes de uma versão pré-existente da doença, incluindo a cetoacidose diabética e a hiperglicemia hiperosmolar, que necessitam de doses excepcionalmente altas de insulina”, dizem, defendendo mais pesquisas sobre o assunto.

Na semana passada, circulou a notícia de um transplante de pulmões feito em Chicago, nos EUA. A paciente é uma jovem na casa dos 20 anos, que era saudável antes de contrair a doença e teve os órgãos destruídos pelo coronavírus. O médico que liderou a cirurgia, acostumado a fazer transplantes do gênero, disse ao New York Times que ele pouquíssimas vezes viu danos iguais. A foto de um dos pulmões pode ser conferida no fim da reportagem.

Ontem, o Guardian reforçou a preocupação ao relatar o depoimento de um especialista ao parlamento inglês, que montou uma comitê para entender melhor a doença. Mauro Giacca, do King´s College, informou aos congressistas o que aprendeu fazendo autópsias na Itália em vítimas da covid-19 que passaram entre 30 e 40 dias internadas em UTI:  “O que você encontra nos pulmões de pessoas que ficam com a doença mais de um mês antes de morrer é algo completamente diferente da pneumonia normal, influenza ou vírus SARS”, disse ele. “Você vê trombose maciça. Há uma perturbação completa da arquitetura do pulmão – sob algumas luzes, você nem consegue distinguir que costumava ser um pulmão”. E isso, alertou, é indicativo de que os sobreviventes de internações mais longas podem ter sequelas sérias.

QUASE 1,7 BILHÃO

Uma em cada cinco pessoas no mundo sofrem de alguma vulnerabilidade de saúde que podem agravar o curso da covid-19. Esse contingente de quase 1,7 bilhões tem diabetes e problemas cardíacos e pulmonares pré-existentes. O número é uma estimativa, resultante de um modelo matemático, e foi publicado em artigo ontem no Lancet. Os pesquisadores excluíram do cálculo idosos sem comorbidades e tampouco levaram em conta determinantes de saúde como pobreza e obesidade. O coordenador do estudo, Andrew Clark, da London School of Hygiene, pondera que os resultados podem ajudar governos a priorizar a população que primeiro deve receber uma eventual vacina.   

TRABALHADORES EM RISCO

O Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo está marcando greve geral para o dia 16 de junho. O motivo? A entidade vem identificando um aumento preocupante nos casos de covid-19 nos canteiros de obra na região metropolitana do estado. Um levantamento de meados de maio aponta que 44 empregados do setor e 13 familiares deles já morreram em decorrência do novo coronavírus. E os afastamentos continuam a todo o vapor. 

Tanto Jair Bolsonaro quanto seu adversário político, João Doria (PSDB), editaram decretos em que a construção civil aparece como “atividade essencial” durante a pandemia. Acontece que uma obra é um ambiente propício para o espalhamento do vírus. “Para todo mundo no mesmo horário, o vestiário é insuficiente. Lá tem pra mais de cem pessoas. O trabalho acaba às cinco da tarde e vai todo mundo tomar banho no mesmo horário. De manhã, quando a gente chega, todo mundo toma café junto no refeitório. As pessoas se cruzam, não tem como. Obra é um negócio que você vai fazer um serviço ali, você precisa que vá uma pessoa ou um grupo te ajudar. A gente tá em risco. Tinha que ter umas regras melhores”, opina um carpinteiro entrevistado pela Agência Pública que tinha testado positivo para covid-19. O presidente do Sindicato da categoria no estado defende que, pelo menos, os profissionais sejam testados de maneira contínua – e não só depois do aparecimento dos sintomas, quando já é tarde demais para barrar a transmissão.

Outro setor extremamente problemático, que volta e meia aparece por aqui, é o de produção de proteína animal. Os frigoríficos estão na mira de fiscalizações do Ministério Público do Trabalho, e foram apontados pelo ex-secretário de vigilância em saúde do Ministério, Wanderson Oliveira, como um ambiente propício ao espalhamento do vírus. O Joio e O Trigo chama atenção para o papel dúbio do Jornal Nacional que, com seu quadro das doações das empresas brasileiras, dá margem a uma visão marketeira de companhias que desrespeitam regras trabalhistas e colocam funcionários em risco. Um dos exemplos é a JBS, que foi celebrada por doar o equivalente a 6,5% do seu lucro líquido em 2019 (R$ 6 bilhões) mas continua operando normalmente e só é parada por determinação judicial, como a que aconteceu em 18 de maio depois que 86 trabalhadores de um frigorífico do conglomerado em Santa Catarina ficaram doentes. 

“Os auditores fiscais encontraram aglomerações de trabalhadores em vários setores da produção, sobretudo na sala de corte, onde funcionários trabalhavam ‘ombro a ombro’, muito próximos um do outro. Também havia casos de pessoas com sintomas de covid que não foram afastadas do trabalho e, ainda, funcionários que haviam testado positivo para coronavírus que receberam prescrição de medicamentos para a doença e seguiram trabalhando”, relata a reportagem.

NO BANHEIRO

Um jovem de 15 anos foi detido e transferido para a Fundação Casa, em São Paulo, no início do mês. Já tinha sintomas de covid-19, e teve seu diagnóstico confirmado. Foi isolado, mas não como deveria: passou uma semana trancado em um banheiro desativado de condições precárias, com um colchão e um vaso sanitário. “Eles me deram uma Bíblia pra ler e um quebra-cabeça lá. Eu montei aquele quebra-cabeça umas 50 vezes. Li o Salmo 23, o Salmo 91. O resto do tempo eu passava chorando”, diz ele, citado pela colunista da Folha Monica Bergamo. A Denfesoria Pública ressalta que ele nem deveria estar preso, pois seu perfil possibilitaria medida em meio aberto. A Fundação afirma que o caso vai ser investigado.

DESPROTEGIDOS

As denúncias de violência contra idosos mais do que quintuplicaram entre março e maio: os casos passaram de três para 17 mil, segundo levantamento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Com o isolamento, eles acabam mais expostos aos familiares, que costumam ser os principais agressores.

AINDA SOBRE AS INVASÕES

O PSOL solicitou que a Justiça obrigue Jair Bolsonaro a tirar do ar o vídeo publicado na última quinta-feira em que ele incentiva seus apoiadores a invadirem hospitais públicos durante a pandemia para filmar a ocupação de leitos. O partido também quer que o presidente se retrate. A ação civil pública aponta que há “incitação criminosa” da parte de Bolsonaro.  
E o bolsonarista Mário Frias, cotado para assumir a Secretaria de Cultura desde a saída de Regina Duarte, resolveu reaparecer na mídia pegando carona justamente nessa ideia. “Foi só o Pres. Bolsonaro pedir ao povo para filmar que os hospitais se esvaziaram. Filma mais meu povo”, escreveu nas redes sociais.

O grupo de seis deputados estaduais do Espírito Santo que seguiu a orientação de Jair Bolsonaro e invadiu um hospital na sexta-feira está no alvo da Procuradoria-Geral do estado, que enviou ao Ministério Público uma notícia-crime contra Capitão Assumção (Patriota), Carlos Von (Patriota), Danilo Bahiense (PSL), Lorenzo Pazolini (Republicanos), Torino Marques (PSL) e Vandinho Leite (PSDB).

Em São Paulo, o governador João Doria prometeu punir, no futuro, quem tentar invadir hospitais – o que já aconteceu, no último dia 4. “Se houver qualquer outra tentativa de invasão de hospitais, sejam de campanha ou de qualquer outra natureza, a segurança pública saberá agir. E também faremos a criminalização desses invasores, parlamentares ou não”, disse ontem.

E o procurador-geral de Justiça de São Paulo criou uma saia justa para o PGR Augusto Aras. Como dissemos, Aras enviou ontem ofícios a todos os MPs estaduais solicitando investigações sobre invasões a hospitais (sem citar a participação de Bolsonaro nessa incitação). Para Mário Luiz Sarrubo, a movimentação é ‘muito estranha’. Isso porque o MP de São Paulo já tinha aberto investigação sobre o tema e, segundo ele, não cabe ao Ministério Público Federal requisitar ou solicitar esse tipo de investigação

ENQUANTO ISSO

Sara Winter tanto fez, que conseguiu ser presa ontem, numa operação policial que envolveu mais cinco mandados de prisão. A decisão foi do ministro do STF Alexandre de Moraes, no inquérito que investiga os protestos antidemocráticos. O pedido foi feito pelo Ministério Público Federal na sexta-feira, a partir de indícios de que o grupo liderado por ela (os “300 do Brasil”, que passam longe de 300) organiza e capta verba para ações que se enquadram na Lei de Segurança Nacional. Em depoimento, Sara afirmou que o grupo não pede a intervenção militar e que o ato realizado com tochas e máscaras – remetendo aos da Ku Klux Klan –, no dia 30 de maio, foi baseado simplesmente em uma passagem da Bíblia. E ainda negou envolvimento no ato que disparou fogos contra o Supremo. Sua defesa, é claro, diz que se trata de uma prisão política. Cerca de 20 pessoas se reuniram em frente à Superintendência da Polícia Federal, em Brasília, para pedir sua liberdade.

Junto com a “prisão poltica” de Sara Winter, vem aí o “julgamento político” de Jair Bolsonaro. Depois que o TSE iniciou a análise de uma ação que pede a cassação de sua chapa, o presidente disse ontem que as Forças Armadas não aceitarão esse julgamento. Usando expressões do ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, Bolsonaro disse que a hipótese de anulação de sua vitória eleitoral é “inadmissível” e significaria “esticar a corda”. E também negou a possibilidade de os militares darem um golpe.

Os militares, por sinal, estão perdendo apoio nas redes sociais na medida em que se associam à radicalização (sem fim?) do governo Bolsonaro. A informação é do Valor, a partir de uma pesquisa feita pela Quaest no Twitter.

E o ministro da Educação Abraham Weintraub deve mesmo ser o próximo a deixar o governo, depois de declarações indiretas contra ministros do Supremo dadas no domingo, na manifestação que aconteceu à revelia da lei na Esplanada interditada. No STF, já há maioria para que continue investigado no inquérito das fake news.

UMA BOA NOTÍCIA

Em 22 de maio, o Supremo Tribunal Federal publicou a ata do julgamento em que decidiu pela inconstitucionalidade de uma proibição há muito praticada no Brasil: a de que que homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses doem sangue. Agora, o Ministério da Saúde começa a orientar gestores do SUS a organizarem seus hemocentros para que cumpram imediatamente a decisão da Corte. Finalmente.

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