Os problemas da decisão da Anvisa

Farmácias poderão vendê-la, mas plantio está vetado, inclusive para fins científicos: Brasil precisará importar, o que pode encarecer os remédios. Leia também: relatório aponta violações em 40 hospitais psiquiátricos brasileiros

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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OS PROBLEMAS DA DECISÃO

“O acesso vai ficar mais fácil, mas para quem?”. O questionamento é feito por Emilio Figueiredo, advogado da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, e resume o sentimento de muita gente diante da decisão tomada pela diretoria da Anvisa ontem. Os diretores da agência reguladora chegaram a um consenso e decidiram aprovar a regulamentação da fabricação e venda de medicamentos à base de Cannabis em farmácias no país. Mas barraram a regulamentação do plantio para fins científicos e medicinais. A escolha inaugura uma cadeia de descompassos.

Do ponto de vista econômico, significa que o Brasil optou por ficar dependente de importações, já que vedado o plantio, as empresas terão de comprar lá fora os insumos necessários para produzir os medicamentos. “Vamos ter que importar uma substância que nós poderíamos produzir aqui, de fácil produção”, critica o presidente da comissão especial que discute o assunto na Câmara, deputado Paulo Teixeira (PT-SP). 

Ainda na seara econômica, há um debate importante sobre o acesso. A própria Anvisa divulga que, aproximadamente, 13 milhões de pessoas são beneficiárias em potencial dos medicamentos à base de Cannabis. Acontece que não necessariamente todas elas têm dinheiro para comprar esses produtos – e isso sempre foi um entrave. Até agora, a importação dos remédios já era permitida para a pessoa física, desde que feita com autorização da agência reguladora. Mas como isso custa milhares de reais todo mês, associações de pacientes já entravam na Justiça para pedir autorização para o autocultivo. E, normalmente, conseguiam. “Hoje, enquanto a dose mensal da única organização autorizada a plantar maconha no país custa cerca de R$ 400, o produto vendido em farmácias tem um preço sete vezes maior”, compara Emilio Figueiredo.

Argumenta-se que a autorização para a importação por empresas tende a ter um efeito positivo nos preços. “Com a permissão da venda do remédio em farmácia, o preço do medicamento vai cair, pois as pessoas não vão precisar mais importar individualmente. Uma coisa é você trazer o produto para a Dona Maria. Outra coisa é você trazer para três mil Marias. Então, a compra do produto em quantidade maior deve baratear o custo na origem e aqui. E vai ter concorrência: a farmácia A contra a farmácia B. A tendência é reduzir custos”, afirmou Willian Dib, diretor-presidente da Anvisa, em entrevista à BBC Brasil. Figueiredo discorda: “A indústria farmacêutica tem um histórico de busca excessiva pelo lucro e não uma função social. A única solução que teria para equilibrar essa situação seria realmente uma produção nacional através de laboratórios públicos, onde se tiraria o lucro como objetivo”, que concluiu em outra entrevista: “Mesmo com mais opções, vai continuar a ser um produto muito caro e inacessível para a maioria da população”. Parece ser verdade se olhamos para o exemplo do Mevatyl, único produto à base de Cannabis registrado e vendido no Brasil. Indicado para espasmos musculares em quem tem esclerose múltipla, ele é fabricado por uma empresa do Reino Unido e a dose mensal tem um custo médio bem salgado para o consumidor brasileiro: R$ 2,8 mil. 

O problema do preço pode ser resolvido do ponto de vista do cidadão e repassado para o SUS, já que como vai existir registro, em breve os medicamentos poderão ser incorporados ao Sistema Único. O Ministério da Saúde poderia ter de comprar e distribuir os caros produtos, como é feito em vários outros casos. Mas a solução que barateia o custo para todos, com pesquisa e produção nacional, parece ser, de longe, a melhor.

Willian Dib foi o único favorável à regulamentação do plantio. Para ele, não regulamentar foi uma “oportunidade perdida” – mas não pelos motivos que você imagina. Sua linha de raciocínio é a seguinte: hoje, sem regulamentação, cada juiz vai dando autorização para famílias e cooperativas plantarem maconha para fins terapêuticos. No total, 51 pedidos do tipo já foram deferidos. Com o sinal verde para a comercialização, esses medicamentos ficarão mais conhecidos, portanto, na opinião de Dib, haverá ainda mais judicialização pelo plantio. “Se a gente regulamentasse o plantio, a Justiça poderia cassar essas autorizações individuais e para associações. A Justiça primeiro não vai cassar esse direito de ninguém, porque não está regulamentado. Vai ter mais médicos receitando. Então, não vai ficar igual, as ações só podem crescer. Na teoria, é isso que vai acontecer”, disse à BBC, completando: “Pode chegar a um momento de total descontrole social, não só do aspecto quantitativo e qualitativo e de segurança.”

De sua parte, Emilio Figueiredo, que atuou em 26 das 51 ações que obtiveram permissão judicial para plantio, sinaliza o caminho que os pacientes e suas famílias devem seguir: “O direito fundamental à saúde destas pessoas continuará a ser violado. Vamos fazer uma tsunami de ações judiciais para fixar no país o reconhecimento do cultivo como acesso a ferramenta terapêutica para graves moléstias.” E o presidente da comissão sobre Cannabis na Câmara também promete reação: “Essa regulamentação exclui as cooperativas, exclui também o autoplantio. Achei muito limitada e essa comissão terá o condão de ampliá-la”, disse Paulo Teixeira ao Brasil de Fato.

Dib lembra que a própria Anvisa pode voltar a discutir o plantio, no futuro. Mas à BBC ele admitiu que “o governo Bolsonaro assumiu e, como eles são conservadores, não querem discutir em hipótese nenhuma a questão do plantio”. Também por essa lógica, a própria autorização dada ontem pela Anvisa para a fabricação e comercialização pode ser revista, caso os humores do bolsonarismo mudem (o contra-almirante Antonio Barra Torres votou a favor). Em 2020, o governo vai indicar dois diretores para a agência, obtendo maioria. O advogado Thiago Campos, do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), explicou ao Outra Saúde que a resolução é um ato administrativo que “pode ser revogado por ato de mesma hierarquia, desde que se observe os critérios regimentais do órgão que o editou e se preserve o direito adquirido”. 

O Instrumento Regulatório 2.4.1 entra em vigor em 90 dias a partir da publicação da decisão da diretoria da Anvisa no Diário Oficial e será revista pela própria agência daqui a três anos, a fim de avaliar os progressos de pesquisas sobre o tema. 

SOBRE PARAISÓPOLIS

Vão aparecendo mais detalhes sobre a ação policial que matou nove pessoas em um baile funk em Paraisópolis. Como este: um soldado do Corpo de Bombeiros cancelou o único pedido de socorro feito ao Samu, dizendo que a PM já havia socorrido as vítimas. Segundo o jornal SP1, da Globo, uma jovem ligou às 4h18 dizendo que ela e um amigo haviam sido agredidos por policiais, que uma bomba havia lhe ferido as pernas e estourado o olho do amigo. Ela relatou ainda violência sexual e disse que havia outras vítimas. A secretaria de saúde confirmou que encaminhou uma ambulância ao local, mas às 4h47 veio o cancelamento.

Com base em visitas e informações do IML e em apurações que realizou no local das mortes, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) de São Paulo afirma que sete pessoas morreram lá, e as outras duas no hospital. E afirmou que a PM não poderia ter retirado os corpos porque, é claro, isso altera a cena do crime.

Acontece que se trata de uma estratégia já bem conhecida por quem entende de letalidade policial. O Intercept publicou ontem uma entrevista com Levi Miranda, perito-assistente da Defensoria Pública do Rio que morreu no mês passado. Ele disse: “Tanto a Polícia Militar quanto a Civil, quando matam alguém em um ‘confronto’, eles retiram os corpos sob alegação de prestar socorro. Então empilham os corpos nas viaturas e levam para o hospital, que recebe os cadáveres, faz boletins de atendimento e colocam que os corpos deram entrada como cadáveres. Eu chamo isso de ‘desfazimento doloso’ do local do crime. Vítimas de lesões graves, como projéteis de armas de fogo, têm que ser socorridas no local em que foram feridas, estabilizadas e, então, levadas em uma UTI móvel ao hospital. A Polícia Militar ‘socorre’ em uma pretensa assistência humanitária, mas é puro desfazimento de local”.

RECEITA DO SUCESSO

IFood, Rappi e Uber Eats são os três apps de entrega de comida com mais downloads, cada um tendo mais de 1,5 milhão de usuários. A crise econômica não abala o setor. Pelo contrário: só o IFood atingiu a marca de 17,4 milhões de pedidos em março deste ano, contra 10,8 milhões seis meses antes. A reportagem de Guilherme Zocchio, n’O Joio e o Trigo, explica a receita do sucesso: o marketing agressivo e a exploração da mão de obra dos entregadores – com jornadas que por vezes ultrapassam as 12 horas diárias – estão na lista. Mas também as mudanças em hábitos alimentares. E, nisso, a solidão parece ter papel fundamental. O jornalista conversou com dez pessoas que usam apps com muita frequência, e todos disseram que morar sozinhos os faz deixar a cozinha de lado, porque é trabalhoso e não muito prazeroso cozinhar para si. Eles também relatam que fazem as refeições sozinhos.

Não é coincidência: o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, preconiza que tanto a volta ao fogão como sentar-se a mesa com outras pessoas para comer são fatores que favorecem uma alimentação mais saudável. Mas a vida empurra pra outro lado… “O tempo que gastaria para preparar minha comida posso usar para outras coisas. Tempo de espera é um tempo de produção perdido”, diz Alessandro Barnabé Ferreira, doutorando em literatura da USP, que não tem com quem se sentar à mesa e usa o tempo de cozinhar e lavar a louça para resolver pendências da pesquisa.

O PIOR ANO DA PIOR DÉCADA

A Organização Meteorológica Mundial (OMM), ligada à ONU, apresentou ontem seu relatório anual sobre o estado do clima. A conclusão é que essa é “uma década de calor global excepcional, perda de gelo e recorde no aumento do nível do mar, impulsionados pelos gases do efeito estufa expelidos por atividades humanas”, e que as temperaturas médias do período quase certamente serão as mais altas já registradas. Este ano já é apontado como o segundo ou terceiro mais quente desde 1850, quando começou a haver registros confiáveis. Em 2019, a temperatura média esteve aproximadamente 1,1ºC acima da registrada no período pré-industrial. Segundo Petteri Taalas, secretário-geral da OMM, “estamos nos dirigindo agora a um aumento da temperatura de mais de 3°C até o final do século

E a OMS também lançou mais um relatório sobre os riscos da crise climática para a saúde. O grande problema, aponta, é que, embora os países até demonstrem preocupação e estabeleçam planos, só 38% reservam dinheiro para implementar parcialmente esses planos, e menos de 10% canalizam recursos para implementá-los completamente.

MAIS UMA VEZ

Um relatório contendo o resultado de inspeções feitas em 40 hospitais psiquiátricos de 17 estados nas cinco regiões do país (e que representam um terço da rede), em dezembro do ano passado, acaba de ser lançado. E aponta irregularidades e violação de direitos em todas as instituições: há tortura, violência física – inclusive sexual –, trabalho dos pacientes em atividades rotineiras dos hospitais. O documento foi produzido pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Conselho Nacional do Ministério Público, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Segundo a procuradora do MPT Carolina Mercante, todas as unidades inspecionadas são reincidentes, e algumas já têm até ações judiciais nos ministérios públicos estaduais.

NOVOS SERVIÇOS

Ontem, Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, o Ministério da Saúde anunciou a habilitação de 66 novos serviços de odontologia e ortopedia com atendimento especializado a pessoas com deficiência. Vão ser destinados cerca de R$ 70 milhões por ano para os 20 Centros Especializados em Reabilitação, oito Centros Especializados para Pacientes com Doenças Raras, sete Oficinas Ortopédicas e 31 Centros Odontológicos. Segundo a Pasta, a maior parte desses pedidos de habilitação estava pendente desde o ano passado. Também foram lançados dois guias com orientações específicas a profissionais de saúde.

LANÇAMENTO

Hoje, mais tarde, acontece o lançamento do Relatório Direitos Humanos no Brasil 2019. A 20ª edição do documento coincide com os 20 anos da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, e por isso o relatório ganhou uma edição especial. A primeira parte faz um balanço dos direitos humanos sobre questões agrária e urbana, trabalho e liberdade de manifestação no período de 2000 a 2019. Já a segunda metade analisa os direitos humanos no governo Jair Bolsonaro. São 23 artigos sobre direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.  O SUS não ficou de fora. Análise feita por José Alexandre Weiller, presidente da Associação Paulista de Saúde Pública, trata dos principais problemas da atual gestão, indo desde a saúde indígena até o Médicos pelo Brasil, criticado por criar uma agência e por pensar de forma desarticulada a fixação de profissionais, apostando só em salários para prover o país de médicos. Nos cálculos de Weiller, em quatro anos, o pagamento dos médicos contratados pelo programa representará, aproximadamente, 4% do total do financiamento em saúde. O relatório será lançado hoje às 18h, no SESC Bom Retiro, em São Paulo.

AGENDA

A Câmara pode votar hoje o novo marco legal do saneamento básico – que, como tempos visto aqui na news, põe o saneamento diretamente no caminho da privatização.

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