Os números que Damares tenta esconder

Brasil tem 37% dos feminicídios na América Latina. Em 7 anos, SUS atendeu 1, 2 milhão de vítimas. Onda cresce principalmente contra negras. Mas ministra quer “salinhas cor de rosa”. Leia também: desvendada reação à vacina anti-HPV

Reprodução: Twitter Damares Alves
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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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SHOW DIANTE DE UM PROBLEMA SÉRIO

Coletiva de imprensa de mentira e “salinhas cor de rosa”: foi entre uma mal-ajambrada jogada de marketing e a reiteração de estereótipos de gênero que o governo federal lançou ontem sua campanha de prevenção da violência contra a mulher. No centro dos acontecimentos, a ministra Damares Alves. No primeiro ato, ela convocou jornalistas e ficou em silêncio enquanto os profissionais lhe faziam perguntas. Depois, explicou: “Eu fiquei em silêncio para que vocês sintam como é difícil uma mulher ficar em silêncio.” No segundo ato, que teve como cenário o Palácio do Planalto, e contou com a participação do presidente Jair Bolsonaro, que já classificou a categorização de feminicídio como “mimimi”, a ministra deu, finalmente, detalhes da campanha. De acordo com ela, a partir de janeiro todas a delegacias do país terão uma sala de atendimento especializado para mulheres – “nem que seja uma salinha pequenininha”. “Detalhe: eu vou pintar as salinhas de cor de rosa. Yes!”, comemorou em inglês. 

A campanha publicitária do governo lançada ontem custou R$ 11 milhões. A peça é estrelada pela dupla sertaneja Simone e Simaria e será veiculada nas emissoras de TV, rádio e redes sociais. O propósito é incentivar as mulheres a não se calarem em caso de agressões, denunciando por meio do número 180.

Com muito mais sobriedade e abundância de informações estatísticas, foi também lançada ontem, no Rio, a nova plataforma do Instituto Igarapé. Chama-se EVA (Evidências sobre Violências e Alternativas para Mulheres e Meninas) e pretende ser um banco de dados sobre violência contra as mulheres não só no Brasil, mas também no México e na Colômbia. Juntos, os três países concentram 65% dos feminicídios da América Latina, considerados os números absolutos. O Brasil concentra 37% desses assassinatos. 

De acordo com o think tank, ao menos 1,2 milhão de mulheres foram atendidas no sistema de saúde brasileiro vítimas de violência entre 2010 e 2017. E o agressor é, em 90% dos casos, uma pessoa próxima da vítima — 36% das vezes, o próprio parceiro. Nesse mesmo período, a notificação de violência contra mulheres negras aumentou impressionantes 409%. No caso das mulheres brancas, o aumento foi de 297%. E as mulheres são a maioria das vítimas de todos os tipos de violência: física (73%), patrimonial (78%), psicológica (83%) e sexual (88%). Em 2017, a física foi a principal forma de violência registrada no sistema de saúde contra mulheres, com 59% das ocorrências, seguida da psicológica (26%), sexual (14%) e patrimonial (1%).

O Instituto Igarapé denunciou também a falta de dados oficiais em alguns estados brasileiros. Piauí e Goiás, de acordo com a entidade, não disponibilizam qualquer informação, seja sobre notificações de atendimentos de saúde às vítimas da violência, seja das ocorrências registradas nas secretarias de Segurança Pública. Já o Amazonas enviou dados apenas da capital, Manaus. Os dados sobre etnia, por exemplo, foram liberados por apenas quatro estados.

Ontem foi Dia Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres e entramos no período de 16 dias de ativismo contra a violência de gênero, uma campanha internacional que se encerra em 10 de dezembro. Os últimos dados da ONU sobre isso são péssimos: um terço de todas as mulheres e meninas do mundo sofrem alguma violência física ou sexual durante a vida; metade das mulheres assassinadas foram mortas por seus parceiros ou outros familiares; a violência contra as mulheres é uma causa comum de morte e gera mais problemas de saúde do que acidentes de trânsito e malária combinados.

PRIVATIZANDO TUDO

Hoje, o governo deve apresentar o projeto de lei de “Responsabilidade Previdenciária” ao Congresso Nacional. E um dos pontos dessa proposta é privatizar a gestão dos chamados benefícios de risco, como auxílio-doença e acidente. A ideia é que uma seguradora privada receba as contribuições do funcionalismo público da União, estados e municípios e administre esses benefícios – como no DPVAT, criticado pelo presidente… Segundo a equipe econômica do governo, a privatização atende à demanda de municípios pequenos, cujos regimes são menos preparados para riscos, como um acidente em larga escala. No entanto, para a União, que tem cerca de 630 mil servidores ativos no Executivo, a medida não deve ser vantajosa, na avaliação da própria equipe econômica. Vai entender.

Não é a primeira vez que Paulo Guedes tenta privatizar a gestão desses auxílios. Em 2019, o ministro da Economia preparou um projeto para entregar a gestão do auxílio-doença, auxílio-acidente e salário-maternidade dos trabalhadores da iniciativa privada para uma empresa, retirando a gestão do INSS. A ideia gerou forte resistência no Congresso. De acordo com a Folha, parlamentares temem prejudicar os trabalhadores ao deixar as perícias sob responsabilidade de uma empresa privada. 

O LADO B DA TRANSPARÊNCIA

Há décadas, quando estudos começaram a mostrar os malefícios do tabagismo – inclusive o passivo – para a saúde, a indústria do cigarro percebeu rapidamente que as conclusões seriam usados para a formulação de políticas públicas de redução do fumo. Então, exigiu acesso aos dados brutos das pesquisas. O objetivo era contratar cientistas, digamos, pouco éticos, para massageá-los e fabricar dúvidas sobre os resultados. “O Big Tobacco transformou a transparência, um importante princípio científico, em uma arma“, resume o artigo dos pesquisadores David Michaels e Bernard Goldstein, este último ex-funcionário da EPA, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA. Foi a primeira indústria a fazê-lo, mas não a única: outras empresas vêm conseguindo pressionar para que, naquele país, o governo não possa se basear em pesquisas a menos que praticamente tudo o que os cientistas tenham usado nas descobertas seja fornecido e publicado no site da EPA.

E agora elas estão prestes a conseguir uma vitória abrangente. O diretor da agência, Andrew Wheeler, deve emitir uma regulamentação que vai tornar isso uma política nacional. A própria EPA reconheceu que a restrição diminuiria drasticamente o número de estudos nos quais a agência confiaria em regulamentos futuros. “Certamente, os apelos à transparência e à reprodutibilidade parecem razoáveis, mas não é disso que se trata a exposição de estudos mal conduzidos. (…) Se esse regulamento for promulgado, os estudos em humanos só poderão ser usados ​​se os pesquisadores entregarem dados confidenciais (incluindo informações de identificação pessoal, segredos comerciais e informações comerciais e financeiras) que, em muitos casos, haviam prometido que nunca divulgariam”, diz o texto.

SEM DEMORA

O que fazer diante da crença de pais de que as vacinas provocaram danos em seus filhos? A pergunta não é teórica: aconteceu no Acre, em 2014. Naquele ano, Lene Correia procurou o Ministério Público para denunciar que sua filha de 16 anos, então saudável, começou a apresentar convulsões e dificuldades de locomoção após ser imunizada contra o HPV. Seguiram-se outros casos. No início de 2019, finalmente, o Ministério da Saúde tomou providências. Pediu que o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP investigasse o assunto. Os pesquisadores olharam para 74 casos de jovens com sintomas como febre, dor de cabeça, dores nas pernas, desmaios e convulsões. Selecionaram 16 jovens que apresentavam os piores sintomas, e conseguiram fazer todos os testes em 12 deles. Depois de ficarem internados durante 15 dias no HC, os adolescentes fizeram exames laboratoriais, de imagem, tiveram sua atividade cerebral monitorada e foram acompanhados. A conclusão dos médicos é que os sintomas apresentados pelos jovens não têm nenhuma relação biológica com a vacina – mas foram engatilhados pelo medo dela. Trata-se de um surto de doença psicogênica associada a estresse emocional. 

“Os casos do Acre são exemplos de que não se pode sentar em cima de problemas sensíveis de saúde pública, como as queixas sobre eventuais efeitos adversos de vacinas. O que a USP investigou a fundo agora deveria ter sido feito em 2014, quando surgiram os primeiros relatos. Sem conseguir um diagnóstico, as famílias assumiram que os sintomas vinham de sequelas neurológicas causadas pela vacina. É compreensível. O que você pensaria se sua filha de 16 anos, até então saudável, começasse a apresentar convulsões, ou se tornasse totalmente dependente, incapaz de se locomover, após ser vacinada contra o HPV, como ocorreu com a filha de Lene Correia, a primeira mãe a procurar o Ministério Público? Em vez de encontrar apoio, escuta e diagnóstico correto no sistema de saúde, essas famílias foram hostilizadas, desacreditadas por gestores e profissionais de saúde despreparados. Sério que é assim que o país pretende combater as fake news em saúde?”, questiona Claudia Collucci, em sua coluna na Folha.

MÊ DÊ MOTIVO

Mais da metade das pessoas infectadas com HIV no mundo são mulheres cisgênero, mas elas ficaram de fora dos ensaios clínicos sobre a profilaxia de pré-exposição, a famosa PrEP. Por quê?, pergunta Oni Blackstock, do departamento de saúde de Nova Iorque, no Stat. De acordo com ela, as mulheres, especialmente jovens, são mais propensas à infecção do que os homens por vários fatores, mas “as mulheres ainda não têm acesso equitativo à prevenção e tratamento do HIV, nem oportunidades equitativas para participar de pesquisas sobre o HIV. No caso da PrEP, a farmacêutica Gilead, que produz o Descovy (uma terapia de PrEP) alegou recentemente que sairia muito caro incluir mulheres nas pesquisas sobre a droga… Segundo Blackstock, nos EUA o uso de PrEP entre homens que fazem sexo com homens cresceu aproximadamente 500% desde 2014, enquanto seu uso entre mulheres cisgêneros é insignificante.

UMA SEGUNDA MORTE

O modelo dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), defendido até a morte pela missionária Dorothy Stang, se baseia na criação de assentamentos para que famílias pobres possam viver e trabalhar em terras na Amazônia, desde que não destruam a floresta (há uma área de reserva legal em cada assentamento). Nos anos seguintes ao assassinato de Dorothy, foram criados 111 PDS na região, numa área de 3,4 milhões de hectares. Junto com outras medidas da então ministra do Meio Ambiente Marina Silva – como a demarcação de cinco novas unidades de conservação e a criação de sistemas de alerta de desmatamento, os PDS ajudaram a diminuir as taxas de desmatamento na Amazônia em 72% até 2018.

Só que a resistência dos PDS em relação aos avanços de grileiros começou a ruir em 2017, quando um bando de 200 pessoas invadiu a reserva legal do assentamento Virola-Jatobá. E esse pode ser considerado, segundo a longa matéria de Silvia Lisboa publicada no Intercept, o começo da segunda morte de Stang. Nos últimos dois anos, grileiros e madeireiros vêm ameaçando assentados e saindo das terras com caminhões com toras de árvores valiosas durante as madrugadas. Os invasores chegaram a criar uma entidade chamada Associação Liberdade do Povo, enquanto se articulavam a madeireiros e grileiros interessados na floresta. As reintegrações de posse já ordenadas pela Justiça são uma piada: os invasores são retirados mas, mesmo quando a polícia permanece na área para evitar seu retorno, as rondas são feitas só durante o dia. De madrugada os madeireiros voltam, e continuam retirando sua ‘carga’. As fotos tiradas durante a primeira dessas ações de reintegração, no ano passado, mostram um quadro desolador: cinzas, árvores no chão e casas destruídas.

HÁ MILHÕES DE ANOS

Três milhões de anos atrás, o nível do mar era entre dez e 20 metros mais alto do que hoje, e o planeta mais quente com temperaturas de dois a três graus maiores. Pois é neste período bem diferente do atual, quando o ser humano sequer existia, que os cientistas encontram um paralelo com a concentração de dióxido de carbono presente agora na atmosfera. De acordo com a Organização Metereológica Mundial, só há três milhões de anos havia níveis tão altos assim. Ontem, a OMM anunciou que 2018 bateu o recorde de concentração dos principais gases do efeito-estufa

NO MERCADO

A Novartis anunciou segunda-feira que chegou a um acordo para comprar a empresa americana The Medicines Company por 9,7 milhões de dólares. Com isso, vai ser dona do Inclinisan, um tratamento experimental que se mostrou altamente eficiente contra o colesterol. No site da Forbes, o repórter Bruce Lee explica em pormenores o quanto a droga parece promissora.

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