Ricardo Salles tenta esquivar-se. E florestas ardem

Frente ao avanço do desmatamento, ministro culpa “economia ilegal” — mas omite que sua pasta deixou de aplicar multas e perdeu 20% de seus analistas. Leia também: 9,4 milhões podem não estar imunizados contra sarampo

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil
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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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Amanhã se celebra o Dia Nacional da Consciência Negra e é feriado no Rio, onde estamos sediadas. Voltamos na quinta-feira.

NEM SALLES PODE NEGAR

Quase 30% – 29,5% para sermos precisas – é o índice de crescimento do desmatamento na Amazônia acumulado entre agosto de 2018 e julho deste ano. A taxa representa uma devastação de 9,7 mil km2, uma área equivalente a 1,3 milhão de campos de futebol. E é a maior registrada desde 2008, além do maior salto percentual de um ano para o outro registrado desde 1997. A informação foi divulgada ontem pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, estava na coletiva de imprensa. Desta vez, ele não rejeitou os dados medidos por satélite. Mas protagonizou um malabarismo retórico, é claro: pegou a média histórica de desmatamento, de 13,9 mil km2, e disse que “os dados indicam que houve uma redução” em relação a esse número, acumulado desde 1988 – quando nem se falava em aquecimento global direito.

Para Salles, o desmatamento, que pega sete meses do governo de Jair Bolsonaro, se deve à “economia ilegal”. Para ONGs do meio ambiente, é consequência da onda bolsonarista. “O projeto antiambiental de Bolsonaro eliminou a capacidade de combater o desmatamento, favorece os que cometem crimes ambientais e estimula a violência contra os povos da floresta”, declarou ontem Cristiane Mazzetti, do Greenpeace. E nunca antes na história deste país, destacou o WWF, foram aplicadas tão poucas multas ambientais como nos últimos meses.

A maior taxa de desmatamento foi registrada no Pará. O estado responde por 39,5% da perda observada em toda a Amazônia, seguido de Mato Grosso, com 17,2%. A soma desses resultados com aqueles registrados no Amazonas e em Rondônia representa 84% de toda a devastação. Outra situação preocupante envolve Roraima, estado onde se registrou alta de 216,4% de desmate no período. “Pode significar que está se tornando uma nova fronteira de desmatamento e merece atenção”, destacou Darcton Policarpo Damião, militar escolhido por Bolsonaro para substituir o cientista Ricardo Galvão na presidência do Inpe.

Lembrando dessa ferida aberta pelo governo na comunidade científica, outra notícia relacionada ao monitoramento do desmate salta aos olhos. É que alguns pesquisadores de instituições federais decidiram não assinar um estudo sobre a devastação na Amazônia publicado no domingo na revista Global Change Biology. O motivo? Temem nova vendeta. O estudo avaliou as alegações do governo de que os incêndios registrados em agosto eram “normais” e “abaixo da média histórica” – o que, vê-se pelos dados divulgados ontem pelo Inpe, não fazia mesmo nenhum sentido. “O objetivo do nosso trabalho era justamente analisar a narrativa do governo na época e mostrar que ela estava errada apresentando evidências”, explicou ao Estadão a pesquisadora Erika Berenguer, da Universidade de Oxford e de Lancaster (Reino Unido), uma das autoras do trabalho. “Isso gerou o medo de retaliações”, lamentou.

Mas não são as evidências que hão de parar o governo Bolsonaro. Ontem, a ministra da Agricultura Tereza Cristina foi a público declarar que “a agricultura de exportação” não tem nada a ver com a Amazônia. Como se a lógica ruralista que movimenta a expansão das fronteiras agrícolas, a grilagem de terras e toma de assalto as instituições não tivesse qualquer efeito estrutural…

Aliás, o Censo Agropecuário 2017, divulgado em outubro, mostra que aumentou a concentração de terras da agricultura. Com isso, desde 2006 houve uma redução de 9,5% no número de estabelecimentos da agricultura familiar, enquanto no agronegócio o crescimento foi de 35%. O avanço do agronegócio se dá principalmente sobre o Norte e o Centro-Oeste do país, em biomas como o amazônico e o Cerrado.

Em tempo: a ação tomada pelo Ministério do Meio Ambiente diante da espantosa taxa de desmatamento foi marcar uma reunião com os governos da Amazônia Legal para promover uma redução “de maneira sustentável” do desmatamento. Então tá.

DAQUI PRA FRENTE

Durante o governo Bolsonaro, com a transferência de secretarias inteiras para outras pastas, o Ministério do Meio Ambiente perdeu 17% de seus analistas ambientais, contabiliza a BBC a partir de dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação. Os analistas representam pouco mais de metade dos servidores da pasta, e é o pessoal que faz desde o monitoramento de queimadas até o acompanhamento do nível do mar na costa brasileira. 

Dos 144 que deixaram o MMA entre janeiro e julho, 110 estavam lotados no Serviço Florestal Brasileiro, que foi transferido em janeiro para o Ministério da Agricultura. A reportagem ouviu servidores transferidos que falaram sobre o que mudou: “deslocamento de prioridades, paralisação de atividades de monitoramento, falta de articulação com outras secretarias e órgãos ambientais”. Entre as mudanças, estão a estagnação do Inventário Florestal Nacional (um esforço para catalogação dos recursos florestais iniciado em 2007) e a desmobilização do Cadastro Ambiental Rural (um registro nacional obrigatório dos imóveis rurais, criado em 2012 para facilitar a fiscalização ambiental e o combate ao desmatamento).

E a ex-ministra do Meio Ambiente, ex-senadora e eterna candidata à Presidência Marina Silva avalia que o cenário de 2020 é “incomparavelmente mais preocupante” do que o deste ano em relação às políticas ambientais de Bolsonaro. “Até porque a governança foi desmontada, o Ibama e o ICMBio estão enfraquecidos. Todas as formas de atuação estão enfraquecidas. Os governos estaduais que concordam com Bolsonaro são coniventes com ele, e os que querem fazer alguma coisa estão impotentes”, disse ela em entrevista à Agência Pública.

No mês que vem, o Brasil se reúne com outros países em Madri para acertar detalhes sobre como planejam cumprir o Acordo de Paris. A matéria da Vox ressalta que o governo brasileiro provavelmente vai enfrentar mais pressão para conter o desmatamento, mas pode exigir mais concessões dos demais países para preservar a floresta amazônica, como regras contábeis mais favoráveis ​​para redução de emissões ou mais incentivos financeiros.

A NOVA ‘NOVA’ REFORMA

O Dieese publicou uma nota técnica sobre a MP 905/19, pela qual o governo Bolsonaro faz mais uma nova reforma trabalhista e implanta o tal contrato verde e amarelo. O texto resume a ópera: a MP “cria a modalidade de contrato de trabalho precário; intensifica a jornada de trabalho, que pode resultar em aumento do desemprego; enfraquece os mecanismos de registro, fiscalização e punição às infrações; fragiliza as ações de saúde e segurança no trabalho; reduz o papel da negociação coletiva e da ação sindical; ignora o diálogo tripartite como espaço para mudanças na regulação do trabalho; e, por fim, beneficia os empresários com uma grande desoneração em um cenário de crise fiscal, impondo aos trabalhadores desempregados o custo dessa ‘bolsa-patrão'”.

Aliás, um relator já foi apontado para a MP. Trata-se do deputado federal Christino Áureo (PP-RJ). A escolha controu com o apadrinhamento do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). 

FALTA MUITO

O Ministério da Saúde estima que 9,4 milhões de pessoas de 20 a 29 anos não estejam imunizadas ou tenham tomado só uma dose da vacina contra o sarampo. O último caso acontece porque o Brasil demorou a introduzir a segunda dose na caderneta de vacinação. “Nos anos 90, ficou claro que era necessário aplicar a segunda dose. Só que esse protocolo só passou a ser adotado em 2004”, explicou o infectologista Celso Granato, da Unifesp, ao Estadão. Nos últimos 90 dias, período usado para monitorar o surto ativo, foram registrados 5.660 casos de sarampo. A faixa etária dos jovens adultos, agora alvo da campanha de imunização do governo federal, foi a mais acometida pela doença, com 1.729 casos, ou 30,6% das confirmações.

COM FINS BEM LUCRATIVOS

A jornalista de saúde Claudia Colluci comenta, em sua coluna na Folha, um artigo de opinião com um tema bastante instigante: os conflitos de interesse dos médicos. O texto, escrito ele próprio por uma médica, tem como ponto de partida o fato de a medicina ter se transformado em mais uma indústria e o paradoxo essencial que atravessa a prática médica hoje: criada para ter em mente o bem-estar do paciente, se preocupa cada vez mais com formas de tirar dinheiro do cliente. “Por que eu tenho que pagar por um ultrassom feito no seu consultório se meu plano de saúde me dá direito aos melhores laboratórios de São Paulo?”, perguntou a colunista certa vez a um médico. “Porque eu só confio nos meus equipamentos e na minha equipe”, respondeu ele. Colluci continua: “Uma amiga me relatou que, ao sair da consulta com o nutrólogo, a secretária do dito cujo já tinha encaminhado uma cópia da receita para uma farmácia de manipulação ‘de confiança do doutor’ pedindo orçamento dos produtos. O mesmo médico também recomendou reposição endovenosa de ferro e de vitamina D, ambas feitas no consultório e muito mais caras (um hematologista já tinha prescrito a reposição pela via oral, muito mais simples e barata).” Os exemplos são muitos. Todos vêm do setor privado brasileiro que, na opinião de Colluci – e na nossa também – se aproximam da realidade descrita no artigo original, escrito pensando no caso dos EUA. 

MAIS EVIDÊNCIAS DA INSEGURANÇA DE DADOS

“Há séculos, todo médico faz o juramento de Hipócrates, de manter em sigilo ‘o que tiver visto ou ouvido’ sobre a vida dos pacientes. Agora, no entanto, centenas de milhões de pessoas recorrem à internet todos os dias para tirar dúvidas médicas, desde as mais simples até as mais graves. Apesar da ilusão de privacidade que existe entre usuários e seus computadores, a realidade é toralmente diferente.” A reflexão vem de uma reportagem do Financial Times traduzida pelo Valor. Nela, o jornal britânico divulga um levantamento próprio que revela que 79% dos sites de saúde do Reino Unido se valem de “cookies” – códigos que, quando incorporados ao programa de navegação na internet, permitem a terceiros acompanhar as ações dos usuários na rede – para extrair dados sensíveis e, depois, repassá-los para empresas como Google, Amazon e Facebook. E quando se fala sensíveis não é força de expresão: o FT dedicou mais tempo a dez sites de saúde e descobriu que sintomas verificados em um deles, o WebMD, e diagnósticos recebidos, incluindo o de “overdose de drogas” iam parar no Facebook.Tudo isso sem o consentimento das pessoas – o que é um crime no Reino Unido.

SÓ NA SOPA

No início era só um projeto para a Semana Nacional de Ciência em uma escola britânica. Pai de alunos, o pesquisador de malária Jake Baum se propôs a ensinar às crianças a diferença entre remédios de verdade e receitas caseiras, falando de evidências científicas. Então foi criado o “projeto da sopa”, em que as crianças deveriam levar para a escola uma sopa que suas famílias fizessem tradicionalmente quando quando alguém estava mal.

As dezenas de sopas foram testadas por Baum em seu laboratório contra a malária, seu objeto de estudo e uma das doenças que preocupam devido à resistência antimicrobiana. E o resultado foi uma surpresa: das 56 sopas, cinco bloquearam o crescimento de parasitas no sangue humano em cerca de 50%. Duas delas foram tão eficazes quanto um medicamento amplamente usado contra a malária, a didroartemisinina. Quatro outros caldos foram capazes de bloquear o desenvolvimento sexual do parasita masculino em cerca de 50%. Baum publicou os resultados no Archives of Disease in Childhood.

O CASO DA ALIMENTAÇÃO ESCOLAR

Já falamos aqui sobre o PL 5.695, que põe em risco o Programa Nacional de Alimentação Escolar e os 30% da compra direta da agricultura familiar. Mais de cem entidades publicaram ontem carta explicitando os problemas do projeto e pedindo pela sua rejeição. Entre as entidades que assinam o documento, estão o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Abrasco, o Conselho Federal dos Nutricionistas e o Idec.

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