Comitê de coordenação ou de terceirização da crise?

Iniciativa pensada para coordenar ações da União, estados e municípios no combate à pandemia não prevê participação de prefeitos. Rodrigo Pacheco aceitou tarefa de falar com governadores não alinhados ao bolsonarismo

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O comitê de coordenação das ações de combate à pandemia anunciado ontem por Jair Bolsonaro nasce cercado de incertezas – e crise. Para começo de conversa, o próprio presidente não concordava com a proposta, feita há semanas pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Apresentada novamente ontem, desta vez pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a ideia recebeu o aval do chefe do Executivo – que, no entanto, delegou a Pacheco a interlocução com governadores.

A terceirização não foi bem recebida por vários deles – que, além do mais, nem foram convidados para a reunião em que a criação do comitê foi acertada. O Planalto só chamou sete governadores, seis deles alinhados ao bolsonarismo:  Claudio Castro (Rio de Janeiro), Romeu Zema (Minas Gerais), Ronaldo Caiado (Goiás), Wilson Lima (Amazonas), Marcos Rocha (Rondônia) e Ratinho Jr. (Paraná).

O sétimo conviva, considerado independente, foi Renan Filho (MDB), governador de Alagoas – “que, contudo, também não costuma fazer embates públicos com o presidente, ao contrário da maioria dos governantes do Nordeste”, destaca reportagem do jornal O Globo.

Nem quem participou da reunião tem clareza do desenho do comitê. “Eu também não entendi exatamente. É uma coisa que eu vou conversar com o Pacheco agora, para entender qual vai ser a formatação. Ficou de nos próximos dias ele entrar em contato com os governadores, formatar exatamente o comitê. Se vão ser líderes dos governadores, se vão ser todos, se ele vai ser o interlocutor”, disse Claudio Castro (PSC).

“Fiquei animado com a possibilidade de criação do comitê, mas, pelo relato de pessoas que estavam na reunião, a perspectiva é de pouca mudança. O comitê ficou sem estados e municípios, então mantém desintegração, terceirizando para o senador Rodrigo Pacheco a relação com governadores para tratar da rede de saúde, da falta de insumos, da estratégia de prevenção e vacinação… Ou seja, não vai dar certo”, criticou Wellingon Dias (PT), governador do Piauí. 

Maior antagonista do presidente nessa seara, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), apelidou a iniciativa de “comitê de adulação”. Para o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), “parece que Bolsonaro tem medo dos governadores”.

O discurso de que o comitê é um passo na direção de um “pacto nacional” ficou bastante prejudicado pela exclusão da maioria dos gestores.

Arthur Lira afirmou que o comitê terá integrantes do Executivo, parlamentares, governadores e representantes de outros Poderes. O presidente do STF, Luiz Fux, confirmou que indicará um integrante do Conselho Nacional de Justiça para compor a estrutura. Ficou faltando, é claro, os prefeitos. 

A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP) se manifestaram, lembrando que são as prefeituras as responsáveis pela aplicação das vacinas contra a covid-19 e por parte da assistência aos doentes.

Segundo a FNP, a reunião foi uma demonstração de “federalismo de conveniência”. Em entrevista ao Estadão, o consultor da CNM para estudos técnicos, Eduardo Stranz, até agora houve apenas interlocução entre prefeitos e governos estaduais. O diálogo de estados e municípios com o governo federal, ele diz, foi marcado por “uma disputa desnecessária que nos levou ao ponto que estamos agora, na fase mais aguda da pandemia”.

Mesmo entre aliados, houve saia justa e constrangimento. Na reunião, Bolsonaro defendeu enfaticamente o mentiroso “tratamento precoce” contra a covid-19. No pronunciamento feito em seguida, insistiu no assunto:  “Tratamos também da possibilidade de tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da Saúde, que respeita o direito e o dever do médico ‘off label’ tratar os infectados. É uma doença como todos sabem, ainda desconhecida”.

Na terça-feira, 81 entidades médicas e científicas pediram o banimento do chamado “kit-covid”, e se multiplicam relatos de pessoas que usaram os medicamentos e tiveram complicações sérias, levando à falha renal e morte

O presidente também bateu pela milésima vez na tecla da destruição da economia para se colocar contra medidas de restrição da circulação de pessoas, principalmente do lockdown. Esse ponto teria sido deixado de lado na reunião por falta de clima para discussão. 

“Pelo menos dois governadores, Renan Filho (Alagoas) e Ronaldo Caiado (Goiás), argumentaram que essas restrições podem ser importantes em algumas situações. Outra ponderação feita é que isso ajuda a diminuir o risco de contaminação nos transportes coletivos. Como Bolsonaro persistiu na sua visão, o tema acabou se tornando um constrangimento no encontro”, apurou o Estadão.

Em tempo: o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmou que o próprio governo vetou a criação de um comitê de crise que estava previsto na PEC do Orçamento de Guerra. Um ano atrás

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