Pressões de todos os lados ameaçam priorização dos mais vulneráveis na fila de vacinação

Guedes adere à chantagem capitaneada pelos empresários Luciano Hang e Carlos Wizard contra doação integral ao SUS de vacinas compradas pelo setor privado — e juiz de primeira instância derruba lei que prevê regra

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A obrigatoriedade de que vacinas compradas por entidades privadas sejam integralmente doadas ao SUS até que todos os grupos prioritários estejam imunizados, como preconiza a lei publicada no último dia 10, parece nunca ter sido levada a sério por empresários. Em fevereiro, logo após a sua aprovação no Congresso, Carlos Wizard (controlador do Grupo Sforza e ex-conselheiro de Eduardo Pazuello) se reuniu com o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, para tratar da distribuição das doses no setor privado. 

Ontem, ele e Luciano Hang (da Havan) conversaram com Paulo Guedes. Na porta do Ministério da Economia, Wizard anunciou uma chantagem: serão doadas dez milhões de doses ao SUS… desde que os congressistas mudem a lei. Nas suas palavras, eles precisam promover uma “flexibilização (…) que nos permita fazer essa doação a favor do Brasil”. É claro que a lei já permite doar vacinas. Mas eles não pretendem fazê-lo a não ser que possam ficar com seu quinhão. Por seu turno, Hang bateu na (gasta) tecla de que a vacinação via empresas desafogaria a fila do SUS, o que, considerando que a ordem dos grupos prioritários importa, não faz sentido.

Guedes multiplicou a pressão: “Dois empresários, dois brasileiros de coração macio, força e capacidade. Empreendedores, (que) sabem negociar, conseguiram esses dez milhões de vacinas, estão lá fora esperando para trazê-los. Agora, imagine cem empresários. São dois aqui, então seria 50 vezes essa doação de dez milhões. E nós temos cem empresários que podem querer fazer essas doações. Seriam 500 milhões de vacinas“, disse. Ele também defendeu que, além de tudo, os empresários sejam na prática pagos pelas vacinas que doarem, por meio de isenções

Hang e Wizard se reuniram também com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e lhe entregaram um abaixo-assinado pela mudança da lei para que possam imunizar seus “colaboradores”. São 140 mil assinaturas até o momento. Como já dissemos por aqui, no início da semana Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), jantaram com um grupo de banqueiros e empresários que tinham a mesma demanda. 

Múltiplas filas

Enquanto a lei não muda, outros caminhos vão se abrindo. Ontem a Justiça Federal acatou os argumentos de três entidades e derrubou a obrigatoriedade de doação ao SUS. A decisão (que ainda pode ser revertida) foi publicada na íntegra pelo site Conjur.

O juiz substituto da 21ª vara federal de Brasília, Rolando Spanholo, considerou que “ao invés de flexibilizar e permitir a participação da iniciativa privada, (a lei) acabou ‘estatizando’ completamente todo o processo de imunização da covid-19 em solo brasileiro”. No entendimento dele, o texto tem “estranhas e contraditórias condições” e “várias inconstitucionalidades”, como a “usurpação” da propriedade privada. Ele escreveu ainda que a lei “tornou letra morta o direito fundamental à proteção da vida” e significa um retrocesso na proteção do direito à saúde. Por fim, afirmou que a necessidade de doação desestimularia a compra por parte dos entes privados…

Pois é. Em um cenário de escassez de oferta, a última coisa de que precisamos é o setor privado competindo com o SUS – sabemos que, em franco desespero e pressionado por todos os lados, o governo federal está finalmente correndo atrás de mais contratos. Mas, segundo o juiz, não haveria tal concorrência. Isso é apenas algo que “muitos leigos confundem”. Ele diz que, caso não sejam compradas por essas entidades, as doses acabarão indo para outros países. E que por isso “não se trata de ‘furar fila’, de ‘quebrar ordem de preferência'”. Mas que outro nome pode se dar à criação de múltiplas filas, com pessoas jovens e saudáveis podendo passar à frente de quem tem maior risco de morrer? 

A decisão atendeu a um pedido do Sindicato dos Servidores da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo e da Associação Brasiliense das Agências de Turismo Receptivo. O juiz resolveu que as entidades podem importar imunizantes para oferecer a seus associados. Elas só não poderão revender as doses. 

Não foi a primeira vez que Spanholo adotou posições como essa. No dia 11 de março, ele concedeu uma liminar autorizando que a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages) importasse vacinas contra a covid-19, inclusive as não autorizadas pela Anvisa (mas já aprovadas por agências sanitárias internacionais) para distribuir a seus associados e familiares. Na semana anterior, havia autorizado um sindicato de motoristas de aplicativo de Brasília a fazer o mesmo. “A iniciativa privada não pode continuar sendo excluída desse processo de imunização da população”, disse, na época.

Investigações

O Ministério Público Federal e a Superintendência Polícia Federal em Minas Gerais vão investigar a compra de doses da vacina da Pfizer por um grupo de políticos e empresários, denunciada pela revista Piauí esta semana.  Já existem até vídeos da imunização clandestina.

Ao comentar o caso, o ministro Paulo Guedes foi enfático ao sugerir a legalização dessa farra: “Por enquanto, é ilegal, mas se a gente permitir que seja legal… e que façam doações”.

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