Maconha medicinal: demos um passo à frente

SP aprova distribuição de canabinóides pelo SUS. O médico Paulo Fleury analisa: medida é limitada, porque país obriga-se a importação desnecessária. Mas pode desencadear processo sem volta, que terminará com a legalização integral da planta

Cassiano Teixeira, diretor-executivo da Abrace Esperança, associação de João Pessoa (PB) com autorização judicial para produção de produtos à base de maconha (Foto: Abrace)
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Paulo Fleury Teixeira em entrevista a Gabriela Leite

A aprovação de uma lei no estado de São Paulo pode ter sido um passo importante para a ampliação do uso e aceitação dos medicamentos à base de maconha. É a opinião de Paulo Fleury Teixeira, médico, pesquisador e filósofo. Primeiro, porque fica regulamentada a distribuição de produtos derivados da planta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no estado, sem a necessidade de judicialização do processo. Mas há outro ponto importante: votada na Assembleia Legislativa, a lei foi sancionada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), político que participou do governo Bolsonaro. Paulo indica que esse é um dos sinais de que a luta para a disseminação dos canabinoides, essenciais para alguns pacientes mas vistos até há pouco com enorme preconceito, está avançando. Uma vitória a ser comemorada.

Mas o processo não é simples. Da maneira como foram liberados pela Anvisa, os produtos à base de canábis podem causar um impacto financeiro significativo para o SUS. Embora o óleo canabidiol seja extremamente fácil de se produzir, até artesanalmente, o Brasil só pode adquirí-lo de empresas estrangeiras – e de maneira geral o faz de multinacionais norte-americanas. Uma dose pode custar R$ 1,5 mil reais. É um sintoma do colonialismo que ainda enfrentamos, sugere Paulo Fleury. Na prática, muitos dos estados e municípios que aprovaram leis como a de São Paulo não conseguem garantir com eficiência a entrega dos medicamentos aos pacientes que mais precisam. Falando diretamente: produtos de maconha fazem parte do mercado brasileiro, mas o país não pode aproveitar-se diretamente dele.

Mas a verdade é que encontram-se maneiras. Paulo explica que os caminhos para a produção nacional estão cada vez mais abertos. Há milhares de associações e pequenos fabricantes que já fornecem canabidiol para pacientes com doenças como autismo, esclerose múltipla, depressão, artrite reumatóide, epilepsia, entre outras. Algumas dessas associações já conseguiram autorização judicial para tanto – a maior parte, não, mas está dando conta de garantir os tratamentos mesmo assim. A tendência, analisa Paulo, é que fique cada vez mais difícil criminalizar quem produz. Há jurisprudência sólida nesse sentido, explica ele. O produto fabricado nacionalmente é seguro, confiável e a maneira mais acessível que brasileiros encontram para se tratar. São Paulo e seu governador ajudaram a dar mais um passo nesse sentido. Para Paulo, esse movimento não tem volta. Agora, é preciso quebrar a interdição do debate, aproveitar a onda e pôr em pauta também a legalização integral da maconha – inclusive para reduzir o uso de outras drogas que já são legais, como álcool, cigarro e remédios psiquiátricos.

Fique com a entrevista completa.

Como você enxerga a sanção da lei que prevê que o SUS distribua canábis medicinal em São Paulo no panorama nacional para a disseminação desses medicamentos?

Vamos começar com o fato novo, que foi a aprovação pelo governo de São Paulo do projeto de lei do deputado estadual Caio França (PSB). Tarcísio de Freitas , novo governador, vetou seis dos dez artigos, mas deixou o corpo fundamental do que estava contido no PL, que é bastante interessante. Eu tenho uma visão restritiva em relação a essas leis porque elas não podem mudar o panorama legal nacional, já que a legislação de drogas e medicamentos é de nível nacional. Então, grandes mudanças poderão vir por três vias: pelo Congresso Nacional, por meio de posições vinculantes no Supremo Tribunal Federal (STF) ou em normas nacionais da Anvisa. É a partir daí que poderão surgir as grandes mudanças de trajetória em relação ao acesso de produtos de canábis para uso medicinal no Brasil.

Mesmo assim, essas legislações estaduais – e até municipais – são passos importantes de um movimento contínuo com conquistas progressivas. Essa lei específica de São Paulo é bastante interessante, primeiro porque o termo utilizado para os canabinoides é “produto derivado vegetal”, ou seja, vinculado à planta. Outro aspecto importante é a menção ao “extrato integral”, então trata-se do canabidiol e todos os demais princípios ativos da planta, incluindo o THC [responsável pelos efeitos psicoativos]. E seu objetivo é o fornecimento desses produtos pelo SUS sem necessidade de demanda judicial – basta a receita e o relatório médico indicando a necessidade do uso. A lei vai ser normatizada pela secretaria estadual de Saúde em 90 dias. Vai facilitar bastante para os pacientes, se a lei realmente for cumprida. Isso porque com alguma frequência a gente vê pelo Brasil leis generosas mas que não chegam de fato à realidade. Essas legislações estaduais ou municipais não têm o poder de interferir nas normas jurídicas e institucionais sobre drogas. 

Qual a dificuldade de a lei ser cumprida nesses casos?

Como eu ia dizendo, a aprovação da lei em São Paulo é importante. O deputado que sugeriu o projeto de lei e o governador Tarcísio de Freitas ganharam divulgação com a aprovação da lei, e com mérito, e isso serve como mais um elemento na batalha midiática em torno desse assunto. São Paulo é um grande estado e Tarcísio é um governador de tradição conservadora, ligado ao bolsonarismo, e isso tudo fortalece do ponto de vista ideológico. 

Mas eu sou sempre bastante cauteloso nesse aspecto porque tenho 59 anos e trabalhei com o SUS durante um período muito longo da minha vida. Sei que muitas coisas que estão nas leis e normas não vão chegar à realização, o que isso ocorrerá de maneira satisfatória. Por um simples motivo: dinheiro. É caro. Inclusive é uma coisa delicada demais do ponto de vista médico. Um frasco custa R$ 1,5 mil, e às vezes é preciso prescrever um frasco por dia. Grande parte dos frascos de canabidiol (CBD) vendidos em farmácia têm 1.500 mg. Para um adulto com um distúrbio grave, essa é a dose terapêutica razoável por dia. Os frascos mais comuns têm 3.000 mg ou 6.000 mg: o paciente vai gastar em seis dias R$ 6 mil reais. Eu tenho certeza que hoje muita gente abandona o tratamento sem ter bom resultado porque está usando subdoses ao tratar com CBD, porque é muito caro. 

Com esse preço, o SUS não consegue bancar. São Paulo é um estado mais rico, talvez consiga, mas em geral não consegue. Então tem muitos tratamentos com subdose ou interrompidos, porque o ministério da Saúde não consegue fornecer com regularidade. Ou seja, a legislação é positiva, mas todas essas observações que estou fazendo são realistas. É assim que acontece. O SUS é obrigado pela justiça a fornecer. E o que a gente vê? Que fornece o primeiro lote, mas o segundo sabe-se lá quando vai vir. Os pacientes começam a ficar numa situação ruim ou às vezes até desesperadora, porque não têm segurança.

O Brasil poderia produzir esses medicamentos? Por que não o faz?

Essa é outra questão importante. Por que é caro dessa maneira? Porque o oligopólio é muito restritivo dadas as regulamentações atuais, que são completamente irracionais. É quase uma prova de estupidez. Hoje até mudou um tanto, mas inicialmente, quando a Anvisa normatizou a autorização para uso de produtos à base de canabidiol, em 2015, o que eles fizeram? Permitiram apenas a importação. A maconha é proibida no Brasil, por isso é proibido manipular. O que nós vamos fazer? Importar! Ou seja, a primeira resposta institucional do Brasil é mandar dinheiro para fora – para os Estados Unidos, para ser mais preciso. É muito ridículo, mas é a nossa cara: continuamos muito colonizados. 

Então como as pessoas podem acessar os produtos de canábis? Podem comprar na farmácia, hoje já há umas dezoito marcas de produtos de maconha ou seus produtos sintéticos ou semissintéticos, mas a maior parte é produto da planta mesmo. Pelo menos uma delas com alto teor de THC. Então não é uma questão técnico-sanitária, toxicológica. A proibição é uma determinação jurídica, política, por outros motivos. Mas não pode, pelas normas atuais, plantar e produzir isso aqui – a não ser em circunstâncias específicas com essas autorizações judiciais. 

Hoje, eu não tenho dúvida nenhuma, há um volume dezenas ou centenas maior de vezes de pessoas que utilizam esses produtos artesanalmente, pelo mercado de produção nacional – não autorizada pela Anvisa. São as chamadas associações, algumas têm autorização judicial, mas a grande maioria não. Os pacientes usam esses produtos. Por quê? Têm muito melhor acesso e são confiáveis, desde que os produtores tenham alguma responsabilidade. É uma coisa de alta segurança. 

Segundo me recordo, há umas cinco associações com autorização judicial, dezenas buscando essa autorização na justiça e centenas ou milhares de produtores que não têm autorização jurídica nenhuma. E não há nenhuma associação ou produtor de maconha, hoje, com autorização da Anvisa. 

Recentemente eu recebi a feliz notícia de que um processo judicial contra um casal de produtores que fornecia óleo tinha terminado bem para eles. São ligados à minha rede de pacientes. O juiz concluiu que não há titulação jurídica no código penal para alguém que está fornecendo produtos canábicos para uso medicinal. Isso não é crime. Claro que outros juízes vão concluir coisas diferentes, mas está cada dia mais seguro que se pode realmente fazer isso, e que no fim é possível se defender na justiça e vencer. Alguns poucos cultivadores ainda estão tendo um problema com a polícia, mas a grande maioria está conseguindo fazer isso à revelia da lei com a compreensão e o apoio jurídico. A justiça está cada vez mais favorável.

E aí eu reforço: uma lei como essa num estado como São Paulo, com a assinatura de um governador conservador como o Tarcísio, é muito positiva. Favorece o argumento da defesa da vida com  o uso livre ou a ampliação do acesso aos tratamentos com maconha medicinal. Com certeza mais e mais juízes vão ser favoráveis às demandas.

E a que você atribui essa mudança, o que permitiu que políticos conservadores tornassem-se a favor do uso medicinal da maconha?

Não vejo nenhuma surpresa nisso. Os governadores estão aprendendo a separar, e é do interesse deles que se separe, a maconha medicinal daquela usada como “droga”. A justiça, em geral, não está tratando o cultivador, a associação, como traficante. Seja para uso pessoal ou para fornecer para terceiro. E isso está acontecendo também dentro do espectro conservador, não tem uma coloração ideológica definida nesse aspecto. Por quê? Porque muitos deles vão recorrer a esses medicamentos. Parte grande do meu público são policiais, evangélicos. São famílias de policiais que têm criança epilética, são famílias evangélicas que têm pacientes com Alzheimer.

Em algum momento, essa realidade está se impondo. Desde que você abra essa brecha, a falta de sintonia entre a posição ideológica e oficial e a realidade de riscos vai aparecendo. É absurdamente favorável usar a maconha em comparação com qualquer medicamento que essas pessoas têm em mãos hoje em dia, seja para uma criança epilética, autista, um paciente com doença inflamatória crônica, com dores crônicas. Todas as outras drogas são infinitamente mais tóxicas do que os canabinoides – e os pacientes veem isso.

É um processo sem volta. A realidade vai sem impor à ideologia falsa. Mas apesar de tudo isso que a gente está falando, se você ler qualquer texto da Associação Brasileira de Psiquiatria ou de Pediatria, eles estão repetindo as mesmas idiotices de 15 anos atrás.

O Conselho Federal de Medicina publicou uma resolução que restringia ainda mais a indicação do canabidiol – e depois voltou atrás…

O conselho, em seu último ato bolsonarista, veio reeditar uma norma caduca, sem sentido nenhum, de 2014, a respeito da prescrição dos canabinoides. E depois correu do palco, retirou a norma, porque recebeu uma rejeição muito grande da própria categoria e de outras instituições. Abriu uma nova consulta pública. Minha aposta: não vão tocar nesse assunto mais. Isso vai morrer. Os arroubos bolsonaristas deles vão acabar, não têm mais base para isso. Eu acredito que o Conselho não vai mais meter a colher, que não deveria ter metido nunca. O Conselho de Medicina tem que tratar da ética médica, não tem nada a ver com normativa de prescrição. Isso quem faz são as associações médicas. E o médico é sempre livre. O bolsonarismo sempre defendeu muito a autonomia médica, mas na hora que é ideologicamente do outro lado, eles esquecem. Autonomia médica é um valor real, a gente realmente tem autoridade pra prescrever como a gente acha que deve e assumir as consequências disso. Isso regra com uma característica fundamental da nossa profissão. Mas essa onda ideológica não volta mais.

Outra maneira que as pessoas estão encontrando para acessar a maconha medicinal é a importação ilegal. Hoje é o mercado que mais cresce, de compra de países como o Uruguai, o Paraguai e outros. Sem o trâmite legal o produto sai às vezes mais barato que o nacional. É ilegal, mas não quer dizer que seja ruim, é um produto certificado – só que entra sem passar pela alfândega e pela Anvisa. Há também a importação legal, que equivale a comprar na farmácia, e também é muito caro.

E a última maneira é o autocultivo, que também é absolutamente vencedor do ponto de vista jurídico. Acho que hoje não tem mais quase possibilidade de alguém não ganhar na justiça o direito de cultivar. É claro que muita gente ainda vai ter dificuldade, mas há um movimento de consolidação dessa jurisprudência. E realmente, se uma pessoa que tem ansiedade pode cultivar, todas poderão. Se alguém com depressão, artrite reumatóide, esclerose múltipla, epilepsia, autismo também podem, não tem como a justiça negar a todos. Se um médico prescreveu, e ainda mais deu um laudo, nenhum juiz pode contestar.

Ou seja, estamos avançando. É o que eu sempre esperei. Não acho que a gente tenha condições de, nos próximos seis meses, ter maiores mudanças tanto no STF quanto no Congresso e na Anvisa. Apesar de os conservadores já estarem tendo esse movimento de diferenciação dos canabinoides, é um tema muito sensível num nível ideológico, moral, ético, que torna quase impossível fazer movimentos aqui no Brasil. Seria preciso uma situação de equilíbrio, de segurança política maior do que estamos agora. Não vai acontecer nada nesta área, do ponto de vista desses três níveis que expliquei, que podem definir grandes mudanças. 

Leis como a de São Paulo, então, devem trazer um problema para o SUS, não? Já que o ministério da Saúde não pode comprar os medicamentos pelo mercado nacional paralelo…

Eu vou até dizer que é um bom problema, do meu ponto de vista, porque é uma provocação que tem que ser feita. A Anvisa, o Congresso e o STF criaram essa armadilha que nos obriga a pagar a essas empresas – que em grande parte são multinacionais ou estão sediadas fora do Brasil – preços exorbitantes por produtos que a gente poderia estar fazendo de forma bem mais barata, artesanal, sem ônus para o Estado.

O movimento, do ponto de vista de reivindicação, precisa agir. No caso de São Paulo, foi organizado um abaixo-assinado que atingiu rapidamente 40 mil assinaturas pela aprovação da lei, houve manifestação da OAB, de pacientes. Ou seja, tem movimento de sociedade civil que vai continuar lutando. Agora isso vai crescer, por dois motivos. Primeiro porque já estava em crescimento, e a tendência deve continuar. Segundo porque a gente tem um governo e um ministério da Saúde teoricamente muito mais favoráveis. 

Mas, para falar a verdade, o meu interesse é muito maior na legalização da maconha do que apenas de seu uso medicinal. E, querendo as pessoas ou não, a autorização progressiva, a ampliação do uso medicinal sustenta, dá razão à ampliação da tolerância com o uso corrente, social, não-medicinal. É óbvio que isso vai acontecer. Por isso eu gostei dessa legislação de São Paulo, que sem usar nem a palavra canábis, nem maconha, usa “extrato vegetal”, está falando da droga. 

E o que a gente precisa divulgar é a segurança do uso. É uma droga de máxima segurança. Do ponto de vista de saúde pública, as pessoas acreditam que se legalizar a maconha, mais gente vai usar e vão aparecer os problemas. Primeiro, os problemas com a maconha são muito pequenos. Segundo, e mais importante, as drogas competem entre si na escolha pessoal. Se há duas drogas altamente tóxicas, como o álcool e o cigarro, que são autorizadas e divulgadas, obviamente as pessoas vão usar mais essas drogas. Mas elas são muito tóxicas e letais. Além de cigarro e álcool, poderíamos incluir também as drogas de prescrição psiquiátrica, que as pessoas usam direta ou indiretamente como droga. Hoje, por exemplo, a droga de maior crescimento entre os adolescentes no país é o Zolpidem, um sonífero que tem um efeito potente. Em seguida deve ser o Rivotril. 

Eu tenho certeza que ao se ampliar, facilitar, legalizar, permitir, ter tolerância com o uso da maconha, as pessoas, os adolescentes e jovens, vão consumir menos cigarro e álcool. Do ponto de vista da saúde pública, é um benefício. Mas essa é uma questão que é tabu para todo mundo. Todas essas evidências que estou falando aqui são comprováveis e mereciam que a saúde pública estivesse se dedicando a isso.

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