Fome: o recado dos movimentos sociais ao governo

A situação melhorou, em especial com a volta do Consea e a reestruturação do Bolsa Família. Mas, para avançar, Lula terá de confrontar interesses de poderosos. Em conferência realizada este mês, população defende agroecologia, reforma agrária e distribuição de renda

Foto: Geovanna Ataides/Inesc
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Entre os gestos que ficaram marcados na posse de Lula, em 1º de janeiro, o mais tocante parecia não estar no roteiro: o presidente chorou ao falar sobre a fome, durante seu primeiro discurso. A insegurança alimentar, que atingiu 126 milhões de brasileiros, em 2022, foi tema de suas falas durante a campanha e em seu primeiro ano de mandato. No final de outubro, Lula garantiu: “Até o dia 31 de dezembro de 2026, nós vamos acabar com a fome nesse país. Vamos fazer as pessoas comerem três vezes ao dia e, se quiserem comer quatro, que comam”.

Para examinar como está o trabalho do governo nesse sentido, uma boa maneira é olhar para a atuação dos movimentos sociais que se relacionam com a alimentação – o MST, pequenos produtores de alimentos ou ativistas ambientais, por exemplo. Entre os dias 11 e 14 de dezembro, Brasília sediou um grande evento para reuni-los e conectar suas ideias e projetos. Foi a etapa nacional da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Durante quatro dias, delegados de todos os estados participaram de diálogos, grupos de trabalho e plenárias temáticas, e contribuíram para a construção de um manifesto. 

“A grande força da Conferência é justamente isso: a discussão de propostas em uma sociedade civil muito diversa. São muitas vozes trazendo perspectivas muito distintas”, celebrou Inês Rugani Ribeiro de Castro, representante da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, e professora associada do Instituto de Nutrição da UERJ. Ela continua: “Essa é a grande riqueza e o grande desafio, ao mesmo tempo. Como acomodar as propostas para produzir as diretrizes que vão pautar o próximo Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional?”

A Conferência é parte essencial para a construção de políticas públicas para a alimentação saudável. Ela é organizada pelo Consea nacional, entidade da qual Inês faz parte, que existe para assessorar e dar subsídios à presidência da República no que diz respeito à segurança alimentar. A sua equipe é formada por dois terços da sociedade civil e um terço de representantes do governo. O Conselho foi extinto no primeiro dia de Jair Bolsonaro na presidência, em 2019 – um indicador precoce de seu desprezo pela participação popular. Foi reaberto em fevereiro deste ano, em um decreto assinado por Lula. A partir daí, a equipe que o constituía voltou a seu posto e correu para garantir a realização do evento, ainda em 2023.

A 6ª Conferência e a reestruturação do Consea

“A gente ainda fez uma inovação, inspirados na experiência da Conferência Nacional de Saúde”, conta Inês. “Demos abertura também para as Conferências Livres, que ofereceram uma diversidade em termos de propostas. Foram realizadas mais de 20, autogestionadas pela sociedade civil, e foram mobilizadas mais de 4 mil pessoas participando dos debates.” Ela lista algumas das Conferências Livres que aconteceram, como a de juventude, de cultura alimentar, de ambientes alimentares, da população LGBTI+… “São temas que, nas conferências estaduais, ficam mais secundarizados. As livres garantem uma visibilidade de assuntos específicos”, explica.

A diversidade exaltada por Inês ficava clara aos que percorriam o espaço da 6ª Conferência, que aconteceu no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, no Eixo Monumental da capital. Ao caminhar pelos corredores, era possível escutar o som de maracás. A participação de pessoas negras, em especial de mulheres, era marcante. Na Feira da Sociobiodiversidade, era possível encontrar sementes diversas, alimentos, objetos de decoração, instrumentos musicais indígenas e outras utilidades de todos os estados do país. “Aquelas bandeiras ali”, aponta Inês para o palco do auditório principal onde foi entrevistada, rodeado por uma bonita colcha de retalhos formada por faixas dos mais diversos movimentos, “mostram a diversidade do evento”.

O espaço da Conferência, explica Inês, é importante para levantar as propostas que germinam naturalmente, no dia-a-dia dos movimentos sociais. “Não são propostas para uma política nova, mas para fazer com que as que existem atuem de forma mais sinérgica”, explica. “Ou seja”, continua, “a Conferência é um espaço crucial para o Sisan [Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], no sentido da orientação dos rumos de políticas públicas. Então, o produto desse encontro é algo muito importante, e é fruto de um processo amplo e diverso de discussão, que garante políticas públicas mais condizentes com a necessidade da população”.

Fortalecer a implementação do Sisan, aliás, é uma das reivindicações que constam no manifesto construído ao longo da 6ª Conferência. O Sistema é formado pelas Câmaras Interministeriais (ou intersetoriais) de Segurança Alimentar e Nutricional e pelos Consea municipais, estaduais e federal. Ele articula as três esferas de governo “para promover o acompanhamento, o monitoramento e avaliação da segurança alimentar e nutricional do país”. No manifesto, os delegados defendem seu financiamento estável e robusto, e que seja articulado com os demais sistemas, como o SUS (Sistema Único de Saúde), o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e o Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama)

O manifesto também expressa os debates mais urgentes que circulam em torno da pauta da segurança alimentar e da fome. Critica o sistema alimentar “adoecido e adoecedor”, constituído por “formas de produção hegemônicas e coloniais” que “expropriam a vida, privatizam os bens comuns e os tratam como mercadoria”. Esse sistema alimentar, avaliam, também é causador de destruição da natureza e dos povos originários do Brasil. E sua constituição contribui para o aumento do preço dos alimentos saudáveis e a proliferação da comida ultraprocessada. Portanto, “as políticas públicas devem ser construídas com participação social, sem conflitos de interesse e […] baseada nos princípios e diretrizes do Guia Alimentar para a População Brasileira”. A agroecologia e a transição energética também foram marcadas como urgentes.

Para que isso se realize, o debate sobre a questão agrária é incontornável. Os movimentos defendem: “Realizar a reforma agrária popular, a reforma urbana e garantir os territórios indígenas e tradicionais, assegurando condições de vida digna e trabalho assim como viabilizar arranjos produtivos originários e tradicionais, e outras ações para o estabelecimento e a permanência, especialmente das juventudes, nos campos, águas e florestas”.

Governo aberto às reivindicações?

Lançado em agosto pelo Governo Federal, o plano Brasil Sem Fome é um conjunto de 80 ações e programas, articulados pelos 24 Ministérios que compõem a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. A avaliação de Inês Rugani em relação ao governo é de que existe um esforço real para a mudança: “Acho que é um esforço paralelo à retomada do Consea, no sentido de organizar quais são as ações estratégicas para tirar as pessoas da vulnerabilidade econômica e ter mais acesso à alimentação”. Para ela, o primeiro ano não foi apenas de reconstrução, lema do governo, mas também de inovação, de criação de iniciativas para “repensar a política e incorporar a ela novidades que foram elaboradas ao longo desses anos”.

A preocupação de Inês, no entanto, é com a capacidade do governo de enfrentar os grandes interesses, nos momentos necessários. “A gente tem uma agenda que é muito mais profunda”, reflete, “que é a de superar a fome e garantir a sustentabilidade do planeta. Essa é uma agenda que temos mais dificuldade de visualizar [no governo]. Estamos vendo a PL do Veneno [projeto de lei que representa um libera-geral de agrotóxicos] passando nas instâncias do Legislativo, e o Executivo está muito silencioso em relação a isso”.

Inês prossegue: “Vemos isso com muita preocupação, porque realmente é na hora de confrontar com as grandes corporações que a gente sente que não tem um sinal claro do governo. O sinal está claro para as medidas de assistência social, de renda básica, que são aquelas que não é necessário nenhum confronto para que sejam tomadas”. 

Um ponto crucial, para a professora, é o do orçamento – que, em 2023, veio com muitas restrições, por ter sido elaborado pelo governo anterior. “Eu acho que foi um ano de muito esforço. Porque quando você desmonta uma política – não só o Conselho –, você desarticula ela no território, e tudo isso precisa ser recomposto”, avalia. Mas Inês sente que há um senso de urgência muito grande, em Brasília: “Nas plenárias do Conselho, a gente recebe pessoas do governo que vêm prestar contas, e vê um grande esforço em seu trabalho. Existe muita competência técnica nos ministérios”.

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