Combate ao tabagismo: os desafios mudaram

Brasil já foi exemplo internacional na luta contra o fumo. Hoje, números estão estagnados – e há risco de piora. Com a inação dos últimos governos, indústria do tabaco prepara novas armas para ofensiva contra saúde da população

Foto: Zoonar RF
.

Na década de 2000 e no início dos anos 2010, o Brasil registrou grandes êxitos  na luta contra o tabagismo. O país teve forte protagonismo na construção da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), tratado internacional em vigor desde 2005 que é o principal mecanismo global de combate ao fumo. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu em relatório que o governo brasileiro, junto do turco, foi o único a adotar todo o conjunto de medidas MPOWER, consideradas “as melhores práticas no cumprimento das estratégias preconizadas pela OMS”. As consequências se notam nas estatísticas: se, em 2006, 15,6% da população do Brasil fumava, no ano de 2019 já eram apenas 9,8% os fumantes.

Por outro lado, em artigo nos Cadernos de Saúde Pública, periódico parceiro de Outra Saúde, o pesquisador do Instituto Nacional de Câncer (Inca) André Szklo alerta: os dados das principais pesquisas públicas (estudos como a Pesquisa Nacional de Saúde, a Pesquisa Especial de Tabagismo e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) sugerem que essa queda virou estagnação – e pode até se reverter. Uma certa variável, que pode parecer bastante específica, é de grande ajuda para ilustrar os desafios em vista: o crescimento, em termos proporcionais, da compra de cigarros avulsos pelos fumantes brasileiros.

Como identificou o pesquisador em seu estudo A venda de cigarros avulsos no Brasil entre 2008 e 2019: mais um motivo de preocupação?, concentram-se nessa prática de consumo de produtos de tabaco públicos mais vulneráveis: os mais jovens, os menos escolarizados e os que vivem no eixo Norte-Nordeste. As razões, indica Szklo, podem ser principalmente econômicas, já que esta é uma opção mais barata. Mas, em entrevista a Outra Saúde, o especialista também ligou o fenômeno à relativa inação dos últimos governos no combate ao tabagismo – o enfraquecimento das regulamentações interessa muito aos empresários, e também facilita o surgimento de novos fumantes.

Frente a esse cenário, explica Szklo, há o que fazer e os primeiros passos são bem claros. Uma atualização urgente da política de tributação dos cigarros e mais recursos para as campanhas de conscientização já seriam medidas bastante bem-vindas. Para evitar que surja toda uma nova coorte de tabagistas, é essencial reimpulsionar toda a política de combate ao tabaco. Sua grande eficácia, já certificada em outros momentos, pode ser retomada.

As artimanhas da indústria

Não é tão difícil imaginar o que leva alguém a comprar uma unidade de cigarro, o popular “cigarro solto”. “O cigarro avulso, normalmente, é uma opção para você economizar, já que sai mais barato do que comprar o maço inteiro”, avalia Szklo. A alternativa, portanto, se torna mais atrativa exatamente para “o adolescente e o jovem adulto, que podem ainda não estar efetivamente no mercado de trabalho e não têm uma renda consolidada”, ele aponta. Segundo os dados de 2019, enquanto só 10% dos fumantes de 25 anos ou mais relataram ter comprado cigarros avulsos, essa cifra foi de pelo menos o dobro entre os jovens de até 24 anos.

“Mas é claro que, a partir do momento em que a pessoa se torna fumante regular, de consumo diário, e avança na dependência, ela não consegue se manter comprando o avulso e é obrigada a comprar o maço”, lembra o pesquisador. Assim, mesmo que não por ação direta da indústria, esse processo se torna parte de sua estratégia para angariar novos dependentes – pessoas que, na média, terão mais problemas de saúde e morrerão mais cedo que os não-fumantes, com doenças que custam caro ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Se não se pode confirmar que a indústria age diretamente no estímulo à venda do cigarro avulso – comércio, aliás, ilegal, mas com uma “malha de venda e distribuição muito consolidada no Brasil” –, ela certamente o faz em outras áreas que afetam os mais jovens em particular. Nos últimos anos, denuncia o pesquisador do Inca, ela se esforçou para diversificar os produtos de tabaco disponíveis no mercado (vivemos o auge dos narguilés, cigarros de palha e afins) e para seguir bloqueando a proibição dos cigarros com aditivos de aroma e sabor. Sua próxima meta é conquistar a regulamentação dos dispositivos eletrônicos para fumar, os vapes. Todos esses mecanismos mascaram o gosto ruim da fumaça e facilitam a introdução dos mais novos à dependência da nicotina.

Os números do passado

Com todos esses fatores em jogo, “a gente tem verificado um aumento na iniciação e uma queda na cessação principalmente entre os jovens”, relata Szklo. Mas o cenário já foi diferente. Nas últimas décadas, de forma geral, a queda no tabagismo havia sido constante em todos os segmentos, sem importante renovação entre os jovens. O que mudou?

O Brasil, explica o especialista carioca, não revogou suas tão aplaudidas leis de combate a o fumo, mas está deixando elas enferrujarem. As ações de comunicação em saúde, que fortalecem a informação e conscientização, já não recebem tanta atenção – e a mais efetiva das medidas, a política de tributação, não está mais sendo atualizada. Sua eficácia se vê em um exemplo: o período recente de queda mais abrupta na compra de cigarros, de em torno de 15% para 10%, é o imediatamente subsequente a um importante aumento da taxação do cigarro em 2012.

“Desde 2017, temos um congelamento nas alíquotas que incidem sobre os produtos derivados do tabaco e também sobre o preço mínimo do cigarro”, denuncia Szklo. Com isso, o custo real do produto cai: o Brasil tem agora o segundo cigarro mais barato das Américas, só na frente do Paraguai. Assim, os que vão atrás de produtos econômicos – a compra de cigarros avulsos, um veículo dessa busca –, infelizmente, os encontram.

Para dar um novo impulso à redução do número de tabagistas no país, o caminho comprovado é renovar e aumentar a tributação, conclui Szklo.

Seguir avançando, com dados

Boa parte dos dados que subsidiaram as reflexões do artigo puderam ser extraídos de pesquisas desenvolvidas por órgãos públicos como o IBGE, lembra Szklo. “O sistema de monitoramento já é bem completo”, diz o pesquisador, ainda que a realização de mais pesquisas qualitativas – isto é, que abordassem públicos específicos, buscando explicar e não só identificar os fenômenos – ajudaria a “avançar ainda mais no combate à epidemia de tabagismo no Brasil”.

Nessa falta de informações com maior “refinamento”, explica o autor do estudo, fatores como a compra de cigarro avulso podem servir como um proxy, ou seja, ajudando a entender aspectos correlatos mas que não possuem dados diretos. O maior exemplo está no começo desta matéria. Se os estudos identificaram um aumento do consumo de cigarros avulsos em relação ao universo total do tabagismo no Brasil, com essa (e outras) informações em mente, é razoável inferir que há uma busca por opções mais baratas, tendo em vista o contexto de perda de poder de compra geral, o crescimento dessa alternativa entre os jovens, e etc.

Com os dados mais refinados à mão ou não, as medidas para enfrentar a possível regressão no combate ao tabagismo estão postas na mesa, prontas para serem aplicadas. A indústria do tabaco – que se movimenta com habilidade nos últimos meses pela legalização dos cigarros eletrônicos – não titubeará na defesa de seus lucros. Resta ver se o governo também não titubeará na defesa da saúde dos brasileiros.

Leia Também: