Fiéis à cloroquina

Mirrado grupo de bolsonaristas ‘louva’ medicamento em Brasília. Médicos da Sociedade Brasileira de Infectologia são atacados após recomendação contrária

Reprodução / Facebook
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Jair Bolsonaro, ainda com covid-19, está na parte externa do Palácio da Alvorada, separado de seu sempre mirrado (porém, aglomerado) grupo de apoiadores por um espelho d’água. Anda de um lado para o outro, acenando. De repente, em silêncio, retira do bolso uma caixa de hidroxidloroquina e a ergue acima da cabeça, com ambas as mãos. A claque vai ao delírio, com aplausos e gritos, como a torcida diante de uma taça ou religiosos diante de um… messias.

A cena, de ontem à tarde, foi transmitida ao vivo nas redes sociais do presidente. Outros momentos marcaram sua aparição. Retirando a máscara para falar, ele elogiou o atual Ministério da Saúde e criticou o projeto contra fake news. Sempre inflando seu próprio poder, rejeitou uma saída antes de 2022 (ele é alvo de 48 pedidos e impeachment) e afirmou que está tudo certo com a criação do Aliança para o Brasil, para sua reeleição. “Fiquem tranquilos que o partido irá sair“,disse. Até o último dia 9, informa a Folha, só 15.721 das 492 mil assinaturas de apoio exigidas pela legislação haviam sido validadas pela Justiça Eleitoral – 3,2% do mínimo necessário. Mais cedo,  um trio elétrico cristão havia percorrido a Esplanada dos Ministérios em apoio ao governo. Mas, de tudo, o que choca mais é a pequena demonstração daquilo que parece uma seita da cloroquina.

Na sexta, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) alertou que o país deve retirar “imediatamente e com urgência” a hidroxicloroquina de todas as fases do tratamento do novo coronavírus, para que não seja mais gasto “dinheiro público em tratamentos que são comprovadamente ineficazes e que podem causar efeitos colaterais”. Mais que isso, a SBI demanda que esse dinheiro seja usado naquilo que de fato pode salvar pacientes: anestésicos para intubação; bloqueadores neuromusculares para pacientes que estão em ventilação mecânica; oxímetros para diagnóstico de hipóxia silenciosa; testes RT-PCR; leitos de UTI; contratação de profissionais de saúde; e compra de respiradores. Acontece que, como sabemos, o governo brasileiro já gastou dinheiro público em milhões e milhões de pílulas de hidroxicloroquina que continua precisando escoar. Logo após a publicação do alerta, membros da SBI passaram a sofrer ataques virtuais. No Twitter, os comentários à postagem com o novo informe da entidade são um festival de besteiras. 

Não é nada irrelevante o papel de determinados líderes religiosos na divulgação de informações falsas sobre a pandemia no Brasil e, consequentemente, no seu agravamento. A reportagem de Vinícius Valfré, no Estadão, dá belos exemplos disso, baseada em um levantamento sobre desinformação no YouTube feito pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). Ainda antes das primeiras mortes no Brasil, uma rede formada por religiosos atingiu, em 47 dias, nada menos que 11 milhões de visualizações em vídeos que citavam o novo coronavírus. “Esse canal hoje vai mostrar (…) uma verdadeira manobra de engenharia social, de guerra psicológica, revolucionária”, diz um dos vídeos do canal de inspiração católica do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, que prega que o vírus é “um grande laboratório social no qual a humanidade foi propositalmente metida.”

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