EUA: algo anda mal no país da saúde-mercadoria

Mega-pacote de investimentos sancionado por Biden esta semana inclui investimentos estatais maciços para aliviar problemas sanitários. Eles expõem fracasso de um sistema privatizado, caríssimo e incapaz de atender à população

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Chamado de Lei de Redução da Inflação, e negociado durante meses no Congresso, o grande pacote de investimentos que o presidente dos EUA sancionou quarta-feira mexeu com a opinião pública em razão de suas ambições climáticas. Mas uma parte importante de suas medidas diz respeito ao acesso à saúde e merece observação atenta. Dos mais de 700 bilhões de dólares em investimentos e incentivos, US$ 98 bilhões são aportes diretos do Estado em ações como apoio à compra de remédios pelos mais pobres e ampliação da cobertura vacinal gratuita.

Há também medidas de intervenção (ainda que muito parcial) do Estado na indústria farmacêutica. Eles impedem os laboratórios de reajustar preços acima da inflação, e permitirão à população  economizar US$ 322 bi. Além disso, os chamados Centers for Medicare and Medicaid Services (CMS) poderão negociar diretamente a compra de remédios para o programa Medicare, o serviço de saúde dedicado a aposentados e pessoas a partir de 65 anos.

Outro aspecto que chama atenção é a revogação de uma regra criada no governo Trump, que permitia a intermediários do mercado farmacêutico definir quais remédios eram incluídos nos benefícios de seguros de saúde, o que aumentava preços. Como explicou ao Outra Saúde Virgílio Arraes, professor de história da UnB especializado nos EUA, “os democratas têm preocupação maior com a questão social, desde Lyndon Johnson (em cuja presidência foi criado o Medicare), Clinton, Obama e agora Biden”.

As medidas sugerem que cresce a intranquilidade da população com o sistema de que, apesar de ter o maior gasto per capita em saúde do mundo, é considerado caro e ineficiente.  Mas há uma questão circunstancial a mais, que praticamente obrigou o governo a adotar tais medidas. “A pandemia acentuou a dificuldade de acesso à saúde, em especial para os idosos, cujas aposentadorias são baixas. Muitos tiveram de ajudar familiares mais novos que perderam emprego e renda durante a pandemia”, diz Virgílio.

Isto é, além de minorar os males de um sistema mercantilizado e excludente, trata-se de sanar feridas sociais, num contexto em que mais de 1 milhão de pessoas faleceram por coronavírus e muitos ficaram mais pobres e doentes. E não se pode deixar de lado a necessidade eleitoral democrata, que precisa manter maiorias legislativas na eleição de novembro, que renovará parte da Câmara e do Senado e cujos resultados são  fundamentais para viabilizar o restante do mandato de Biden.

Como se pode ler no detalhamento das medidas, caberá ao Estado tomar iniciativas econômicas de subsidiar a população comprado remédios para o Medicare, exercer certo controle de preços e taxar empresas que lucraram acima 1 bilhão de dólares anuais por pelo menos três anos, sendo boa parte delas ligadas à indústria dos combustíveis fósseis. Mas não há nada que se refira à criação de um sistema público de saúde de caráter universal, como ambicionou o senador Bernie Sanders em sua pré-candidatura à presidência. 

“Dizemos às companhias privadas de seguro de saúde: quer você goste ou não, os Estados Unidos se juntarão a todos os outros grandes países do mundo e garantirão a saúde a todas as pessoas como um direito. Todos os norte-americanos têm o direito de ir ao médico quando estão doentes e não falir depois de ficarem no hospital”, diz até hoje o site oficial do senador.

Mais de 30 milhões de norte-americanos não têm nenhuma cobertura em saúde, fora outros tantos milhões que recebem uma cobertura insuficiente. “Nos EUA, os planos de saúde vinculam-se a empresas. Ao se aposentar ou ser exonerado, perde-se o benefício e planos individuais são muito caros. Por isso temos o drama dos aposentados: de um lado, eles tiveram redução de renda em suas famílias; de outro, aumento de gastos pessoais com saúde”, explica Arraes.

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