Sri Lanka, a primeira vítima da nova crise global

Num país que chegou a ter Saúde Pública invejável, já não há remédios ou insumos médicos, as cirurgias estão suspensas e alastra-se a fome. Alta dos juros e do petróleo são causa imediata. Por trás dela: a medicina de negócios e políticas neoliberais

AP Photo/Eranga Jayawardena
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Não fique doente, não se machuque, não faça nada que o obrigue a ir a um hospital”. Lançado há uma semana, por Samath Dharmaratne, presidente da Associação Médica do Sri Lanka, o apelo é patético mas não exagerado. Faltam quase todos os medicamentos essenciais no pais. Não há reagentes para os exames sorológicos básicos. A escassez de anestésicos provocou a suspensão de todas as cirurgias, exceto as de emergência. E nem os profissionais de Saúde, nem os pacientes vão aos hospitais e unidades de atenção primária, pois não há combustível nos postos e o transporte público está em colapso. Dois terços da população não sabem se comerão no dia seguinte, pois não podem ir ao mar os barcos que trazem os peixes, parte destacada da dieta nacional.

País de 22 milhões de habitantes e área 50% maior que a do estado do Rio, o Sri Lanka (antigo Ceilão, nome dado pelos colonizadores portugueses) aparece nos mapas como uma ilha em forma de lágrima, a sudeste da Índia. É a primeira vítima de uma crise financeira e alimentar que ameaça dezenas de países, coloca em risco os sistemas de saúde e tende a desencadear revoltas populares. Em 13 de julho, o presidente Gotabaya Rajapaksa viu-se forçado a renunciar e fugir numa avião da Força Aérea, depois de ter seu palácio (e sua piscina…) invadidos por uma multidão.

Entre as causas imediatas da crise combinam-se as péssimas políticas de Rajapaksa e uma tempestade global em rápida formação. Em 2019, o presidente, primeiro militar a assumir o posto, tentou popularidade fácil ao decretar redução abrupta de impostos – em especial os que pesavam sobre os ricos. Em seguida, buscou financiamento externo para pagar as contas públicas. Mas foi surpreendido pela pandemia, que cortou a quase zero as receitas com turismo, essenciais para equilibrar o balanço de pagamentos do país.

A crise desenrolou-se progressivamente desde então, na forma de cortes em serviços públicos (inclusive Saúde, que eram considerados invejáveis) e dificuldade de importar bens e serviços essenciais. Grandes protestos eclodiram a partir de março, quando começou a faltar gasolina nos postos e remédio nos hospitais. A tentativa de reprimi-los com violência e toque de recolher fracassou. Em 20 de maio, o país deixou de fazer um pagamento de sua dívida externa e entrou em default. As linhas de crédito internacional caíram a zero. Encurralado, Rajapaksa resistiu menos de dois meses. Diante da falta de gasolina, as multidões que invadiram seu palácio e selaram seu destino chegaram à capital, Colombo, nos raros ônibus remanescentes mas em especial a pé ou de bicicleta.

A situação crítica de agora mostra como os países periféricos podem naufragar rapidamente, mas o Sri Lanka foi durante décadas um oásis de welfare state em meio à pobreza do chamado “subcontinente indiano”. Após a independência em relação ao Reino Unido (em 1948), aproximou-se da União Soviética e da China a partir dos anos 1960, adotando o nome de República Democrática Socialista do Sri Lanka. Manteve um parlamento mutipartidário. Aprofundou um sistema de Saúde Pública cujas origens remotam a 1858 (leia relatório da OMS). Até há pouco, 95% dos cuidados eram oferecidos em estabelecimentos do Estado. Os resultados são notáveis. A taxa de mortalidade infantil é, ainda hoje, de 7,5/1000 (contra 12,4/1000 no Brasil) e a de maternidade materna, de 0,3/1000 (contra 1,07/1000 aqui).Mas as políticas neoliberais dos últimos vinte anos corroeram o sistema. O país está à deriva. Reunido ontem (20/7), o Parlamento elegeu, como presidente-tampão, o primeiro-ministro Ranil Wickremesinghe. A escolha já provoca revolta nas ruas. O Sri Lanka e o mundo vivem tempos turbulentos. A Saúde Pública também.

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