O capitalismo filantrópico devasta a Saúde global

Debate na Fiocruz expõe as relações colonizadas presentes na “cooperação internacional” sanitária e aponta alternativa: as relações Sul-Sul, baseadas em troca de conhecimentos e no respeito à autonomia dos países envolvidos

Príncipe Felipe da Espanha e Bill Gates em 2006. Foto: Reuters
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Na última quinta-feira (8/9), o Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS) da Fiocruz promoveu o debate Cooperação Internacional em Saúde na Perspectiva do Sul Global, que juntou pesquisadores da instituição e membros de órgãos internacionais envolvidos na cooperação entre países.

Mediado por Regina Ungerer, médica e pesquisadora do CRIS, o evento online abordou as distintas formas de interação entre os países e pontuou limites da filantropia no setor, algo talvez um pouco distante da realidade brasileira, mas poderosa ferramenta política em países centrais do capitalismo.

Membro da Organização Mundial da Saúde (OMS) e diretor sub-regional para a América do Sul da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), Paolo Balladelli fez uma enfático alerta a respeito  dos perigos do que chamou de “capitalismo filantrópico”. Em sua visão, o fato de os magnatas do planeta contribuírem para a promoção da saúde não significa que devam orientar suas políticas.   

“‘Capitalismo filantrópico’ é uma definição já usada por diversos autores e pode ser uma via para redesenhar a governança na saúde, além de debilitar agências especializadas. Desvia uma agenda pública global e distorce prioridades dos países em desenvolvimento. A generosidade financeira dos doadores pode alterar o equilíbrio do exercício do poder dentro do sistema internacional”, explicou.

Tal compreensão ajuda a elucidar a importância da chamada colaboração sul-sul, eixo da discussão dos especialistas. Enquanto as cooperações norte-sul tradicionalmente significam aportes econômicos sob condicionantes pautadas pelos interesses do mercado, no caso da sul-sul trata-se de intercâmbios mais igualitários entre países que precisam cobrir suas deficiências históricas.  

“A cooperação sul-sul não é transferir recursos, mas conhecimentos”, explicou Ruy Pereira, embaixador e diretor da Associação Brasileira de Cooperação. Em sua análise, tal modalidade de interação entre países não deve exportar práticas próprias, mas colaborar de acordo com a especificidade de cada local.

“Estamos na Era de Ouro da filantropia. Calcula-se uma média de US$ 135 milhões anuais em doações entre 1998 e 2052, só nos EUA. Mas essa é uma tática elegante dos super-ricos para driblar a desregulação estatal e suas ineficiências ou para limpar a imagem das grandes corporações e seus executivos em relação a ações empresariais”, alertou Balladelli.

A ideia da cooperação sul-sul, em linhas gerais, colide com a tradição da dita “cooperação triangular”, na qual uma instituição financia um país ou governo local, mas exige a execução de uma determinada agenda política e econômica. Inevitável não pensar nos financiamentos de FMI ou Banco Mundial, que explicitamente os condicionam à privatização de um determinado ativo público, como uma companhia de água e saneamento.

Diante de tal histórico é que os pesquisadores fazem ressalvas ao capitalismo filantrópico. “A última assembleia da OMS estabeleceu que doações tentem atender objetivos básicos da organização, que se insiram na agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”, explicou Balladelli.

“Mas grandes doadores impõem modelo baseado no mercado ao gerirem recursos doados à saúde”, contextualizou o pesquisador, com experiência em trabalhos de cooperação em países da África e América do Sul.

Um dos responsáveis pela eliminação do contágio vertical de HIV (quando a gestante transmite a infecção para a criança) em países do Caribe, Godfrey C. Xuereb, doutor em Saúde Pública, especialista em diplomacia da saúde e responsável pela cooperação sul regional da OPAS, fala da necessidade em dar um passo além: “Queremos influenciar determinantes em saúde, para garanti-la como parte fundamental dos projetos de desenvolvimento social”.

Informe da Oxfam mostra que as dez maiores corporações do mundo têm mais receitas do que 180 países. Mas a desigualdade só aumenta, de maneira que o crescimento econômico não gera renda para os mais pobres. Devemos fortalecer financiamentos externos a países que precisam de melhorias no sistema de saúde sem impor pré-condições e devemos rever isenções fiscais que comprometam a capacidade de se garantir orçamentos adequados para a saúde”, resumiu Paolo Balladelli.

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