Escândalo das vacinas tem desfile de coronéis e outros personagens escusos

À CPI, Cristiano Carvalho detalha envolvimento de militares na negociação. Ele próprio teria sido indicado para representar a Davati por um coronel, cuja família tem ligações com os Bolsonaro

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O representante oficial no Brasil da Davati Medical Supply, Cristiano Carvalho, depôs ontem à CPI, complicando ainda mais a já emaranhada trama que coloca sob suspeita a compra de vacinas. Segundo ele, a empresa não procurou o Ministério da Saúde: foi procurada. “Quando puder me retorne, sou Roberto Ferreira Dias do Ministério da Saúde”. Essa mensagem, de 3 de fevereiro, teria sido o primeiro contato da história entre a pasta e a Davati, que não mantinha negócios com o ministério

Ainda de acordo com essa versão dos fatos, também não foi a Davati que foi atrás do PM Luiz Paulo Dominghetti, mas o policial que se apresentou, em fevereiro, dizendo ter uma “parceria” com a ONG Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), presidida pelo reverendo Amilton Gomes de Paula. O reverendo, por sua vez, teria recebido aval do governo federal para tratar da compra de vacinas. Em entrevista ao Estadão semanas atrás, o CEO da Davati Herman Cárdenas também foi nessa linha e disse que Dominghetti virou representante da empresa “a pedido” do Ministério da Saúde. A intermediação de Dominghetti e do reverendo Amilton entre Davati e ministério foi classificada pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), como “absolutamente nova”.

Enquanto isso, segundo Cristiano Carvalho, Dias continuava lhe mandando mensagens. Essa insistência deu base às promessas de Dominghetti e o representante da Davati passou a ver a história como uma oportunidade.

Carvalho declarou que nessas conversas Dias nunca mencionou propina. Mas que a situação foi relatada por Dominghetti, que usou o eufemismo “comissionamento extra” de US$ 1 por dose. De acordo com o representante da Davati, a proposta partiu do “grupo do Blanco”, em referência a pessoas ligadas ao coronel Marcelo Blanco, que até janeiro tinha sido subordinado a Dias no Ministério da Saúde, mas em fevereiro já tinha saído da pasta e aberto empresa de representação de insumos hospitalares. O coronel tinha uma posição “dúbia”, definiu Carvalho, porque, “parecia atuar como se ainda estivesse” no ministério.

Ele disse ainda que, na primeira vez que foi ao ministério, em 12 de fevereiro, participaram da reunião o reverendo Amilton, Dominghetti e nada menos do que quatro coronéis: Elcio Franco (então secretário executivo da pasta), Marcelo Pires (acusado pelos irmãos Miranda de fazer pressão no escândalo original, da Covaxin), Cleverson Boechat Tinoco Ponciano (coordenador-geral de Planejamento do ministério que também aparece no caso Covaxin) e Helcio Bruno presidente do Instituto Força Brasil. “São muitos coronéis e elcios“, brincou Carvalho.

O Instituto Força Brasil é uma entidade bolsonarista que tem como vice-presidente o empresário Otávio Fakhoury, e já esteve nos holofotes no inquérito das fake news que investiga o gabinete do ódio. De acordo com o depoimento de ontem, seria também o braço utilizado pela Senah para chegar ao alto escalão da Saúde. 

Segundo o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o Força Brasil patrocina um conjunto de contas em redes sociais como a página Crítica Nacional, que propagou notícias falsas sobre o uso de máscaras e a vacina da Pfizer.

Em nota, o Força Brasil afirmou que seu principal interesse na reunião do dia 12 de fevereiro era fazer lobby pela vacinação privada

Festival de intermediários

A Davati não tinha à mão nenhuma das 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca cuja venda seus representantes negociaram com o governo brasileiro em fevereiro e março deste ano. A afirmação é do CEO da empresa, Herman Cardenas, em entrevista à Folha.

De acordo com ele, havia “uma promessa de alocação das vacinas” feita por outra empresa cuja identidade ele não revela por suposto “sigilo contratual”. Essa empresa, sim, teria contato com a AstraZeneca. A Davati, diz, seria uma “facilitadora do negócio” entre a tal empresa e o governo federal, mediante uma comissão que Cardenas não revela de quanto seria. 

Segundo o empresário, Cristiano Carvalho seria apenas um vendedor autônomo que representou a empresa apenas nesta tentativa de negociação — e que criou site e e-mail da Davati no Brasil sem o seu conhecimento. Ele teria sido indicado por outro coronel, Glaucio Octaviano Guerra. 

Uma reportagem da Agência Pública puxou a ficha de Guerra, que é irmão de policiais com histórico de acusações de corrupção e ligações com a família Bolsonaro. Um desses irmãos, Glauco, chegou a ser preso no ano passado na Operação Mercadores do Caos, suspeito de integrar esquema de desvio de verbas na aquisição de ventiladores pulmonares pelo governo do Rio. Esse mesmo Glauco ajudou a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na tentativa de anular provas no caso da rachadinha. Ele, que era auditor aposentado da Receita, disse que teve seus dados acessados ilegalmente pela Receita. Esses dados, porém, foram acessados em uma investigação de enriquecimento ilícito.  Glauco foi demitido por improbidade administrativa, e teve a aposentadoria cassada.

E como só tem gente boa nessa história, durante seu depoimento ontem, Cristiano Carvalho admitiu que pediu indevidamente auxílio emergencial de R$ 600 no ano passado – não sem antes negar que tinha sido ele a solicitar o benefício.

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