Era uma vez um sonho de integração

Instituto criado para integrar políticas de saúde na Unasul vai encerrar suas atividades. Leia também: o esquema ilegal de produção e venda de cigarros no Sul, as contas-surpresa que não deixam as famílias em paz nos EUA; e muito mais

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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ERA UMA VEZ, UM SONHO DE INTEGRAÇÃO

O Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde anunciou ontem o encerramento de suas atividades. O fim está previsto para 30 de junho. O ISAGS, com sede no Rio, surgiu em 2011 com o objetivo de integrar as políticas de saúde dos países da Unasul. A organização intergovernamental, que tinha um foco menos comercial (por isso se distinguia do Mercosul) e mais desenvolvimentista está sob ataque desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência. Em abril, o Brasil formalizou a decisão de sair da Unasul – numa debandada que incluiu a saída de Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru. Os governos desses países querem criar um novo fórum, chamado Prosul, que também pretende abordar a saúde, mas de “forma flexível” (seja lá o que isso quer dizer). 

Em quase oito anos de atuação, o ISAGS realizou pesquisas pioneiras. No site do Instituto, é possível encontrar uma descrição detalhada do sistema de saúde do Suriname, país que muita gente nem sabe que fica na América do Sul. Há estudos comparativos sobre como os 12 países sul-americanos organizaram suas  
políticas de vigilância sanitária, epidemiológica e ambiental ou sua atenção primária. O ISAGS também coordenava um conjunto de redes e grupos de trabalho temáticos com o objetivo de promover parcerias e troca de experiências na região. Na Assembleia Mundial da Saúde, o organismo articulava posições conjuntas como tática para ter mais peso no debate, dominado pelos países mais ricos. Dessa maneira, conseguiu pautar o problemático acesso a medicamentos nas nações pobres e criticar a proposta de cobertura universal da saúde defendida pela própria OMS, identificada com a promoção dos seguros privados em substituição à construção de sistemas nacionais públicos. O Instituto teve como primeiro diretor-executivo o ex-ministro de Saúde José Gomes Temporão. Atualmente, é dirigido pela ex-ministra do Equador, Carina Vance.

ESQUEMA ILEGAL

O Grupo de Investigação da RBS, espécie de Spotlight brasileiro,  acompanhou durante três meses um esquema ilegal de produção e distribuição de cigarros no Rio Grande do Sul. Antes, o produto chegava contrabandeado do Paraguai. De uns anos para cá, a tática mudou e os criminosos têm instalado fábricas em terras tupiniquins para eliminar a perigosa etapa da passagem do cigarro pela fronteira.

Quinze fábricas foram desbaratadas pela polícia entre 2012 e 2018. Nelas, a força de trabalho sofre as consequências da ilegalidade. Geralmente, se contrata paraguaios, que são submetidos a longas jornadas e precária rotina, como dormir e fazer as refeições no chão da fábrica – todas condições análogas à escravidão.  

Segundo os repórteres, os comerciantes gaúchos são procurados pelos criminosos para escoar a produção em suas lojas. Alguns são convencidos pelos lucros da venda dos cigarros piratas, outros são coagidos mesmo. Algumas vezes, acontecem as duas coisas. “Com cigarro fabricado no Brasil tu ganhas R$ 0,25 por carteira. Paga R$ 7,50 e vende a R$ 7,75. No paraguaio, paga R$ 2,10 pela carteira e vende por R$ 3,50, R$ 4… Tem muita procura. Eu vendia uma caixa por semana, com 500 maços. Pagava R$ 1,1 mil por ela. Chegou um cara oferecendo, peguei. Comecei a comprar. Aí fiquei com medo… O sujeito me disse: ‘Melhor tu continuar vendendo. É bom para ti. Entenda como quiser’”, revelou uma fonte do Vale do Taquari, que descreve: “Eles só vendem marca paraguaia, em vários lugares da cidade. A cada dia aparecia um entregador diferente. Carro e moto diferente. Dinheiro na mão, nada de crédito. É um esquema muito bem organizado. E não é só aqui.”

A pauta começou a ser apurada no fim do ano passado, antes do governo Bolsonaro tomar posse, portanto. Agora, no contexto em que Sergio Moro usao contrabando e o comércio ilegal como justificativa para estudar a redução do preço dos cigarros, é necessário alertar: não é assim que se avança na política de saúde.  

O MAIS CARO DO MUNDO

Uma bebê brasileira integra o estudo clínico do medicamento mais caro do mundo. Falamos dele por aqui na semana passada. É o Zolgensma, primeira terapia gênica aprovada para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME). Ele custa 2,125 milhões de dólares, ou R$ 9 milhões. A pernambucana Laura Ferreira Carvalho foi diagnosticada com AME aos 34 dias de vida, graças a um exame de DNA. A família soube pela neurologista que a Avexis, empresa que desenvolveu o medicamento e foi adquirida pela Novartis, estava selecionando bebês com até 42 dias de vida para o estudo clínico, no qual o Zolgensma seria oferecido gratuitamente. Numa rápida mobilização, conseguiram levantar o dinheiro necessário para a viagem aos EUA e todos os outros custos, já que o estudo foi conduzido no Massachusetts General Hospital, em Boston. Até agora, Laura que está com cinco meses, vem respondendo bem ao medicamento e já consegue ficar de bruços e segurar a cabeça.

“A AME é causada pela ausência ou defeito no gene que produz SMN, uma proteína que ‘protege’ os neurônios motores – justamente os responsáveis por levar o impulso nervoso da coluna vertebral para os músculos. Sem essa proteína, os neurônios morrem e os impulsos não chegam, o que provoca uma perda progressiva da função muscular e as consequentes atrofia e paralisação dos músculos, afetando a respiração, a deglutição, a fala e a capacidade de andar”, explica a repórter Fernanda Bassete na Veja. O medicamento da Novartis fornece uma cópia funcional do gene SMN humano para deter a progressão da doença. A medicação é administrada em uma única infusão intravenosa, criada para manter os efeitos a longo prazo. A Avexis afirma que acompanha crianças que receberam a injeção há quase cinco anos e, nesse prazo, não se observou regressão das conquistas na função motora, como sentar, falar e caminhar.

Estima-se que um em cada 10 mil nascidos tenham a doença e que existam cerca de oito mil casos no Brasil. Mais um caso em que a transparência nos custos de pesquisa, testes e produção do medicamento ajudariam a entender o quanto da soma milionária cobrada pelo Zolgensma irriga a maximização de lucros da Novartis.

SURPRESAS

Se combinar direitinho, dá pra ter toda semana uma notícia de alguém nos EUA que, mesmo com plano de saúde, foi surpreendido por cobranças altíssimas após internações e/ou problemas graves de saúde. Ontem, por exemplo, saiu no Guardian essa história tristíssima da família que, três anos após a morte do filho de sete meses, está às voltas com dívidas de centenas de milhares de dólares. Várias das cobranças nem fazem sentido.

O problema está ganhando força em Washington. Deputados e senadores, tanto democratas quanto republicanos, buscam formular leis que deem conta do problema. Trump cobrou isso no mês passado. Mas não é simples, conta  a repórter Rachel Bluth da Kaiser Health News. Médicos e hospitais “estão preocupados em não serem reembolsados ​​em uma taxa alta o suficiente para compensar seus serviços”, enquanto as companhias de seguros “estão preocupadas de isso levar a custos médicos mais altos e gerar inflação no setor”. O calendário legislativo, apertado e pressionado por outras questões, é outro obstáculo.

PORTABILIDADE

Novas regras de portabilidade para planos de saúde começaram a valerontem. Dentre as novidades, a ANS determinou que beneficiários de planos coletivos empresariais possam mudar de produto ou operadora sem cumprir carência, igualando os direitos que já valiam para quem tem plano individual ou coletivo por adesão (de sindicatos). Quem se aposentou ou foi demitido poderá manter o plano de saúde da empresa e também poderá optar por um produto mais barato sem prazo extra de carência. O contrário também foi permitido: quem desejar migrar para um produto com cobertura maior (como de um plano ambulatorial para um que também tenha atendimento hospitalar) pode fazê-lo. Antes, era exigida a compatibilidade de cobertura. Mas nesse caso, o novo plano precisa custar o mesmo ou menos do que o anterior – o que pode ser um tanto impossível.

ERA CONTROVERSO, FICOU PIOR

A experiência do cientista chinês He Jiankui com a criação dos primeiros bebês geneticamente modificados gerou semanas de intensos debates no mundo inteiro no ano passado. O alvoroço tinha muitas razões de ser. Afinal, foi alterado o DNA de humanos, com consequências desconhecidas para as meninas e seus descendentes. Um estudo divulgado ontem traz uma delas à luz, e as notícias são más. Com o objetivo de proteger as crianças contra o HIV, Jiankui introduziu nos embriões um gene para produzir uma variante genética conhecida por ter esse efeito. Porém, a nova pesquisa aponta que pessoas com essa variante têm uma taxa de mortalidade 21% maior do que as demais.

LÁ TAMBÉM

No México, López Obrador foi eleito presidente no ano passado sob grandes expectativas da esquerda, mas a situação não está nenhum céu de brigadeiro. A Comissão Nacional de Direitos Humanos apresentou seu informe anual e teceu várias críticas à gestão, especialmente por conta da austeridade econômica e da relação que isso tem com a garantia à saúde: “Há áreas em que a alocação de recursos públicos não pode depender apenas de cálculos econômicos ou administrativos, como os serviços públicos de saúde (…) . Não há economia, poupança ou medida de austeridade que compense ou justifique que a saúde, integridade ou vida das pessoas seja colocada em risco ou comprometida desnecessariamente. Enfraquecer ou tornar os sistemas de saúde pública ineficazes implica uma violação dos direitos humanos “, acusou a Comissão.

É PRA SEMPRE

PFAS é uma sigla que identifica substâncias perfluoroalquiladas e polifluoroalquiladas. São quase cinco mil compostos sintéticos muito difíceis de decompor, que persistem no meio ambiente e, se os ingerimos, nos nossos corpos também. São por isso chamados de químicos eternos. E fazem mal: estão associados a doenças no fígado e na tireoide, à diminuição da fertilidade, à obesidade, cânceres, supressão hormonal e colesterol alto.

Mesmo assim, estão por toda a parte em produtos antiaderentes, embalagens de alimentos, espumas de combate a incêndio e produtos de limpeza. E já é sabido, há tempos, que PFAS estão sendo encontrados no nosso organismo. Em 2007, um estudo estimou que eles podiam ser detectados no sangue de 98% da população dos EUA. 

A novidade é que a FDA, agência americana, enfim reconheceu que esses produtos químicos foram detectados em alimentos. Após uma investigação, ela vai lançar essa semana um site com as descobertas, e a CNN adianta algumas. Ao testar água, ração animal e amostras de leite de uma fazenda onde eram usadas espumas de combate a incêndio, por exemplo, altos níveis de PFAS foram encontrados em todas as amostras. Em outra fazenda, próxima a uma fábrica que produz PFAS, vegetais estavam contaminados. E, ao testar 91 mostras de alimentos consumidos em todo o país em 2017, a FDA encontrou PFAS em dez, mas em níveis não considerados preocupantes. 

CADUCOU 

A MP que alterava o Código Florestal – editada por Temer no fim do ano – caducou ontem porque não foi votada no prazo pelo Senado. O texto aprovado pela Câmara ficou conhecido pela anistia a ruralistas: reduzia a obrigação de eles recuperarem áreas desmatadas, permitindo acesso a créditos rurais. O governo prometeu editar em breve uma nova MP sobre isso, já com as mudanças da Câmara.

SALLES QUESTIONADO

O Tribunal de Contas da União abriu uma representação para apurar ineficiência da gestão Ricardo Salles na preservação do meio ambiente (ou a eficiência em destruir e desmontar). O pedido partiu do subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado, que pediu a apuração de três pontos: o trabalho do ministério no combate ao desmatamento, a liberação de agrotóxicos e a alegação da pasta de que há “inconsistência” em repasses ao Fundo Amazônia, instrumento de captação de doações estrangeiras para a proteção da floresta.

CONTRA A MUDANÇA

Na Câmara, um projeto de decreto legislativo (PDC 122/19) pretende sustar a nova Política Nacional de Drogas. Assinada por Ivan Valente, do PSOL, e subscrita por mais nove deputados do partido, ela tramita naquela Casa: vai ser analisada pelas comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, e em seguida pela de Constituição e Justiça e de Cidadania. Depois, seguirá para o Plenário. A ver. 

APELO

Ontem, o Conselho Nacional de Direitos Humanos recomendou que o Ministério da Saúde reveja a retirada do termo “violência obstétrica” de seus documentos. Para o Conselho, “embora não haja tipificação específica na legislação brasileira, o termo é amplamente utilizado no âmbito acadêmico, jurídico, social e institucional”, justamente para dar visibilidade a práticas dolorosas que trazem risco de complicações e são consideradas desnecessárias.

ESCOLHAS…

A atriz Regina Duarte vai protagonizar uma campanha contra o suicídio e a automutilação feita pelo Ministério dos Direitos Humanos de Damares Alves.

DINHEIRAMA

O governo Bolsonaro já gastou R$ 6,5 milhões com campanhas a favor da reforma da Previdência. Só o merchandising feito por Ratinho em seu programa no SBT custou R$ 268,5 mil à Viúva.

INSULINA

A Anvisa aprovou a comercialização de uma insulina inalável, desenvolvida para substituir as injeções. O produto não deve ser usado por fumantes, nem pessoas com problemas pulmonares crônicos.

AGENDA

Hoje termina a fase de audiências públicas da comissão especial da Câmara que analisa a reforma da Previdência. A pesquisadora da Fiocruz Sonia Fleury  vai falar sobre os problemas da capitalização, tendo este artigo por base. A programação do dia está aqui.

E daqui a pouco também acontece, na Fiocruz, o debate ‘Censo 2020 e saúde: importância para evidências científicas e políticas púbicas’.

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