Doenças negligenciadas: desafios em meio à pandemia
Ignoradas pela medicina comercial, elas afetam 1,7 bilhão de pessoas em todo o planeta e provocam cerca de 500 mil mortes anualmente. Em grupo da OMS dedicado à combatê-las, Fiocruz tem um papel importante
Publicado 02/02/2022 às 07:00 - Atualizado 02/02/2022 às 10:15
O último domingo (30/1) marcou o primeiro Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas, criado no ano passado pela Assembleia Mundial de Saúde, para que os governos e sistemas de saúde se atente para as mais de 20 patologias que atingem as populações mais vulneráveis, como a doença de Chagas, a dengue, a leishmaniose, a hanseníase e a esquistossomose. Elas afetam 1,7 bilhão de pessoas em todo o planeta, e provocam cerca de 500 mil mortes anualmente, segundo dados da organização Médicos Sem Fronteiras.
Em 2020, devido à pandemia de covid, interrompeu-se a maioria dos programas de eliminação dessas doenças, bem como campanhas de administração de medicamentos em massa, pesquisas e rastreamento ativo de casos na América Latina. É um problema alarmante pois, por atingirem normalmente populações e países pobres, já enfrentam uma crise crônica de desinteresse pelas indústrias farmacêuticas: apenas 4% dos medicamentos aprovados recentemente são para as chamadas doenças tropicais negligenciadas.
Dez das doenças listadas nessa categoria afligem o Brasil. As que mais ocorrem são a hanseníase que, segundo o Ministério da Saúde, atingiu 312 mil casos na última década; e a doença de Chagas, que afeta, segundo estimativas, entre 2 e 4,6 milhões de brasileiros – muitos deles sem diagnóstico – causando a morte de mais de 6 mil pessoas por ano. Um novo grupo de trabalho da Organização Mundial de Saúde (OMS) para doenças negligenciadas fez sua primeira reunião da última sexta-feira (28/1) e conta, entre os 14 membros da equipe, com Thiago Moreno L. Souza, pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz).
“O grupo tem um enfoque maior no estudo de produtos para as doenças negligenciadas. Boa parte desse esforço deve ser voltado tanto para o reposicionamento, quanto para a identificação de novos compostos que estão na eminência de avançar na investigação clínica”, explica Thiago. Ele conta que a pandemia trouxe lições e oportunidades importantes para tratar também outras doenças, que envolvem vírus e protozoários. Explica que existem as chamadas “substâncias órfãs”, que foram aprovadas para em uma determinada fase de testes, mas que não prosseguiram. São moléculas já consideradas seguras, e que podem ser redirecionadas para outras enfermidades.
É neste contexto que vale mencionar a importante conquista do Projeto Selênio, liderado pela Fiocruz em parceria com o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), que avançou mais um passo em busca de um tratamento para problemas no coração causados pela doença de Chagas crônica. O primeiro ensaio clínico com suplementação de selênio para pacientes com cardiopatia chagásica foi publicado na revista científica internacional EClinicalMedicine apontou um potencial sucesso para o tratamento. O resultado positivo indica que novos estudos devem ser realizados. Também há um estudo inédito para um tratamento da hanseníase, também liderado pela Fiocruz.
Aliás, vale aqui uma informação curiosa: segundo a OMS, a picada de cobra é considerada como uma doença tropical negligenciada. Mata entre 81 mil e 138 mil pessoas por ano e causa cerca 400 mil casos de incapacidade permanente, como amputação ou perda de visão. No Norte do Brasil, por exemplo, existe a dificuldade de deslocamento a ser percorrido e grandes distâncias entre postos de saúde. O tempo ideal estimado para a aplicação de um soro antiofídico seria de duas horas. No Maranhão, 30% da população está a mais de duas horas do atendimento mais próximo.