Do lixo ao prato: como o governo Bolsonaro entende o combate à fome

Proposta de Paulo Guedes – doar restos da classe média para “mendigos e desamparados” – põe foco no desperdício individual. Mas foi o desmoronamento de políticas públicas que colocou Brasil de volta ao rumo da insegurança alimentar

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Paulo Guedes defendeu ontem que a comida descartada pela classe média seja reaproveitada em doações para a população pobre. “Nós notamos o desperdício no Brasil, não só desde lá da produção, durante o transporte, mas até chegar no nosso supermercado e até chegar nas nossas mesas. Você vê um prato de um classe média europeu, que já enfrentou duas guerras mundiais, são pratos relativamente pequenos. E os nossos aqui, nós fazemos o almoço onde às vezes há uma sobra enorme, e isso vai até o final, que é a refeição da classe média alta”, disse ele, no 1° Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento, organizado pela Associação Brasileira dos Supermercados (Abras).

Ele propõe “utilizar esses excessos” de outra maneira: “Com toda aquela alimentação que não foi utilizada durante aquele dia num restaurante, aquilo dá para alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados. É muito melhor do que deixar estragar essa comida toda, que estraga diariamente na mesa das classes mais altas”; “A gente pode dar um incentivo para que tudo isso seja transformado e justamente canalizado para os programas sociais. Como se fossem postos de atendimento, para que isso possa ser endereçado aos mais necessitados”.

A bola foi levantada pela ministra da Agricultura Tereza Cristina, que, logo antes, mencionou o desperdício de comida como um dos grandes problemas brasileiros. Ela sugeriu a criação de um grupo interministerial – com as pastas da Economia, Agricultura e Cidadania – para discutir, por exemplo, a ampliação do prazo de validade dos alimentos. Paulo Guedes quer também ver os supermercados crescendo ainda mais e “abrindo mais postos de atendimento”… E, claro, defendeu que para isso é preciso baratear a mão de obra. “O Brasil tem uma arma de destruição em massa de empregos, que são os encargos sociais e trabalhistas. Nós precisamos atacar isso”.

É essa a ideia que o governo Bolsonaro faz do que seria um bom combate à fome, que já crescia no Brasil antes da covid-19 e chegou a um poço sem fundo na pandemia. O mesmo governo que, desde o começo, atuou sistematicamente para desmontar as políticas públicas que tiraram o país do Mapa da Fome em 2014. Como denunciou esta antiga reportagem de O Joio e o Trigo, por exemplo, em dezembro de 2019 o país já não tinha quase nada em seus estoques públicos de feijão e arroz – sendo que o mecanismo dos estoques é fundamental para o controle dos preços.

Não que o problema do desperdício seja uma abstração completa. Ele existe tem sido abordado há tempos pela FAO (a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura). Lidar com isso é, inclusive, uma meta definida dentro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Ainda em 2011, a FAO apresentou um relatório estimando que nada menos que um terço de toda a comida produzida no mundo vai para o lixo. Mas, ao contrário do que diz Paulo Guedes, é nos países mais ricos (como os europeus, que passaram por guerras mundiais) que se dá o maior desperdício na fase do consumo. Na América Latina, as perdas se dão principalmente durante os estágios iniciais e intermediários da cadeia de abastecimento alimentar. Muito menos comida é desperdiçada depois que chega à casa das pessoas.

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