“Escolhi Esperar”: o avanço da pauta religiosa nas políticas de saúde em SP

Com votação marcada para hoje, PL proposto por vereador cristão tem atrás de si contexto de investidas centradas na ideia de abstinência sexual como forma de evitar gravidez na adolescência

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A cidade mais populosa e rica do Brasil pode ter, em breve, uma política pública de saúde inspirada em uma campanha evangélica. A Câmara Municipal de São Paulo vota hoje em caráter definitivo o projeto de lei 813, que cria um programa de “prevenção e conscientização sobre gravidez precoce” batizado sugestivamente de “Escolhi Esperar”.

O contexto diz tudo nesse caso. “Eu Escolhi Esperar” é uma campanha criada em 2011 pelo pastor evangélico Nelson Júnior que prega abstinência sexual antes do casamento. Em 2019, primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, uma ministra “terrivelmente evangélica” recebeu carta branca para misturar religião e Estado. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos começou a bolar uma campanha pública pautada pela ideia de abstinência. “Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois” foi lançada em fevereiro de 2020. Na ocasião, Damares Alves afirmou que se tratava de um primeiro passo na construção de um “programa de prevenção ao sexo precoce”.

A campanha, com custo anunciado de R$ 3,5 milhões aos cofres públicos, foi lançada em conjunto com o Ministério da Saúde sem qualquer menção a métodos contraceptivos. Muito questionado por isso na época, o então ministro Luiz Henrique Mandetta saiu-se com essa: “Um dos debates é sim de você chegar e falar que vai se reservar o direito de ter atividade sexual no momento que achar melhor. Eu não entendo isso como abstinência, eu entendo como comportamento mais responsável nas consequências“.

Saída semelhante é adotada pelo autor do PL 813, vereador Rinaldi Digilio (PSL). “O adolescente e a adolescente continuarão a ter acesso a camisinhas, anticoncepcionais, DIU e todos os métodos contraceptivos, mas também terão orientação por palestras ou individualmente, feitas por profissionais da saúde, para alertar para os riscos da gravidez precoce, que é consequência de relações sexuais precoces”, diz ele – que acusa vereadores da oposição de querer “matar crianças nos ventres das mães” por conta da tramitação de outro projeto, o 168/21, que cria o Programa de Atenção Humanizada ao Aborto Legal e Juridicamente Autorizado em São Paulo.

Originalmente, o PL 183 – apresentado em 2019 pelo “vereador de direita e cristão”, como Digilio se descreve –, criava a “Semana Escolhi Esperar” de conscientização e prevenção de gravidez precoce e chegou a contar com amplo apoio, inclusive da oposição. No primeiro turno da votação, que aconteceu em 14 de agosto do ano passado, só o vereador Daniel Annemberg (PSDB) votou contra.  

A coisa mudou de figura porque Digilio apresentou um substitutivo que transforma a semana em um programa ou política de caráter permanente. “O próprio Executivo sugeriu que deixasse de ser uma data comemorativa”, conta o vereador, fazendo referência ao novo prefeito de SP, Ricardo Nunes (MDB), que assumiu como titular da prefeitura paulista com a morte de Bruno Covas, e é ligado à bancada religiosa. Seu gabinete já deu parecer favorável ao PL 813. 

Desperta, a oposição agora acredita que a criação do programa marcará o início de uma “guinada conservadora” da capital paulista. Na avaliação da vereadora Juliana Cardoso (PT), Ricardo Nunes “é extremamente vinculado à Igreja Católica conservadora” e o PL “é o primeiro de uma boiada” de pautas conservadoras que parte da bancada governista tentará aprovar nos próximos meses.

O PT e o PSOL apresentaram um texto substitutivo, que pelas últimas notícias ainda não tinha alcançado as 19 assinaturas necessárias para ir à votação, e inclui o “respeito à autonomia” do público-alvo como forma de evitar a pregação da abstinência sexual e a ampliação de oferta de métodos contraceptivos a adolescentes. Também troca o nome do programa ou política a ser criado. “Queremos que o programa se chame ‘Escolhi Informar’”, disse a líder da bancada do PSOL, Luana Alves. Mas a diferença pode ficar só na mudança de nome, que foi negociada ontem entre a bancada evangélica, o governo e Rinaldi Digilio.

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