Dinamarca oferece pistas sobre covid endêmica

Casos aumentam lentamente no país que tem 75% da população totalmente vacinada e, desde 10 de setembro, reabriu completamente

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Vários cientistas têm manifestado uma avaliação que pode gerar desconforto: a de que a covid-19 vai se tornar uma doença endêmica, com o SARS-CoV-2 circulando por muito tempo, talvez para sempre. Embora haja várias hipóteses, não se sabe ao certo como essa história vai se desenrolar. Mas a reportagem da Science sugere que a situação da Dinamarca nos próximos meses pode oferecer pistas sobre o que esperar em um cenário de alta cobertura vacinal – especialmente entre os grupos mais vulneráveis – e retirada completa das restrições.

Desde o dia 10 de setembro, a vida no país voltou ao normal. Todas as atividades estão liberadas e não há nenhuma imposição de máscaras. Cerca de 75% da população está totalmente vacinada. Considerando apenas maiores de 18 anos, são 88%; entre aqueles com mais de 60 anos, são nada menos que 97%, e a oferta de terceiras doses para estes começou no mês passado. A matéria compara esse número com o de Israel, que reabriu totalmente em junho e 90% dessa faixa etária está coberta. Parecem percentuais próximos, mas não são: na Dinamarca, de cada 100 idosos, apenas 3 estão desprotegidos. Em Israel são 10 – mais que o triplo.

O número de casos na Dinamarca tem aumentado lentamente desde a reabertura. Se a situação desandar, o governo considera retomar algumas restrições. Mas a expectativa é que o país atinja em breve 90% de cobertura para os maiores de 12 anos e que a covid-19 possa ser tratada como a gripe e outras doenças infecciosas. “Estamos pensando neste vírus agora como uma espécie de versão adulterada do original. Ele teve seus dentes arrancados com a vacina. O que resta não é muito pior do que as doenças a que estamos acostumados e para as quais não fechamos escolas, como a gripe sazonal ou talvez a pandemia de influenza de 2009”, diz Lone Simonsen, epidemiologista da Universidade de Roskilde. Se isso vai mesmo acontecer, só o tempo dirá.

Especialistas imaginam alguns cenários possíveis para a endemicidade da covid-19. Ela provavelmente não será como o sarampo – que é muito infeccioso, porém deixa os infectados imunes para o resto da vida –, mas pode seguir o caminho de outros vírus. O mais fácil de lidar seria provavelmente o dos coronavírus que causam resfriado. No caso deles, nossa proteção contra infecções cai com o tempo, mas não contra as formas graves (então ficamos resfriados repetidas vezes, mas na vida adulta não acontece nada muito sério).

Outra possibilidade é que a proteção contra formas graves também caia e, nesse caso, por mais estranho que pareça, pode ser vantajoso que as pessoas (vacinadas, é claro) tenham contato com o vírus várias vezes, em vez de evitá-lo. Isso porque a vacina daria uma proteção inicial muito forte contra hospitalizações e mortes, que poderia cair com o tempo mas seria reforçada a cada reinfecção. Para os pesquisadores ouvidos pela Science, o comportamento mais difícil de lidar é o do vírus da gripe. Assim como os dos resfriados, ele infecta múltiplas vezes – mas as reinfecções costumam ser mais graves, porque o vírus evolui mais rápido e escapa da imunidade. Num país como os Estados Unidos, onde há bastante resistência da população às vacinas, o SARS-CoV-2 poderia causar de 50 a 100 mil mortes por ano.

Aceitar que a covid-19 não irá embora significa admitir que muitas mortes anuais continuarão acontecendo, e estabelecer o limite aceitável é uma decisão delicada, como aponta a Wired. No Reino Unido, mais de 25 mil pessoas morrem por ano de gripe. Nos Estados Unidos, esse número costuma ficar entre 30 e 50 mil e, em todo o mundo, são entre 300 e 600 mil. Mesmo que a gripe seja um problema administrável, não é trivial – e a covid-19 endêmica nesses moldes continuará sendo um problema importante de saúde pública. 

Será que, além da vacina, outras medidas que podem evitar a transmissão do SARS-CoV-2 – como ênfase na ventilação e sistemas de testagem – vão ser adotadas? Voltando à Science, Trevor Bedford, do Fred Hutchinson Cancer Research Center, acha pouco provável, justamente por comparar com o que já acontece em relação à influenza. “Nunca fizemos nada a respeito [da gripe]. As pessoas ainda aparecem para trabalhar doentes e assim por diante. Não sei se 50 mil pessoas morrendo por ano de covid seriam de alguma forma diferentes”. Bem que poderia acontecer o contrário: o que se aprendeu com a covid-19 ajudando a mitigar todos os outros vírus respiratórios.

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