Como o Chile combate os ultraprocessados

Nos últimos anos, país reduziu consumo de sódio, açúcar e gordura. Para isso, foi à guerra contra a indústria alimentícia: restringiu fortemente a publicidade e impôs grandes avisos nos rótulos de produtos. A próxima batalha: os meios digitais

Foto: Unsplash
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Por Francesca R Dillman Carpentier, Lindsey Smith Taillie & Teresa Correa, no Health Policy Watch | Tradução: Guilherme Arruda

Os ultraprocessados estão tomando o lugar dos alimentos mais saudáveis na maior parte do mundo. Cafés da manhã com altas doses de açúcar, almoços com altas doses de sódio, tudo embalado em plástico – são produtos transformados por meio de processos industriais e incrementados com aditivos que os tornam altamente agradáveis ao paladar.

O consumo generalizado desses alimentos e bebidas de alta concentração de sal, açúcar e gorduras saturadas está ligado a 11 milhões de mortes evitáveis por ano, segundo estimativas.

A publicidade intensa é central para uma estratégia de aumento do consumo de alimentos ultraprocessados – e as crianças são seus alvos mais vulneráveis. Ainda que diversos países tenham implementado estratégias de combate à indústria alimentícia, como restrições de publicidade, avisos e impostos, a abordagem do Chile se destaca entre as demais.

Em 2016, o país aprovou uma lei que vai além das legislações gradualistas e que apostam em uma só abordagem – mais comuns ao redor do mundo –, como as que prevêem a introdução de avisos nas embalagens ou a taxação de bebidas açucaradas. A lei chilena combina todos esses métodos com a determinação de restrições à publicidade de alimentos e bebidas não-saudáveis para crianças e a proibição de sua venda em escolas.

Ampla, a lei chilena cobre não só o que comem e bebem as crianças, mas sua exposição aos ultraprocessados por meio da mídia.

Essas políticas levaram a luta contra os males causados pelos ultraprocessados às crianças do Chile a um novo patamar. O mundo todo pode aprender com o exemplo chileno.

Grandes reformas na política alimentar

Em 2016, quase metade das crianças chilenas estavam obesas ou com sobrepeso. Nesse mesmo ano, o Chile aprovou uma reforma em sua política alimentar por meio de uma grande e abrangente lei.

A Lei de Rotulação e Publicidade de Alimentos combate dietas não-saudáveis de três formas. Em primeiro lugar, ela determina que sejam colocados grandes avisos pretos e octogonais nas embalagens de produtos com altas quantidades de açúcar, calorias, sódio e/ou gorduras saturadas.

Em segundo lugar, ela proíbe a publicidade desses produtos em programas infantis nos meios digitais e na TV, cinemas e locais de grande circulação de crianças.

Em terceiro lugar, as empresas de alimentos e bebidas ficam proibidas de usar ferramentas publicitárias voltadas para crianças, como personagens de desenhos animados e mascotes. O Tigre Tony, por exemplo, não aparece mais na embalagem do Sucrilhos no Chile.

No ano de 2018, foi imposta uma suspensão total da veiculação de publicidade de produtos não-saudáveis na TV entre 6 horas da manhã e 10 horas da noite. Por fim, o governo proibiu a venda e a distribuição gratuita de ultraprocessados em escolas e creches.

Alertas nas embalagens chilenas

O crucial do texto da lei é que ele exigiu que o ministério da Saúde implementasse as novas regulamentações em até um ano, além de criar penas severas para os que as infringissem. A implementação dos limites rígidos de nutrientes foi flexibilizada para um período de três anos, como concessão secundária à indústria alimentícia.

Sete anos após a adoção dessas políticas pelo Chile, já existe um grande número de indícios de que elas funcionaram como desejado. A lei fornece um primeiro exemplo para políticas globais de alimentação saudável

Os números não mentem

Até aqui, apenas um punhado de estudos examinou a relação entre políticas de alimentação como essas e a redução da obesidade e outras doenças, especialmente entre crianças. Ainda que seja verdade que mudanças na taxa de obesidade só apareçam com o tempo, poucas políticas de hoje em dia tiveram impactos significativos sobre a dieta da população ou o comportamento da indústria, seja porque não partiram de uma estratégia tão ampla como a chilena ou porque não possuíam mecanismos firmes de implementação.

Porém, quando uma lei é tão estrita e rigorosamente implementada quanto a do Chile, a curto prazo já é possível perceber os efeitos de sua implementação. Isso permite que pesquisadores e ativistas façam inferências razoáveis sobre quantas vidas serão salvas por essas políticas, bem como seu custo-benefício.

Um estudo recentemente publicado no International Journal of Behavioral Nutrition and Physical Activity por estudiosos da Universidade da Carolina do Norte, da Universidade do Chile e da Universidade Diego Portales descobriu que a lei do Chile reduziu significativamente a exposição das crianças a propagandas de comidas não-saudáveis.

Desde que a lei entrou em vigor em 2016, houve uma queda de 73% na exposição das crianças chilenas à publicidade televisiva de alimentos e bebidas restritos. Além disso, as propagandas na TV de alimentos e bebidas não-saudáveis caíram em 64% até 2019, bem como o número de comerciais que usavam conteúdo proibido (como personagens de desenhos animados) caiu em 67% no mesmo período.

Novo rótulo do Sucrilhos no Chile.

Essas conclusões se somam aos crescentes indícios de uma enorme queda nas compras de alimentos que contém “nutrients of concern” [nutrientes preocupantes, em tradução livre] pelos chilenos desde a aprovação da lei, de acordo com um estudo de 2021 do The Lancet.

Essa importante queda, vista a partir de 2016, foi maior que as que foram vistas após a implementação de outras leis, focadas apenas no consumo de bebidas açucaradas, pelo Chile. No país, as calorias compradas caíram em 3,5%, o açúcar comprado baixou em 10,2%, as gorduras saturadas foram reduzidas em 3,9% e o sódio, em 4,7%.

O mais importante é que a queda na aquisição de comidas não-saudáveis foi ainda mais pronunciada no caso dos produtos com quantidades mais altas desses nutrientes. Outras pesquisas também perceberam expressivas quedas nas taxas de açúcar e sódio em alimentos embalados, já que a indústria começou a reformular seus produtos para se adequar às novas exigências do Chile.

Os desafios de um cenário midiático em transformação

Ainda que a eficácia da restrição sobre a publicidade tenha sido provada pelo Chile, especialmente quando implementada junto de avisos claros nos rótulos e impostos sobre bebidas açucaradas, ainda há alguns desafios a serem superados.

As restrições de horário sobre as propagandas na TV e nos meios tradicionais serviram para reduzir a exposição das crianças a elas, mas essas políticas precisam conseguir abarcar todas as formas de mídia com que as crianças se deparam – uma proposta desafiadora no atual cenário midiático em constante transformação.

As regulamentações devem levar em conta o fato de que as crianças assistem a muito mais televisão do que só a programação infantil. O último guia da OMS para políticas de proteção à infância contra os impactos danosos do marketing alimentício ressalta a importância de não restringir as limitações de publicidade ao pequeno nicho televisivo dos canais infantis, mas levá-las a todos os canais que as crianças possam assistir.

Ainda que pareça uma mudança de texto insignificante, ir além dos programas infantis na regulamentação da publicidade seria um importante próximo passo para essa política.

Os ativistas e formuladores de políticas públicas também sabem que precisam responder ao enorme crescimento da publicidade de alimentos nos meios digitais e nas redes sociais. A indústria não se renderá sem luta, ainda mais quando já são visíveis as consequências de violar as leis.

A publicidade infantil já se adaptou, migrando para os videogames e para plataformas como o TikTok, o Youtube e o Twitter. Ainda que a política de regulamentação chilena abarque as mídias digitais, o conceito de “voltado para crianças” só cobre uma fração do que elas acessam na internet, especialmente nas redes sociais.

As restrições futuras sobre a publicidade se beneficiarão de estudos sobre as legislações que já proíbem outras indústrias, como a do tabaco, de influenciarem os jovens. Os truques das empresas podem até ser reciclados e repaginados, mas raramente mudam. Especialistas e autoridades podem evitar serem enganados pelos mesmos esquemas caso tomem uma atitude proativa e aprendam sobre esses esforços em outros segmentos.

A formulação de políticas de saúde pública deve ser conduzidas por especialistas da área e pelos governos, e não por interesses comerciais. Em outros países, onde vimos a política ser ditada pela indústria e a regulamentação ser conduzida pelo próprio mercado, o resultado foi o enfraquecimento da política e a redução de sua eficácia.

Seguindo os passos do Chile, outros governos devem implementar políticas eficazes, regulamentações baseadas em evidências e punições claras, a fim de confrontar os desafios que virão.

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