Reino Unido: assim regride a Saúde pública

Duas pesquisadoras inglesas destrincham, em evento na UFRJ, a situação do sistema de saúde do país. Desmonte provocado por políticas neoliberais dá poder ao setor privado – enquanto a população sofre com a decadência do cuidado

Na faixa principal, lê-se: “Apoie as greves. Financie nosso NHS. A privatização do NHS mata”. Foto: Keep Our NHS Public
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O National Health System (NHS), o sistema público e universal de saúde do Reino Unido, que serviu de inspiração para a criação do SUS, pode estar em um ponto de ruptura. É o que alertam Kate Bayliss, da Universidade de Sussex e Soas e da Universidade de Londres, e Jasmine Gideon, da Universidade de Birkbeck. Elas estiveram presentes em um seminário organizado pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ), com apoio da ABrES, da Abrasco e da Fiocruz. Lena Lavinas, professora titular do IE-UFRJ, foi mediadora e Francisco Funcia, da ABrES, fez a apresentação. As duas pesquisadoras descreveram de que maneiras o setor privado está ganhando espaço na saúde britânica, em especial após políticas de “austeridade”. E a população está sofrendo…

As greves e protestos dos últimos meses, organizadas por profissionais do NHS como enfermeiras e médicos juniores, são a ponta visível da crise do sistema de saúde britânico. Mas a realidade está clara para a população que vive em um dos países mais ricos do mundo: o sistema falha em garantir cuidado universal. Em sua apresentação, Jasmine desenhou um retrato de alguns dos piores indicadores da saúde britânica. Os trabalhadores, em especial da enfermagem, sofrem com salários que são, hoje, mais baixos que há dez anos. Precisam recorrer a programas de cesta básica do governo. Lutam por melhores condições, mas obtêm, como resposta, um programa vago que não resolve a deterioração de seus salários.

Após a pandemia, como em muitas partes do mundo, a situação piorou. Hoje, a fila de espera para cirurgias eletivas é de impressionantes 7,47 milhões de britânicos – sete vezes mais que no Brasil, com uma população três vezes menor. Há uma escassez de 110 mil profissionais. A mortalidade materna aumentou 3%. A falta de cobertura odontológica provoca situações absurdas, como pessoas apelando para extração de dente estilo “faça-você-mesmo”, com alicates, em casa. E há desigualdades claras, que afetam em especial as populações imigrantes. Elas não têm garantido seu direito a um intérprete em sua língua, são cobradas por procedimentos, são maltratadas por médicos. Como se chegou a esse ponto?

Para responder essa questão, Kate traçou, em sua fala, um histórico dos 75 anos do NHS. Ela resgatou um cartaz que anunciava, à época da inauguração, o “novo sistema nacional de saúde” e frisava: “Todos – pobres ou ricos, homens, mulheres ou crianças – podem utilizá-lo. […] Não se trata de ‘caridade’. Todos estão pagando, com seus impostos, e o sistema vai aliviar as preocupações financeiras em momentos de enfermidades”. Mas esse projeto está se deteriorando.

O processo no NHS tem semelhanças com o que acontece no SUS. Uma das principais portas de entrada para a saúde privada no sistema público são as contratações de profissionais via empresas particulares – que precarizam o trabalho de médicos, enfermeiras e outros funcionários. Mas há diferenças: no Reino Unido, poucos têm planos de saúde. O que acontece com mais frequência é os cidadãos pagarem de seu próprio bolso por atendimento ou procedimentos. Hoje, 83% dos gastos de saúde no país são públicos, enquanto 13% são particulares – porcentagem acima da média de países de renda alta, conta Kate. Há alguns setores com maior atuação da saúde privada, como as cirurgias de rotina: 30% delas são feitas fora do NHS.

Kate dá o exemplo de três áreas em que as empresas estão ganhando cada vez mais controle. A odontologia: o NHS garante tratamento dentário apenas a crianças e gestantes. A saúde mental: os serviços são fornecidos pelo setor privado, mas financiados pelo Estado. E também a chamada “saúde comunitária”, semelhante à atenção primária do SUS. A pesquisadora observa ainda uma tendência grande de parcerias do NHS em especial com empresas de saúde norte-americanas.

“Dizem que o NHS está sendo privatizado. Mas na verdade não isso que acontece, em termos de transferir o público para o setor privado. O sistema está sendo erodido de maneiras muito mais sutis e perniciosas”, sintetiza Kate. E isso vem de décadas de políticas de “austeridade”, segundo ela, que serve também para abrir as portas para as empresas entrarem no NHS. 

Mas a falência do modelo neoliberal de saúde também se expressa na incapacidade de um crescimento mais acentuado do setor privado. A “austeridade”, a precarização dos trabalhadores e a deterioração financeira dos britânicos são tamanhas que a grande maioria não têm como pagar pela saúde, quando não encontra os serviços no NHS. Isso leva a uma queda dos indicadores de saúde, mais uma mostra da decadência da política de bem-estar social do continente.

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