Cesar Victora e a epidemiologia de pé descalço

Um cientista brasileiro que influencia parâmetros globais de nutrição infantil e amamentação. Cujo estudo, com pessoas no extremo sul do país, é referência para crianças mundo afora. E que vê no SUS um grande redutor de desigualdades do Brasil

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As Coortes de Nascimento de Pelotas (RS) tiveram papel crucial para o Brasil e para o mundo no reconhecimento da importância da amamentação e da nutrição na infância, e seus reflexos por toda a vida. É o que conta a edição 235 da revista Radis, que traz, em sua matéria de capa, um perfil e uma entrevista com o médico e pesquisador Cesar Victora, produzidos pela jornalista Liseane Morosini. Victora, conta o texto, é responsável por um estudo singular, na cidade de Pelotas, no extremo sul do país. Acompanha 20 mil pessoas desde 1982, a partir de seus primeiros dias de vida até hoje – e, com isso, fez descobertas inéditas que serviram como base para a política de amamentação adotada, a partir de 1991, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Obteve, ao longo da carreira, reconhecimento internacional: foi vencedor de diversos prêmios como o Gairdner de Saúde Global de 2017 e o Richard Doll em Epidemiologia em 2021, e ocupa posições honorárias nas universidades de Harvard, Oxford e Johns Hopkins. 

Os estudos de coortes de base populacional, que tiveram início em 1982, estão em andamento até hoje e investigam pelotenses nascidos naquele ano, em 1993, 2004 e 2015. Se hoje sua equipe possui um edifício próprio e realiza exames de sangue, testes de composição corporal e dados da função pulmonar e cardíaca, há 40 anos as coisas não eram sofisticadas assim, mostram as matérias de Liseane. Naquela época, Pelotas não tinha tradição em pesquisa, e a equipe tinha de levar a balança e outros instrumentos na casa das crianças para aferir sua saúde. Foi com esse, que é um dos estudos longitudinais mais longos realizados no mundo, que Victora fez uma série de descobertas sobre a saúde infantil – como a de que a nutrição nos primeiros dois anos do bebê são cruciais para seu desenvolvimento até a vida adulta.

“As intervenções nutricionais nesse período são muito mais importantes do que intervenções mais tardias. Se é bom ganhar peso para evitar a subnutrição nesse período inicial, depois de mais ou menos dois anos de idade o ganho excessivo passa a ser ruim pois leva à obesidade na adolescência e na idade adulta”, afirma Victora à Radis. Ele também explica à revista a importância da amamentação até os dois anos, sendo exclusiva até os seis meses, para o desenvolvimento cerebral e a inteligência da criança. Esse parâmetro foi adotado pela OMS após suas considerações. O pesquisador também ressalta os efeitos negativos do excesso de consumo de alimentos ultraprocessados para o desenvolvimento dos jovens.

Victora é um pesquisador que tenta compreender as desigualdades para diminuí-las, e seu reconhecimento como pesquisador o permitiu viajar para muitos países para entrevistar pessoas nas mais diversas realidades. Ele coordena o Centro Internacional de Equidade em Saúde, que recolhe e analisa inquéritos de diversos países, produzindo informações para a OMS, Opas, Unicef, PNUD e outras agências. “Precisamos mudar as políticas de saúde para priorizar os grupos mais pobres, carentes e excluídos”, afirma à Radis, com base em sua experiência. E defende: “As desigualdades regionais e entre grupos sociais, e mesmo as desigualdades entre grupos étnicos no Brasil, foram muito reduzidas em função da criação do SUS, da sua expansão pela Estratégia Saúde da Família”.

Cientista de enorme relevância global, Victora relata a Liseane Morosini sua tristeza diante desmonte da ciência brasileira. “Está sendo muito difícil manter pesquisadores de alto nível aqui. Temos programas de pós-graduação bons, que formam pessoas excelentes, e que são atraídas por salários e melhores condições de trabalho em outros países.” 

Entre tantos prêmios que recebeu, há um que Victora rejeitou: a Grã Cruz da Ordem do Mérito Científico, concedida pelo governo brasileiro em novembro de 2021. Em entrevista ao Outra Saúde, na ocasião, afirmou que no instante que recebeu a notícia do prêmio, já sabia que não iria aceitá-lo. Em sua recusa, declarou que não podia aceitar homenagem de um governo “que não apenas ignora, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva”.

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