As promessas notáveis do Atlas das Células Humanas

Cientistas trabalham para mapear todos os tipos de células do corpo humano. Projeto pode revolucionar este campo de conhecimento e levar a novos tratamentos. Iniciativa não tem donos – pesquisa é colaborativa e seus resultados, abertos

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Em tempos de sociedades e medicina mercantilizadas, serão ainda possíveis projetos de ciência da Saúde ambiciosos e ao mesmo tempo colaborativos e abertos? O Atlas das Células Humanas (Human Cells Atlas, ou HCA, em inglês) sugere que sim. Em 2016, nascia numa reunião com mais de 100 cientistas internacionais, em Londres, uma iniciativa ousada: descrever todos os tipos de células presentes nos diferentes tecidos do corpo humano e catalogá-las com base em seu tipo, localização, transições e linhagem. Até agora, o consórcio conseguiu mapear mais de 1 milhão de células individuais em 33 órgãos e sistemas de todo o corpo, permitindo novos insights biológicos sobre anatomia, saúde e rastreamento de doenças genéticas ou raras. 

“Uma compreensão detalhada das células através do Human Cell Atlas ajudará a explicar muitos aspectos relacionados à saúde e à doença humana”, explica Sarah Teichmann, co-presidente do Comitê Organizador do HCA e chefe de Genética Celular do Instituto Wellcome Sanger. As perspectivas são muitas: obter uma compreensão celular profunda dos órgãos e tecidos permitirá, segundo os pesquisadores, chegar a implicações terapêuticas –  incluindo aumentar nosso entendimento sobre doenças, desenvolver vacinas eficazes, produzir terapias imunológicas antitumorais e ampliar os estudos sobre medicina regenerativa. 

Cientistas do mundo inteiro se juntaram ao projeto, incluindo brasileiros. “Para que o Human Cell Atlas represente a humanidade como um todo, o consórcio requer uma colaboração interdisciplinar e intensiva em toda a comunidade científica internacional”, contou ao Outra Saúde a doutora Patrícia Severino, pesquisadora do Hospital Albert Einstein em São Paulo e cientista-membro do HCA. “O projeto abrange 83 países, com pesquisadores latino-americanos que hoje trabalham em 18 frentes sobre diferentes tecidos, órgãos e sistemas”, explica. 

Uma das principais novidades do HCA está no avanço da compreensão do sistema imunológico, normalmente visto como limitado às células que circulam no sangue. No entanto, as células imunes dos tecidos desempenham um papel fundamental na manutenção da saúde e no combate a infecções. Em um dos artigos do HCA publicados na revista Science, pesquisadores do Wellcome Sanger Institute, da Universidade de Cambridge, sequenciaram o RNA de 330 mil células do sistema imunológico do corpo adulto para entender sua função em diferentes tecidos. Depois, a equipe desenvolveu uma ferramenta chamada CellTypist para automatizar a identificação do tipo de célula. Assim, eles conseguiram identificar cerca de 100 tipos distintos de células do sistema imunológico, incluindo células T e B – as duas principais classes de linfócitos envolvidas em defesas específicas. Segundo o Sanger Institute, conhecer o papel de diferentes tecidos na formação de células sanguíneas e do sistema imune irá melhorar a nossa possibilidade de enfrentar doenças imunológicas, por exemplo. 

Outra promessa do projeto é ajudar a mapear células específicas que contêm genes de doenças raras (como distrofia muscular) ou comuns (como miocardite), para entender a sua atuação no corpo humano. Por meio do sequenciamento de RNA, pesquisadores compararam especificidades de células de diferentes órgãos e tecidos, analisando antecedentes genéticos, idade e efeitos ambientais, chegando à Tabula Sapiens: um atlas de referência com 24 tecidos e órgãos humanos, construído por meio da caracterização de mais de 400 tipos de células. 

Todo o Human Cell Atlas está disponível de forma gratuita. “Nossos dados disponíveis podem servir como uma estrutura para projetar vacinas ou melhorar o projeto de terapias imunológicas para atacar cânceres”, afirmou Teichmann. Desde o início, a HCA se comprometeu a criar um atlas aberto, ético, equitativo e representativo, explica Patrícia Severino. “A representação e a equidade só serão alcançadas se pesquisadores e comunidades de todo o mundo estiverem engajados e cientes dos potenciais benefícios do HCA. A decisão inicial de tornar todos os dados disponíveis e gratuitos levou à rápida disseminação dos ideais da HCA, com atualmente mais de 2.300 membros em todo o mundo”, enfatiza a cientista brasileira. Para ela, o envolvimento global é fundamental e ajudará a criar serviços de saúde melhores e mais personalizados para pacientes de diferentes países. 

Na América Latina, a perspectiva é promissora: pesquisadores do Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru já estão trabalhando em um projeto conjunto para construir o primeiro mapa celular latino-americano de células sanguíneas do sistema imunológico e do tecido da vesícula biliar. “O esforço envolverá a participação de diversas populações indígenas e mistas de todas as Américas. A América Latina é uma das regiões mais ricas em termos de diversidade genética, mas essas ascendências estão sub-representadas nas pesquisas atuais”, conclui Severino. Em outubro desse ano, ocorrerá a segunda reunião do HCA na América Latina, que dará andamento ao projeto.

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