Renda Básica aprovada: demos um primeiro passo

Passou, na Câmara, benefício de R$ 600 a trabalhadores informais, o triplo do proposto por Guedes. Mas, enquanto o tempo passa, governo tarda em tirar medidas do papel. Leia também: o estranho erro de cálculo do Ministério da Saúde

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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‘CORONAVOUCHER’

Inicialmente, Paulo Guedes queria repassar míseros R$ 200 aos trabalhadores informais do país durante os três meses que, até agora, compõem o horizonte do governo para a crise. Nos últimos dias, a equipe econômica havia sido convencida por parlamentares de que o valor deveria subir um pouquinho, para R$ 300. Mas, ontem, a Câmara dos Deputados aprovou um repasse mensal de R$ 600 aos brasileiros no mercado de trabalho informal e a pessoas com deficiência que estão na fila de espera para receber o BPC, o Benefício de Prestação Continuada. Uma melhora e tanto que contou com o aval virtual do presidente Jair Bolsonaro (um pouco antes do fim da votação, ele entrou ao vivo nas redes sociais dizendo apoiar o valor). Mas segundo O Globo, nenhum membro da equipe econômica participou das negociações da reta final do projeto.

Quem sabe, se houver mais pressão popular, esse repasse – que ganhou o apelido de “coronavoucher” – não pode subir ainda mais? O valor do auxílio emergencial aos trabalhadores ficou em R$ 45 bilhões no total, e o do BPC em R$ 15 bi, nos cálculos do Estadão. Para começar a valer, a proposta ainda precisa passar pelo Senado.

Além disso, os deputados aprovaram uma proteção diferenciada para mulheres que são chefes de família. Elas receberão mensalmente duas cotas do auxílio, chegando a R$ 1,2 mil. Mas se estiverem inscritas no Bolsa Família, terão de escolher entre o repasse do coronavoucher e aquele garantido pelo programa de transferência de renda. É muito provável que escolham o primeiro, e nesse caso o Bolsa Família ficará congelado para saque. 

O freio se repete em outras situações: para receber o auxílio, o trabalhador não pode receber aposentadoria, pensão, seguro-desemprego ou benefício assistencial (como o próprio BPC). Além disso, sua renda mensal não pode ultrapassar o baixo teto de meio salário mínimo (R$ 552,50) e sua renda familiar, o de três salários (R$ 3.135). A pessoa também não pode ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 no ano de 2018. E precisa ser MEI, contribuinte autônomo da Previdência ou estar na lista do Cadastro Único até 20 de março. 

Quem é contemplado por algum programa federal de transferência de renda está vetado. Há uma exceção no caso do Bolsa Família: é que até dois membros de uma mesma família terão direito ao coronavoucher. Mas se um deles receber o Bolsa Família terá que optar por um ou outro. O dinheiro será pago por bancos públicos federais por meio de conta-poupança.

O projeto ainda garante auxílio-doença a quem está na fila de espera do INSS. O governo vai antecipar um salário mínimo R$ 1.045 a essas pessoas, dispensando as empresas do pagamento dos primeiros 15 dias de afastamento. 

A confusão entre governo e Congresso em torno do BPC foi resolvida pelo projeto. O acordo foi o seguinte: em 2020, continua valendo o teto de um quarto de salário mínimo (R$ 261,25), defendido pelo governo. A partir de 2021, começa a valer o teto de meio salário, defendido pelos parlamentares.

Em tempo: a Câmara também aprovou ontem um projeto que dispensa o trabalhador de apresentar atestado médico por falta por covid-19. O objetivo é desobstruir o sistema de saúde e conter a propagação do vírus. A medida também precisa do aval dos senadores para entrar em vigor.

TÁ BOM, MAS…

O problema é que já estamos atrasados. E a culpa é do governo e dos parlamentares. De acordo com levantamento do Estadão, 63,9% do pacote de R$ 308,9 bilhões ainda não passaram do anúncio. Ou seja, a cada R$ 100 de medidas anunciadas, R$ 64 ainda não saíram do papel ou porque o governo não encaminhou as propostas ao Congresso Nacional ou porque os congressistas não votaram os projetos de lei enviados. “As propostas emperradas abarcam R$ 105,3 bilhões em medidas que sequer foram editadas pelo governo e R$ 92,2 bilhões em ações que não foram enviadas ao Congresso, mas estão sendo incorporadas em projetos que já estavam em tramitação”, denuncia o jornal.  

ERRINHO DE 400 BI 

Há algo muito estranho no Ministério da Saúde… Imagine o seguinte: a Pasta faz um estudo que, oficialmente, prevê que 10% da população brasileira será infectada pela covid-19. Ou seja, 21 milhões de pessoas. Diante dessa estimativa – que alguns certamente avaliarão conservadora –, os técnicos fazem cálculos do quanto será preciso aportar a mais para dar conta da epidemia. Chegam a uma conclusão: R$ 410 bilhões. Esse número vai parar em um documento enviado ao Ministério da Economia. Esse número é objeto de questionamento de jornalistas à assessoria de imprensa. Esse número é tratado em conversas de repórteres com membros do primeiro escalão do Ministério, ou seja, com secretários. Até que esse número chega na mesa de Jair Bolsonaro. O presidente questiona a cifra, afinal, a covid-19 não passa de uma “gripezinha” ou “resfriadinho”. E o que o Ministério da Saúde faz? Nega que o número tenha existido. Informa que o “4” na frente do “10” foi digitado errado. Que como o “4” fica na mesma tecla do símbolo de cifrão, desde sempre a Pasta queria solicitar R$ 10 bilhões. Acontece que bem ali antes do número original – 410 – havia um cifrão.

Em meio às pressões do Planalto sobre o Ministério da Saúde, as suspeitas se multiplicam e a explicação não convence. Ainda mais porque o próprio Ministério divulgou ontem que só internações em UTIs devem custar R$ 9,3 bilhões nesse cenário de 10% da população brasileira infectada. 

O governo quer pedir US$ 100 milhões emprestados ao Banco Mundial para financiar parte das ações de enfrentamento ao novo coronavírus. Esse dinheiro teria destino certo: compra de kits de testes, contratação de serviço de telemedicina e de profissionais em caráter emergencial. Na argumentação para o pedido de empréstimo feita para o Ministério da Economia, a Saúde lembra que a demora na liberação dos recursos só encarece a resposta a epidemias. Usa como exemplo o surto de ebola em 2014 que, segundo a ONU, poderia ter sido controlado se, logo no começo, tivessem sido liberados US$ 200 milhões. Como isso não aconteceu, o surto acabou piorando e sua resposta custou cerca de US$ 4 bilhões. 

O que a equipe econômica fez, e rápido, foi zerar o imposto de importação da cloroquina, droga que se tornou foco de controvérsia entre especialistas e governantes que tem vendido o seu uso como “cura” para a covid-19, como Donald Trump e Jair Bolsonaro. 

IDEIA FIXA

Ontem, aconteceu um videoconferência entre líderes do G20, grupo que reúne as maiores economias do mundo. E o que fez Bolsonaro? Defendeu a cloroquina… Nunca é demais lembrar que o tratamento da covid-19 à base da droga não foi suficientemente testado e, portanto, não é seguro – embora tenha apresentado bons resultados em casos mais graves da doença. 

Contrariando a interpretação do presidente brasileiro, o comunicado assinado pelos líderes globais após a reunião caracteriza a covid-19 como uma “pandemia sem precedentes” cujo combate exige uma “resposta global com espírito de solidariedade, transparente, robusta, coordenada, de larga escala e baseada na ciência”. O grupo anunciou que vai injetar US$ 5 trilhões (cerca de R$ 25 trilhões) na economia através de pacotes nacionais de estímulo e proteção.

‘O BRASIL NÃO PODE PARAR’

Dando sequência a sua estratégia de estimular a livre circulação de vírus e pessoas, Jair Bolsonaro autorizou o Planalto a lançar uma campanha publicitária com um slogan nada sutil: “O Brasil não pode parar”. O objetivo é martelar na cabeça da população a pertinência da flexibilização das quarentenas adotadas por municípios e estados. No Rio de Janeiro já deu certo: Marcelo Crivella (Republicanos) assinou ontem um decreto liberando o funcionamento de postos de gasolina, mercados, padarias e até lojas de material de construção

Mas o esforço vai muito além do que nossos olhos podem ver. É possível apenas ter uma vaga ideia do que está acontecendo na caixa-preta que é o WhatsApp. Nas últimas 24 horas, recebemos de parentes correntes absolutamente lunáticas que afirmam que medidas de isolamento social são um complô de autoridades que nada têm a ver com esses decretos – Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, Dias Toffoli – junto com “chefes de partidos de esquerda entre eles PSDB com Aécio Neves” (risos) e, claro, a Rede Globo para derrubar a economia brasileira e, de tabela, desestabilizar o governo criando condições para o impeachment. 

Nas redes sociais visíveis, a militância bolsonarista está a todo o vapor. Os apoiadores de Bolsonaro resolveram, inclusive, adotar a expressão xenófoba “vírus chinês” (usada por Trump) para se referir ao novo coronavírus. Daí decorre outra teoria da conspiração da lavra de Edson Salomão, presidente do Movimento Conservador: a de que o governador João Doria estaria entregando São Paulo para o “comunismo chinês” em troca de ajuda na conquista das eleições em 2022. Já Allan dos Santos, do site Terça Livre, garante – do alto da sua absoluta falta de expertise científica – que os índices de infecção “estão DENTRO DA NORMALIDADE”, assim, em caixa alta.

Bruno Sousa relata no Intercept Brasil como o discurso de Bolsonaro já pegou na zona Norte do Rio de Janeiro, porção mais pobre da capital: “Depois dos ataques de Bolsonaro à prevenção da saúde pública, encontrei calçadas mais cheias – com muitos idosos, inclusive, a maioria homens. Não tanto como antes da epidemia, mas deu para perceber que muita gente se sentiu autorizada a retomar a vida habitual pelo discurso do presidente. Afinal, se a maior autoridade do país está dizendo para geral ir para a rua, quem sou eu para dizer o contrário? Numa das oficinas, um dos mecânicos falava, se referindo ao presidente: “Ele está certo, os grupos de risco são os velhos, mais de 60 anos. Não tem por que quem é novo ficar em casa”.

E à guisa de homenagem à cultura carioca, podemos afirmar que Jair Bolsonaro ‘não para, não para, não para não’. Ontem, o presidente editou um decreto incluindo atividades religiosas e casas lotéricas no rol de serviços essenciais ao combate à epidemia. Sim, você leu certo. “Eu acho que o pastor vai saber conduzir o seu culto. Ele vai ter consciência – o pastor, o padre –, se a igreja está muito cheia, falar alguma coisa. Ele vai decidir lá”, disse em entrevista ao apresentador Ratinho. Não queremos ser repetitivas, mas lembremos que a epidemia na Coreia do Sul explodiu pelo contato que as pessoas tinham em uma igreja. Com o decreto, Bolsonaro acende o fio que conduz ao barril de pólvora.

Mas ele, que tem sido caracterizado como “genocida” por especialistas de saúde pública, tem suas próprias ideias epidemiológicas, como já se sabe. Para Bolsonaro, “o brasileiro tem que ser estudado”. “Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele”, sentenciou. Francamente, quem disse? Mas sigamos: “Eu acho que muita gente já foi infectada no Brasil, há poucas semanas ou meses, e eles já têm anticorpos que ajudam a não proliferar isso daí”, especulou, reconhecendo que não passa de um pensamento erigido no reino dos desejos: “Estou esperançoso que isso seja realmente uma realidade”. 

Segundo Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta “já está convencido” sobre a nada científica ideia de “isolamento vertical”. “Os ministros seguem as minhas determinações”, afirmou. Quem sabe de olho no Ministério da Saúde, o agora deputado federal Osmar Terra resolveu se meter no debate. Para o médico, conhecido por suas posições anticientíficas, “quarentena não resolve nada, ela não diminui um caso”. Os pesquisadores mais prestigiados publicados nas revistas mais importantes do mundo, como a Science, obviamente discordam.

E sobre o sinal trocado dado pelo vice Hamilton Mourão depois do pronunciamento de terça-feira de que a política do governo é o isolamento, ele se limitou a dizer com a maturidade que lhe é característica: “O presidente sou eu pô!”  Aliás, para entreter sua claque postada em frente ao Palácio do Alvorada, Bolsonaro novamente fez deboche às custas dos jornalistas. “Imprensa, vocês estão aqui trabalhando. Tem que fizer em casa, pô. Quarentena, pô.”

Enquanto ele faz piada, subiu para 25 o número de pessoas próximas a Bolsonaro que está com covid-19. A última confirmação veio ontem, de um integrante da equipe de segurança e logística do presidente.

Diante dessa estrondosa passagem do estandarte do sanatório geral, infelizmente só cabe esperar pelo pior cenário da epidemia no Brasil. E denunciar. É o que fizeram os ex-ministros da Saúde Humberto Costa, Saraiva Felipe, Agenor Álvares, José Gomes Temporão, Alexandre Padilha, Arthur Chioro e Marcelo Castro. Eles vão recorrer à Organização Mundial da Saúde e à Comissão de Direitos Humanos da ONU acusando o presidente brasileiro de tratar de forma insensata a pandemia, desmobilizando a população a seguir orientações das autoridades de saúde. “Seu pronunciamento pode resultar em uma sobrecarga do sistema de saúde brasileiro de trágicas consequências, particularmente entre os grupos mais vulneráveis da sociedade”, alertam. 

SIM, NÃO, TALVEZ

“Nós não recomendamos o fechamento [do comércio]. Também não vamos recomendar a abertura”: é esse o tipo de ‘orientação’, feita ontem pelo secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis, que o governo federal está emitindo. “Quanto mais cedo a reabertura for feita, vai ser melhor para todo mundo. Agora esse melhor para todo mundo tem que manter a lógica de como é que fechou, por que fechou, qual era o plano quando fechou, quanto tempo passou? Fechou na terça-feira, não adianta abrir na sexta. Qual é esse tempo? Não temos isso muito claro, não temos isso muito definido“, divagou ele na entrevista coletiva concedida à imprensa ontem.

No corda bamba que se estende entre as recomendações que o Ministério vinha fazendo e as falas de Bolsonaro, a Pasta não sabe se vai ou se fica. Enquanto isso, escorrega no meio do caminho e deixa a população sem saber o que fazer. Como o presidente  – e de acordo com a posição de Mandetta na véspera –, Gabbardo foi contra as declarações de governadores de que vão manter suas restrições. “Se o estado de São Paulo resolver tomar as decisões independente do Ministério da Saúde, vamos recomendar que não digam que estão tomando medidas em acordo com o Ministério da Saúde, porque elas não estão em acordo com o Ministério da Saúde”, afirmou ele, em linguagem tatibitati. Ao mesmo tempo, aconselhou a todos, independentemente da idade, a evitar sair de casa, e não respondeu se o “isolamento vertical” funcionaria, nem disse se isso passará a ser uma orientação do Ministério.

E AÍ?

A indefinição está fazendo os estados perderem a paciência e, segundo a coluna Painel, da Folha, a temperatura aumentou na videoconferência que Mandetta teve com secretários estaduais de saúde ontem. “Pedimos unidade da informação e que se paute pelas experiências internacionais”, comentou Alberto Beltrame, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, o Conass. Chegou a haver bate-boca quando os gestores cobraram agilidade no envio de materiais para leitos de UTI e respiradores. Mandetta respondeu que o atraso no envio à falta de endereço dos hospitais; ao passo que os secretários argumentam atraso da Pasta ao solicitar os ditos cujos. Para Beltrame, o ministro “criou mal-estar, estresse”.

HOLOFOTES

Crescendo contra o presidente, talvez em menor escada que João Doria, o governador do Rio Wilson Witzel voltou a criticar Bolsonaro e se disse “estarrecido” com a mudança de posição de Mandetta. Contou à Folha que o Ministério Público enviou uma recomendação ao presidente atestando que sua manifestação contrária à OMS é desvio de finalidade, o que gera improbidade administrativa. Agora, Bolsonaro precisaria “ir à televisão desfazer o que fez naquela noite, sob pena de continuar incidindo em desvio de finalidade“.

Ele ainda previu que, com essa confusão, “nós vamos entrar na desobediência civil”: “Ué, a população não sabe quem vai obedecer e obedece a quem? Ao ministro da Saúde? Ao presidente? Ou ao governador, que baixou decreto determinando que não abra loja? Determinando que shopping seja fechado? Que ônibus interestaduais e intermunicipais não circulem? Quem vai observar? Cada um faz o que quer, e isso é desobediência civil”.

OS CASOS NO BRASIL

O balanço das secretarias estaduais de saúde aponta para 2.988 casos confirmados até ontem à noite, com 77 mortes em todo o país. Na conta do Ministério são 2.915 casos e também 77 óbitos.

A velocidade de disseminação até agora tem sido compatível com o crescimento esperado pelo Ministério da Saúde, de um aumento diário de 33% no número de casos. Olhando de volta para a projeção do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, que no último dia 16 estimou como poderia estar o cenário no dia de ontem, o número ficou entre o cenário mais otimista e o mediano  (na época, essa previsão variava entre 2,4 mil casos num cenário otimista e 5 mil em um cenário pessimista).

A matéria do El País salienta, porém, que o número de casos (que, por sua vez, baseiam as previsões) são a ponta do iceberg, na medida em que o país não testa grande parte das pessoas com suspeita ou infectadas. E, segundo João Gabbardo, dificilmente vamos conseguir chegar à capacidade necessária, de 30 a 50 mil testes diários, por uma limitação global no fornecimento de insumos. “Nós temos orçamento pra comprar, o que falta é o fornecedor“, justifica ele. Por que não compraram antes, já que a covid-19 já era assunto na imprensa internacional desde a primeira semana de janeiro? Fica a pergunta.

TUDO JUNTO

As internações de pessoas com insuficiência respiratória grave explodiram desde o mês passado e, na semana entre 15 e 21 de março, o número chegou a 2.250 pacientes. “É um número dez vezes maior do que a média histórica, de cerca de 250 casos de hospitalização nos meses de fevereiro e março, em anos anteriores”, disse à Folha o pesquisador da Fiocruz Marcelo Ferreira da Costa Gomes. O cálculo foi feito pelo sistema InfoGripe com base em informações enviadas por unidades de saúde e hospitais públicos, além de alguns privados. Nesse bolo, tem doentes infectados por vários vírus diferentes, como influenza, H1N1 e, é claro, o próprio novo coronavírus.

O número sugere que a covid-19 esteja por trás do aumento. Mas Gomes diz que alguns testes de pacientes ainda não tiveram resultado, e que nem todas as pessoas hospitalizadas foram testadas – o que, observamos nós, vai contra até mesmo o protocolo mais restrito do Ministério da Saúde, que pede a testagem de todos os casos graves.

Pelo gráfico exposto na reportagem, a curva só se compara com a de 2016 (quando houve mais de 1,7 mil internações). Na época, houve uma grande epidemia de H1N1 que, naquele ano, matou 1,9 mil pessoas.

RESULTADO DO DISTANCIAMENTO?

O governador João Doria afirmou que as medidas de distanciamento social em São Paulo já levaram a um achatamento da curva de transmissão por lá. Secretário estadual da Saúde, José Henrique Germann, disse que se for necessário vai ser implantado o isolamento não voluntário das pessoas. E, em seguida, um lockdown, “uso da força policial para manter as pessoas em casa”.

A informação do governo estadual se baseia em um levantamento feito pelo pesquisador da USP José Fernando Diniz Chubaci, comparando a evolução dos casos em São Paulo, no Brasil e no país sem contar SP. As medidas de distanciamento em São Paulo – como o cancelamento de aulas – começaram a acontecer no dia 16. É nessa época que a curva começa a achatar, segundo ele.

Por aqui, sem desconfiar dos dados, vemos a interpretação deles por parte do governo com algum cuidado, pois leva um tempo até que o resultado de medidas como essas seja sentido – já que o período de incubação do vírus é de até duas semanas. Lembramos também que o achatamento se deu acompanhando o momento em que o protocolo em relação às testagens mudou, tornando elegíveis apenas pessoas com sintomas muito graves, e também ao mesmo tempo em que as infecções começaram a se espalhar mais por outros estados fora do eixo Rio-SP.

ÁGUA FRIA 

Apesar das duras, ainda que tardias, medidas de contenção do coronavírus, a curva de contágio na Itália voltou a subir depois de quatro dias de declínio. O lockdown foi decretado no dia 9 de março e, como dissemos aqui, exatas duas semanas depois alguns resultados começaram a aparecer. Na época, as autoridades tiveram o cuidado de não comemorar, mas era inevitável olhar para os números com algum otimismo. “É importante que haja uma desaceleração na curva, mas não podemos esperar uma diminuição repentina. Devemos observar os efeitos das decisões tomadas nos próximos dias, já estamos analisando o motivo do pequeno aumento hoje. A hipótese é que houve um acúmulo de resultados dos testes feitos nos dias anteriores”, disse o vice-chefe da Proteção Civil no país, Agostino Miozzo. O governo estuda fazer uma “limpeza maciça” das ruas.

E Honk Kong está em estágio de alerta. O coronavírus parecia estar contido por lá no início de março – e a matéria do Stat lembra que a população se antecedeu às medidas oficiais, com as pessoas evitando sair de casa, usando máscaras e desinfetando tudo desde que o vírus foi anunciado em Wuhan, com a trágica epidemia de SARS ainda fresca na memória.  Mas, depois que o território baixou a guarda, os casos voltaram a subir na semana passada. Se no sábado houve 48 novas infecções, na quarta elas chegaram a 400. Nesta semana, governo ordenou que todos os moradores voltassem para casa e fechou instalações públicas de esportes, museus e bibliotecas que acabavam de reabrir. Também está vetada a entrada de visitantes por duas semanas. E, como medida extra contra a socialização, o governo exigiu que os bares parassem de servir álcool.

A trajetória mostra que esse enfrentamento vai demandar não só medidas duras pontuais, mas persistência. “A pandemia funcionará em ondas. Esta será uma situação difícil para os próximos meses. Acho que nenhum de nós acredita que isso será resolvido nas próximas seis semanas ou dois meses”, disse Keiji Fukuda, ex-diretor geral assistente de segurança da saúde da Organização Mundial da Saúde e professor de medicina da Universidade de Hong Kong.

NÚMERO UM

Os Estados Unidos assumiram a liderança do mórbido ranking global do coronavírus. Com mais de 81 mil infectados, ultrapassaram a China. Como o país tem a terceira maior população do mundo e o presidente não é lá muito responsável, é bem provável que esse número ainda cresça muito nas próximas semanas. Houve mais de mil mortes até agora. O que não deixa de ser surpreendente: apesar do intenso espalhamento da doença e apesar do caro e ineficiente sistema de saúde dos EUA, chama a atenção a baixíssima taxa de mortes, que está perto de 1,3%. Considerando que o país não testa massivamente as pessoas, o percentual intriga ainda mais.

AR DE MISTÉRIO

O presidente da França Emmanuel Macron anunciou no Twitter que prepara, junto com Trump, “uma nova iniciativa importante” em relação à pandemia. Segundo a Casa Branca, os líderes querem ter uma “cooperação estreita” por meio do G7, do G20 e do P5, formado pelos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, para ajudar organizações multilaterais. Não há mais detalhes.

PRA FICAR DE OLHO

Reportagem d´o Joio e o Trigo chama atenção para uma preocupante realidade: os estoques estratégicos de alimentos estão praticamente zerados. E, num momento como este de crise sanitária, política e econômica em que a distribuição de cestas básicas seria uma das respostas mais urgentes, a Companha Nacional de Abastecimento (Conab) está de mãos atadas. Quem descontruiu as estruturas que garantiam o funcionamento de uma política de segurança alimentar são o próprio Bolsonaro e o ex-presidente Michel Temer. 

“Em dezembro do ano passado, o país não tinha praticamente nada de estoques de feijão, num processo de queda que vem desde 2015. No caso do milho, os estoques caíram pela metade ao longo do primeiro ano de Bolsonaro. A armazenagem do grão, fundamental para a alimentação de animais, segue em queda livre, e agora figura em 240 mil toneladas – 5% do que tinha no começo da década. O detalhe é que 95% estão concentrados no Mato Grosso, o que, em caso de dificuldade de circulação, é uma péssima notícia. Em arroz, havia 20 mil toneladas, contra 463 mil em 2012”, informam Victor Matioli e João Peres.

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