O negacionismo veste uma das togas do Supremo

Na semana mais crítica da pandemia, o ministro Kassio Nunes contraria entendimento do plenário do STF e emite decisão que dá aos templos “direito” de espalhar o vírus — e arrecadar dízimos, é claro… Vale tudo para agradar Bolsonaro?

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LIBERDADE PRA QUÊ?

No sábado, véspera da celebração de Páscoa, o ministro do STF, Kassio Nunes Marques, determinou que estados, municípios e o Distrito Federal não podem suspender completamente a realização de cultos e missas presenciais. Não podem, tampouco, exigir o cumprimento de regras já editadas no sentido de barrar esses eventos. A decisão é temporária e ainda precisa ser examinada pelo plenário do Supremo, mas ainda não há data marcada. Até lá, está em vigor. 

Isso significa que, ontem, reuniões religiosas foram liberadas país adentro, inclusive em locais onde antes estavam restritas. Vários prefeitos e governadores vinham pisando esse terreno com cuidado, evitando ao máximo decretar tal restrição – mesmo que o papel de templos religiosos no espalhamento do vírus esteja bem evidente desde o ano passado. A posição de Nunes Marques piora tudo.

De acordo com ele, reprimir os cultos fere a liberdade religiosa, e é justamente porque a pandemia está tão grave que “se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa, responsável, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual”… Ele chegou a comparar essa essencialidade à de mercados, farmácias e transporte coletivo. 

Mas não foi o próprio STF que estabeleceu, em abril do ano passado, que estados e municípios têm autonomia para estabelecer suas próprias medidas de controle da pandemia? Pois é. O prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), disse que não cumpriria a decisão. Em resposta, o ministro mandou intimá-lo… Kalil anunciou então que liberaria os cultos, mas entrou com um pedido endereçado ao presidente da Corte, Luiz Fux, para suspender os efeitos da liminar. Fux, por sua vez, ainda não deu nenhuma palavra sobre o caso. O presidente da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), Jonas Donizette, foi às redes sociais pedir que ele se manifeste.

Nos bastidores, a previsão de integrantes da Corte é que a decisão vai ser revertida no plenário. Só não se sabe quando. À Folha, o ministro Marco Aurélio Mello disse que uma decisão monocrática a esse respeito só poderia ter ocorrido em período de recesso. “Que pressa foi essa?”, questionou. E foi enfático no Estadão: “O novato, pelo visto, tem expertise no tema. Pobre Supremo, pobre Judiciário. (…) Aonde vamos parar? Tempos estranhos!”. Gilmar Mendes também  tem se posicionado contra a liberação dos cultos.  

Aliás, a decisão de NunesMarques sequer tem sustentação jurídica, como explica o advogado Thiago Amparo, em coluna da Folha. O ministro atendeu a uma ação do tipo ADPF  – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – proposta pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure). Só que o próprio STF tinha decidido, em fevereiro, que a Anajure não pode apresentar ADPF. 

MÉRITO DIVINO

Nunes Marques estabeleceu que deveria haver protocolos de segurança nos templos, como ocupação máxima de 25% das salas, espaçamento entre os assentos e uso de máscaras. Em ambientes muitas vezes fechados e mal ventilados, frequentados por idosos, onde as pessoas cantam e falam alto e, ainda por cima, passam muito tempo juntas, as medidas certamente não bastam.

Além disso, há as falhas de fiscalização, que ficam por conta das prefeituras. Durante três horas seguidas de cultos na  Igreja Mundial do Poder de Deus, em São Paulo, imagens mostram claramente uma multidão reunida. “Foi determinado por um ministro que as igrejas voltassem a ministrar culto. Mas o mérito não é do ministro, é de Deus (…). Todo mundo que deseja enfrentar Deus é louco. Porque isso foi ordem de Deus”, disse o pastor Valdemiro Santiago. Várias igrejas católicas também desrespeitaram as regras.

FAZ SENTIDO?

Ainda não sabemos o que pensar da nova proposta do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para aumentar a disponibilidade de vacinas contra a covid-19 no país: adaptar fábricas de vacinas veterinárias para que ajudem na produção. Ele acredita que isso levaria o Brasil não apenas a suprir a própria demanda, mas também começar a vender doses para outros países. Esse foi um dos pontos de pauta de sua reunião com o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, no sábado. E, segundo disse Queiroga após o encontro, há um apoio de análise técnica envolvendo autoridades sanitárias brasileiras e a OMS para analisar essa possibilidade.

Uma reunião sobre isso no Senado, marcada para o próximo dia 12, deve ser antecipada, a pedido do senador petista Wellington Fagundes (MT). “Isso é uma garantia de ter mais rapidamente uma produção brasileira do IFA. Após o comando, em 90 dias as fábricas podem já estar produzindo“, disse, ao Valor. De acordo com ele, que é relator da Comissão Especial da Casa que acompanha as ações relacionadas à pandemia, a conversão seria um processo “simples”, bastando dispor da base tecnológica para a fabricação do IFA.

O que nos parece estranho é que, até onde se sabe, o problema brasileiro não são as limitações do parque tecnológico – Fiocruz e Instituto Butantan estariam aptos a produzir grande quantidade de doses – mas sim a importação de insumos. A ver…

Em tempo: depois de reduzir para 25 milhões o total de doses de vacinas que estariam disponíveis no Brasil este mês,  Queiroga aumentou a projeção, afirmando no sábado que estão asseguradas 30 milhões em abril. Não explicou onde está a diferença, mas afirmou que são doses oriundas da Fiocruz e do Butantan.

A aposta de Dimas Covas, diretor do instituto paulista, é a seguinte: “Com o pé no chão, até o meio do ano você vai ter uma vacinação provavelmente de quem tem mais de 60 anos e provavelmente pode avançar um pouco mais na faixa dos 50 anos, incluindo também outros profissionais em risco. É isso que nós teremos até o meio do ano. Estamos falando de 40 ou 50 milhões de pessoas”.

AINDA DEMORA

A chegada de medicamentos do kit-intubação ao Brasil pode demorar um mês. A informação foi passada no sábado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). O braço regional da OMS foi procurado pelo governo brasileiro para mediar a compra diante da crise da falta de remédios nas UTIs. Na semana passada, o Ministério da Saúde admitiu que os estoques de todos os estados chegaram a uma situação crítica. Mas o pedido não foi feito a tempo de evitar o desabastecimento. Entraram na lista 22 medicamentos, sendo oito prioritários. Há itens que podem chegar ao país em duas semanas, outros em quatro, mas alguns devem demorar cinco semanas.  

Enquanto isso, hospitais país afora estão amarrando os braços dos pacientes intubados às camas “como forma de evitar uma reação agressiva e danosa no momento de retomada da consciência”, como descreve a Folha. A prática se chama contenção mecânica e é considerada arcaica por especialistas de medicina intensiva. Apesar disso, se generalizou durante a pandemia. E um dos fatores é justamente a falta de sedativos e tranquilizantes. 
A contenção também é usada no processo de “desmame” da intubação. Neste caso, a sedação é retirada aos poucos e o paciente vai recobrando a consciência e pode arrancar o tubo. Poderia ser evitada se houvesse profissionais de enfermagem em quantidade suficiente para acompanhar todo o processo. Ou mesmo com a confecção de luvas de tecido ou esparadrapo, de forma a evitar que os pacientes consigam arrancar equipamentos. 

MEIO MILHÃO DE MORTES

Segundo a Universidade de Washington, o cenário mais provável da pandemia no Brasil é trágico. O Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME) prevê que, até 1º de julho, o país deve chegar à marca de 562,8 mil mortes em decorrência da covid-19. Isso acontece em um contexto no qual as vacinas são distribuídas sem atrasos e governos determinam novas medidas restritivas com duração de seis semanas toda vez que o número de mortes diárias ultrapassar 8 casos por milhão de habitantes (hoje, esse índice chega a 13). Segundo a projeção, o pico deve acontecer em 24 de abril, quando o número de mortes em 24 horas pode chegar a 4 mil. 

O Brasil registrou 1.233 mortes por covid-19 em 24 horas, elevando para 331.530 o total de óbitos. Foi a pior semana da pandemia no país, com 19.231 mortes no total. A média móvel da semana ficou em 2.747 mortes por dia, 20% mais que na anterior. 

PASSOU DOS CEM MIL

A Índia se tornou o segundo país do mundo a ultrapassar a marca das cem mil infecções diárias da covid-19. Antes, apenas os EUA haviam registrado tamanho pico. O país asiático vive uma segunda onda, com casos aumentando desde fevereiro como resultado da reabertura econômica. Agora, Maharashtra, estado mais rico do país onde fica Mumbai, resolveu decretar um isolamento mais rígido, fechando restaurantes, cinemas, lojas e templos a partir de hoje

TROCAS

Marquinhos Show, o marqueteiro de Pazuello, está de saída do Ministério da Saúde. Será substituído por Priscila Mesiano, que atualmente comanda a assessoria de imprensa do Ministério das Comunicações. Outro membro da equipe do general foi exonerado: Jorge Luiz Kormann, tenente-coronel da reserva, que estava como secretário-executivo adjunto da pasta.

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