Pequeno capítulo da resistível ofensiva ultraconservadora

Num hospital de referência, uma mulher em busca de aborto legal é abordada por alguém que lhe oferece… a Bíblia. É mais uma peça na longa escalada bolsonarista contra os direitos sexuais e reprodutivas. Veja algumas das ameaças recentes

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Por Leila Salim e Raquel Torres | Imagem: Francisco Goya

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OFENSIVA ULTRACONSERVADORA

Uma mulher sofre um estupro, dentro de um casamento abusivo, e engravida. Procura uma instituição pública, hospital de referência na área, para exercer seu direito ao aborto, garantido por lei para casos como o seu. Na fila para realizar o exame de ultrassom, em vez de tratamento adequado e acolhimento, recebe uma bíblia. O Estado é, oficialmente, laico. No entorno: mulheres uniformizadas seguem a distribuição do material religioso. São caixas cheias de bíblias, que vão sendo entregues a outras vítimas. Poderia ser o enredo de um romance distópico sobre a violação de direitos das mulheres, mas é o Brasil de Bolsonaro em 2021. 

O caso ocorreu no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, na última quarta. Foi denunciado pela mulher, que mantém o anonimato, ao projeto Milhas pela Vida das Mulheres, que oferece informações e suporte sobre abortamento legal no Brasil e no exterior. Fundadora do projeto, a roteirista Juliana Reis contou a’O Globo que a organização entrará com manifestação no Ministério Público quanto ao caso. 

Longe de ser um acontecimento isolado, a violação da semana é parte da escalada bolsonarista contra os direitos sexuais e reprodutivos. Faz apenas alguns dias que comentamos aqui que o ministro da Saúde tornou sem efeito uma resolução do Conselho Nacional de Saúde simplesmente porque ela defendia assegurar assistência integral e humanizada à mulher nos casos em que o aborto já é garantido pela lei brasileira (gravidez decorrente de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal). 

A saga obscurantista tem outros capítulos, como o PL 5435, que tramita no Senado e coloca em risco o aborto legal; a exigência, por planos de saúde, de autorização do marido para inserção do dispositivo intrauternino em mulheres, prática que agora será apurada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); o tenebroso caso em que uma menina de 10 anos vítima de estupro sofreu ameaças e precisou lutar contra a Justiça para assegurar a realização da interrupção da gravidez, no ano passado; e a exoneração de servidores do Ministério da Saúde que publicaram nota técnica orientando a realização de aborto legal e garantia de acesso a métodos contraceptivos durante a pandemia, na gestão de Eduardo Pazuello. E esses são apenas alguns dos retrocessos.  

O Pérola Byington, onde o mais recente ataque teve sítio, é um centro de referência em saúde da mulher e o mais reconhecido hospital do Brasil para a realização de aborto legal e atendimento a vítimas de violência sexual. Segundo a mulher que fez a denúncia, não foi possível identificar quem eram as mulheres distribuindo bíblias na fila de atendimentos. Mas, como destacou Debora Diniz, uma das principais pesquisadoras no tema do aborto no Brasil, “se é uma prática instituída pelo hospital como rotina, ou se é inventada pelas visitadoras da fé, a responsabilidade é igualmente devida aos diretores dos hospitais. É a eles que cabe que cada mulher tenha seu direito inalienável de ser cuidada sem ser importunada pelo proselitismo religioso de outros”. 

A pesquisadora reforça que a prática fere a laicidade do Estado e configura “abuso de poder e interferência indevida nas formas de cuidado de uma mulher muito vulnerável e em busca de socorro”. E diferencia: o que ocorreu no Pérola é o oposto da determinação legal que garante assistência religiosa ao paciente que assim desejar e solicitar, que se baseia justamente na proteção do usuário do serviço de saúde em todos os níveis.

Um ofício à direção do hospital foi protocolado pela deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL/SP), que pediu esclarecimentos sobre o caso. A Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo afirmou, em nota enviada à imprensa, que “lamenta” o ocorrido e “repudia qualquer atitude contrária à liberdade de consciência e de crença quanto o caráter laico de instituições públicas, previstos em Constituição”. 

VEM AÍ?

Chegando à reta final de seus trabalhos, a CPI  da Covid aprovou ontem um conjunto de requerimentos que podem esquentar as investigações. Foi determinada a quebra de sigilo telefônico, fiscal, bancário e telemático do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-RJ) e de Frederick Wassef, o controverso “advogado da família Bolsonaro” que chegou a andar pelos corredores do Senado assuntando os trabalhos da comissão. Além disso, entraram na lista das quebras de sigilo influenciadores bolsonaristas nas redes sociais, na esteira das investigações sobre o financiamento da disseminação de desinformação sobre a pandemia. 

Barros reagiu. O líder do governo entrou com mandado de segurança no STF para tentar anular a medida, argumentando que a comissão parlamentar não tem o poder de quebrar sigilo de um deputado federal e que a decisão não foi devidamente fundamentada. No fim da tarde, a ministra do Supremo Cármen Lúcia deu à CPI um prazo de 24 horas para esclarecer o pedido, destacando especialmente “a quebra do sigilo fiscal a alcançar período anterior ao pandêmico (2016 até a presente data)”.  

As medidas aprovadas ontem fazem parte de um imenso bloco de requerimentos, que inclui ainda Roberto Dias, o ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde suspeito de pedir propinas e intermediar negociações irregulares na compra de vacinas. A comissão pedirá informações sobre sua atuação ao Ministério da Saúde e à Casa Civil. Entrou na lista, também, a Fib Bank, instituição financeira que deu aval ao contrato fechado entre a Precisa Medicamentos e o governo federal na compra da Covaxin. A empresa terá seus sigilos fiscal, bancário, telemático e telefônico quebrados. 

MUDOU DE IDEIA

Depois de quatro reagendamentos, Francisco Maximiano, dono da Precisa Medicamentos, finalmente falou à CPI ontem. Ele culpou uma atravessadora dos Emirados Árabes Unidos, chamada Envixia, pelas  fraudes nos documentos que sua empresa entregou ao Ministério da Saúde nas negociações para compra da Covaxin.  Ele admitiu ainda conhecer Ricardo Barros, mas negou o famigerado “rolo” a que Bolsonaro teria se referido, segundo a denúncia feita pelo deputado Luis Miranda (DEM – DF). Disse que não fez qualquer pedido para que sua empresa fosse beneficiada nas tratativas para compra de imunizantes pelo governo.

Como boa parte dos depoentes, Maximiano foi à CPI amparado por habeas corpus e não respondeu muitas das perguntas, o que novamente irritou os senadores. Mesmo assim, quase saiu preso. Já ao final da sessão, Alessandro Vieira (Cidadania-SE) pediu que a cúpula da CPI avaliasse a prisão de Maximiano por falso testemunho. É que o dono da Precisa mentiu quanto a um apartamento usado por Marcos Tolentino, empresário investigado pela CPI que é amigo de Barros. Maximiano, primeiro, disse que era apenas fiador do imóvel. Quando os senadores apresentaram documentos comprovando que ele era, na verdade, locatário do apartamento, ele corrigiu a declaração e se safou da prisão. 

SEM BOLA DE CRISTAL

Para quem ainda nem terminou de elaborar os perigos da Delta e, ao mesmo tempo, está exausto da pandemia (todos nós?), nadar no mar de incertezas que rodeia a evolução futura do  SARS-CoV-2 é desagradável. Mas é a partir dessas incertezas que a ótima reportagem publicada no site da Science traz muito o que pensar. O texto já começa lembrando que o vírus contrariou várias das previsões feitas por cientistas nos primeiros meses de 2020. Um deles, o especialista em evolução viral da Universidade de Sydney Edward Holmes, esperava que o coronavírus evoluísse para apresentar algum escape à imunidade humana, mas que com o tempo deixasse as pessoas menos doentes e mudasse pouco seu grau de infecciosidade. 

Um ano depois, cá estamos com quatro variantes de preocupação (e várias outras sendo monitoradas pela OMS por seu potencial perigo), sendo que a Alfa parece ser 50% mais transmissível que a cepa original e, a Delta, de 40% a 60% mais transmissível que a Alfa. Se até pouco tempo atrás acreditávamos que a vacinação atingiria um ponto de imunidade coletiva – quando haveria tanta gente imune que o vírus teria dificuldade para encontrar alguém para infectar –, agora esse ponto já parece inalcançável por conta da facilidade com que a Delta se espalha. Para muitos cientistas, a ideia da imunização como estratégia coletiva perdeu força. “As pessoas devem ser encorajadas a se vacinar, mas, no fim das contas, o objetivo principal da vacinação agora é proteger a si mesmas, não a outros”, diz o diretor do instituto de genética da UCL de Londres, François Balloux, citado pela Folha. Um verdadeiro salve-se quem puder – quem puder se vacinar.

O que seria um problema menos grave se o acesso aos imunizantes fosse universal. Primeiro, obviamente, porque menos gente morreria. Segundo porque, mesmo que as infecções entre vacinados não sejam tão raras quanto gostaríamos, elas acontecem com menos frequência e, quanto menos gente o vírus infecta, menos chance ele tem de sofrer mutação. Só que a história é outra. Temos ao mesmo tempo muita gente vacinada no mundo – mais de dois bilhões receberam ao menos a primeira dose – e centenas de milhões que já foram infectadas, mas também uma multidão totalmente suscetível. E existe um limite para a eficácia da transmissibilidade dos vírus (não sabemos se o SARS-CoV-2 já chegou no seu platô, mas cedo ou tarde isso vai acontecer). Nesse cenário, novas variantes que escapem das vacinas começam a ter uma grande vantagem evolutiva em relação àquelas que são mais transmissíveis.

O escape às vacinas vai acontecer? Se acontecer, vai necessariamente trazer problemas? Não sabemos. “O escape imunológico é muito  preocupante porque pode obrigar a humanidade a atualizar continuamente suas vacinas, como acontece com a gripe. Mesmo assim, as vacinas contra muitas outras doenças – sarampo, poliomielite e febre amarela, por exemplo – permaneceram eficazes por décadas sem atualizações, mesmo nos raros casos em que surgiram variantes que evitam o sistema imunológico”, explica o repórter Kai Kupferschmidt, da Science.

Por enquanto, olhando para outros coronavírus e para simulações feitas com o próprio SARS-CoV-2, os cientistas acreditam que o escape imunológico é improvável, ao menos no curto e médio prazos. Só que improvável não é impossível e, com milhões de pessoas se infectando, o vírus tem chances aumentadas de desenvolver uma combinação explosiva de mutações que traga novos problemas. “Muitos ainda veem Alfa e Delta como sendo o pior que as coisas podem ficar. Seria sensato considerá-las como passos em uma possível trajetória que pode desafiar ainda mais nossa resposta de saúde pública”, alerta Aris Katzourakis, da Universidade de Oxford.

Desnecessário dizer qual é a saída para encurtar a carreira desse vírus, mas fica aqui o reforço: precisamos vacinar o mundo todo. E também são muito interessantes as pesquisas com novos imunizantes intranasais, que, ao menos em tese, têm maiores chances de bloquear a transmissão.

EVIDÊNCIAS DO REINO UNIDO

Um trabalho da Universidade de Oxford (ainda não publicado e não revisado por pares) relata que as vacinas da Pfizer/BioNTech e Oxford/AstraZeneca conferem boa proteção contra infecções causadas pela variante Delta, mas que essa proteção foi menor do que contra a Alfa – e caiu com o tempo.

Os pesquisadores analisaram testes PCR de mais de 380 mil pessoas entre dezembro de 2020 e maio deste ano, quando a Alfa predominava no Reino Unido, e depois de 360 mil pessoas de maio a agosto, quando a principal variante já era a Delta. Nesse caso, um mês após a segunda dose, a proteção conferida pela Pfizer foi maior (90%, contra 67% da AstraZeneca). Mas, após três meses, a proteção da Pfizer caiu mais: ficou em 78%, contra 61% da AstraZeneca. 

É importante destacar que a análise se refere à proteção contra infecções de modo geral, e outros estudos já haviam mostrado uma queda diante da Delta. “Lamentavelmente, este artigo não inclui uma análise de proteção contra doenças graves, mas a baixa incidência de hospitalização observada até o momento sugere que, a esse respeito, as vacinas estão protegendo os indivíduos do desenvolvimento de covid-19 grave. Não recebemos informações sobre os grupos que recebem os vários tipos de vacinas e não está claro se elas estão bem equilibradas com relação aos fatores de risco para doenças graves. Esta informação seria útil para interpretar se as diferenças observadas na eficácia da vacina podem estar ligadas a fatores do paciente ao invés do tipo de vacina”, pondera Penny Ward, professora do Kings College London, no Science Media Centre.

ANTES FOSSEM SÓ INÚTEIS

Aquelas barreiras de acrílico que parecem evitar o espalhamento do coronavírus não cumprem bem esse papel. Na verdade, podem até piorar as condições do espaço, dizem cientistas que estudam aerossóis e fluxo de ar ao New York Times.

“Em condições normais em lojas, salas de aula e escritórios, as partículas do ar exalado se dispersam, transportadas pelas correntes de ar e, dependendo do sistema de ventilação, são substituídas por ar fresco aproximadamente a cada 15 a 30 minutos. Mas erguer barreiras de plástico pode alterar o fluxo de ar em uma sala, interromper a ventilação normal e criar ‘zonas mortas’, onde as partículas de aerossol virais podem se acumular e se tornar altamente concentradas”, explica a reportagem. 

Há poucas exceções em que as barreiras podem servir para algo, como para impedir gotículas grandes de tosses e espirros de chegarem a outras pessoas, o que pode justificar protetores em cima de buffets. Mas já se sabe que o coronavírus é largamente transmitido via partículas muito menores, que viajam pelo ar. Então, no geral, as mini-paredes ajudam pouco e podem atrapalhar muito. Pois é. Estúdios de TVescolas e até o mais recente plano de convivência da Fiocruz (que orienta para a adoção de divisórias entre as pessoas quando o distanciamento não for possível) estão conduzindo o problema do jeito errado.

CADA VEZ PIOR

O ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse ontem, que o grau de deficiência elevado de algumas crianças torna impossível a convivência em sala de aula. Sim, com essas palavras mesmo: “Nós temos hoje 1,3 milhão de crianças com deficiência que estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência que é impossível a convivência. O que o nosso governo fez? Em vez de simplesmente jogá-los dentro de uma sala de aula, pelo ‘inclusivismo’, nós estamos criando salas especiais para que essas crianças possam receber o tratamento que merecem e precisam”.

Há vários dias, Ribeiro tem utilizado sistematicamente declarações capacitistas para defender a criação de turmas e escolas especializadas que atendam apenas estudantes com deficiência, em vez do esforço para incluí-los todos nas turmas regulares. No último dia 9, em entrevista ao programa Novo Sem Censura, ele chegou a afirmar que a inclusão de estudantes com necessidades especiais “atrapalhava, entre aspas” o aprendizado dos outros. Quando tentou se explicar, depois, disse que a fala tinha sido tirada de contexto… Mas insistiu que algumas crianças “criam dificuldades” para as demais.

E, ontem, mais essa. Para completar, ninguém nem sabe como ele chegou aos tais 12%, como observa o G1. Em nota, o MEC “manifestou publicamente o seu pedido de desculpas às pessoas que se sentiram ofendidas”. Puxado.

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