O instigante fenômeno da resistência natural à covid

Avançam (inclusive no Brasil) estudos sobre por que raros indivíduos não adoecem, mesmo se intensamente expostos ao coronavírus. Pesquisas sugerem, como causa, condições genéticas — e podem contribuir para futuros tratamentos

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RESPOSTAS NOS GENES

Algumas pessoas parecem não se infectar nunca com o SARS-CoV-2, mesmo após a exposição contínua, prolongada e sem proteção a pessoas próximas com covid-19. A professora de genética da USP Mayana Zatz estudou casais discordantes – quando um se infecta, mas o outro não – em busca de explicações. E seu trabalho, que começou no ano passado e está bem descrito nesta matéria de abril do Jornal da USP, é mote para uma reportagem do STAT que aborda também outras pesquisas sobre resistência a vírus.

Nos anos 1990, um homem chamou a atenção de médicos por não se infectar com o HIV apesar de ter tido múltiplos contatos com o vírus. Testes mostraram que ele tinha uma mutação genética que impedia o HIV de entrar em suas células e, mais tarde, pesquisas com mulheres no Quênia sugeriram que pode haver vários genes e proteínas que, juntas, conferem essa proteção. 

A própria Mayana Zatz tem um importante trabalho anterior sobre esse tipo de resistência, mas ligada ao zika. Em 2018, ela publicou um estudo sobre sobre pares de gêmeos cujas mães haviam sido infectadas com zika durante a gravidez, mas em que, de cada par, só um dos gêmeos havia nascido com microcefalia. Na época, os testes conduzidos apoiaram a hipótese de que havia uma causa genética para que alguns dos bebês fossem poupados. 

Em relação à covid-19, a descoberta de genes possivelmente ligados à resistência foi relatada pela primeira vez por uma equipe de cientistas da Universidade de Nova York e da Escola de Medicina Icahn no Monte Sinai, lembra o STAT. Ainda no início do ano passado, eles desativaram, um por vez, os 20 mil genes humanos nas células pulmonares, expondo-as em seguida ao SARS-CoV-2. E viram que alguns genes eram essenciais para a manutenção do vírus – a inibição deles reduzia a infecção. A pesquisa de Zatz em relação aos casais discordantes, por sua vez, viu que alguns genes estavam aumentados nos indívíduos infectados, enquanto outros estavam aumentados nos resistentes.

Além de essas descobertas serem muito instigantes, elas são bem úteis à pesquisa de futuros tratamentos – e não só contra os vírus estudados. No caso do zika, por exemplo, o vírus é que acabou sendo testado como remédio. Isso porque alguns tumores cerebrais de origem embrionária são compostos em grande parte por células neuroprogenitoras que, como mostrou a pesquisa de Zatz com os gêmeos, são atacadas pelo zika. Isso motivou novos experimentos em que tumores cerebrais em camundongos e cães foram “tratados” com zika. Os resultados foram muito bons: houve redução significativa nos tumores, os cães ganharam meses de sobrevida sem efeitos colaterais e, no caso dos camundongos, parte das células cancerosas foi totalmente eliminada.

MAIS UMA PEÇA

Após o estudo da efetividade da CoronaVac em idosos, agora foi divulgado (ainda como preprint, sem revisão de pares) uma pesquisa conjunta do InCor (Instituto do Coração) e da USP sobre a imunogenicidade dessa vacina, ou seja, a capacidade do organismo de gerar resposta imune. O tamanho da amostra é pequeno: 101 pessoas totalmente vacinadas, 72 recuperadas da covid-19 e e 36 de um grupo controle (ainda não vacinadas nem infectadas). Ainda assim, o trabalho é mais uma peça no corpo de evidências que apoiam a necessidade de reforçar a proteção aos mais velhos.

A análise mostrou que 95% dos participantes vacinados produziram algum tipo de resposta imune, contra 99% dos pacientes recuperados. Uma resposta protetora completa – com anticorpos e células de defesa – foi formada em 70% dos convalescentes e em 59% dos que receberam a vacina.

A quantidade de células T foi maior nos recuperados. Em relação aos anticorpos especificamente, houve algumas particularidades, como ressalta a matéria da Folha. A taxa de anticorpos anti-RBD (uma usada pelo vírus para invadir as células) era maior nos vacinados. Já os anticorpos anti-spike (a proteína que o vírus usa para entrar nas células) esteve bem mais presente no sangue dos convalescentes do que no dos vacinados: a taxa foi de 1,5 a 2 vezes maior – e, nos maiores de 55 anos, a taxa nos recuperados foi seis vezes maior que nos vacinados, o que é uma diferença bem grande. 

Isso quer dizer que se infectar é uma boa maneira de se proteger – ou, como já disse o presidente Bolsonaro, que a “melhor vacina” é o vírus? Óbvio que não – afinal, a doença sempre tem o risco de matar a pessoa vez de imunizá-la… Mas os autores concluem que uma dose de reforço heteróloga (de outro imunizante) pode beneficiar os maiores de 55 anos que tenham tomado a CoronaVac.

TÁ NA LEI (AINDA)

Entre mais ataques ao judiciário, arroubos golpistas e no clima de radicalização de suas bases para os protestos previstos para o próximo dia 7, Bolsonaro começou a semana declarando que planeja derrubar a obrigatoriedade do uso de máscaras como medida de proteção contra a covid-19. Na manhã de ontem, em entrevista à Rádio Nova Regional, do Vale da Ribeira (SP), ele disse que se reuniria ontem mesmo com o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para “dar uma solução para esse caso”. 

Não é a primeira vez que o presidente tenta chamar a atenção com esse tipo de fala. Há dois meses ele chegou a declarar que Queiroga iria “ultimar um parecer” nesse sentido… Desta vez, para não perder o costume, contrariou a ciência e as autoridades de saúde, defendendo que diante do número de brasileiros vacinados ou já infectados – “obviamente imunizados também”, segundo ele  – o uso de máscaras deveria passar a ser facultativo. Um pouco mais tarde, Queiroga – que na semana passada fez declaração contrária ao uso obrigatório da proteção facial – disse que se encontrará com Bolsonaro hoje e que apresentará um “esboço” dos estudos feitos pelo Ministério sobre a medida. 

Mas a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos e privados (que sejam de acesso público, como  indústrias, lojas, templos, escolas e outros locais fechados) é lei e, por isso, não pode ser simplesmente descartada assim. Aprovada em julho do ano passado, a lei 14.019/20 chegou a ser enfraquecida por vetos de Bolsonaro, que, no entanto, foram em sua maioria derrubados pelo Congresso. É o dispositivo, inclusive, que estabelece que cabe aos entes federados responsáveis a aplicação de multas para quem descumprir a determinação legal. Além disso, alguns estados e municípios têm regulamentações específicas sobre o assunto, de alcance local, e pretendem seguir implementando a medida. 

Pra ficar de olho: tramita na Câmara o projeto de lei 4646/20, que busca alterar a legislação vigente e derrubar a obrigatoriedade do uso de máscaras. Parado desde abril e aguardando designação de relator na Comissão de Seguridade Social e Família, o PL – que apensa vários outros com o mesmo teor – pode ser um caminho caso o governo Bolsonaro decida pressionar a Casa legislativa para a efetivação desse (mais esse) retrocesso. 

O ROLO

Ricardo Barros bem que tentou, mas – pelo menos por enquanto – não conseguiu reverter a quebra de seus sigilos fiscal, bancário, telefônico e telemático. Ontem, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou a liminar do deputado e líder do governo Bolsonaro na Câmara, que buscava anular a medida aprovada pela CPI da Covid. A ministra pontuou, porém, que os dados obtidos com a quebra de sigilo devem ficar restritos aos senadores integrantes da comissão, além do próprio Barros e seus advogados. A decisão é temporária, em caráter liminar. 

E hoje a CPI ouve Emanuel Catori, um dos donos da farmacêutica Belcher. A empresa – que atuou como intermediária do laboratório chinês CanSino numa negociação para a venda de vacinas por R$ 5 bilhões ao Ministério da Saúde – é sediada em Maringá, base eleitoral de Barros. O líder do governo já foi, inclusive, prefeito da cidade paranaense. Outro dos donos da empresa é Daniel Moleirinho Feio Ribeiro, cujo pai foi diretor da empresa pública de Urbanização de Maringá durante a gestão de Barros como prefeito. O próprio Daniel Moleirinho também atuou na Sanepar (Companhia de Saneamento do Paraná) durante o governo de Cida Borghetti (PP), esposa de Barros. Tudo uma grande coincidência entre família e amigos. 

REVÉS

Quem sofreu um revés foi o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Na noite de ontem, a Controladoria-Geral da União (CGU) atendeu parcialmente um pedido da Folha e determinou que o  Exército forneça, em um prazo máximo de 20 dias, os documentos relativos ao processo administrativo que absolveu o general da ativa no caso de sua participação em ato político ao lado de Bolsonaro, em maio. Pra lembrar: em junho, a Força impôs um sigilo de até 100 anos sobre o caso, negando à sociedade o conhecimento das investigações e as conclusões que levaram à decisão de inocentar Pazuello. O jornal fez a solicitação através da Lei de Acesso à Informação. 

NOVA FASE

A FDA (análoga à Anvisa dos Estados Unidos) concedeu ontem a aprovação definitiva ao imunizante da Pfizer/BioNTech, que, até agora, só havia recebido autorização de uso emergencial. Ele vai ser vendida com o nome Comirnaty. Essa é uma decisão aguardada há tempos por especialistas que acreditam haver aí uma chance para aumentar a cobertura vacinal no país, onde uma parte nada desprezível da população ainda desconfia dos imunizantes. 

Mas as autoridades – e empresários também – não contam só com a mudança de ideia de ex-hesitantes: poucas horas após o sinal verde da FDA, o Departamento de Defesa do país, as empresas Chevron e CVS Health e o sistema escolar da cidade de Nova York, entre outros, anunciaram que terão vacinação obrigatória. O presidente Joe Biden estimulou que  gestores públicos e privados procedam assim: “Faça o que eu fiz no mês passado. Exija que seus funcionários sejam vacinados ou enfrente requisitos rígidos”, disse, em discurso sobre a aprovação.

Em tempo: a aprovação vale para maiores de 16 anos. Para adolescentes entre 12 e 15 anos, continua valendo o uso emergencial. E a FDA exigiu que a Pfizer conduza estudos para avaliar melhor os riscos de miocardite e pericardite após a vacinação. 

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