Limpeza das praias, à custa da própria saúde

Já houve ao menos 17 casos de intoxicação entre pessoas que removem, no braço, o petróleo das águas do Nordeste. Governo segue negligente e disseminando fake news. Leia também: o evento das seguradoras visto de dentro

Foto: Agência Petrobras
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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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À CUSTA DA PRÓPRIA SAÚDE

Não falta gente parabenizando os voluntários que estão removendo, no braço, o óleo que polui as águas do Nordeste. Tudo bem. Mas não devia ser assim – “os voluntários não têm alternativa para sobreviver senão limpar o mar, que é de onde tiram o seu sustento. E, para isso, estão colocando a vida em risco“, lembra Mariama Correia, no Intercept Brasil: “O material encontrado nas praias é petróleo cru, rico em hidrocarbonetos cancerígenos. Também pode causar asfixia em altas concentrações. A curto prazo, gera problemas dermatológicos e respiratórios. A longo, pode gerar problemas neurológicos e alguns tipos de câncer, como leucemia”, lista a repórter.  

“Começamos cedinho e vamos até a noite. Isso aqui é nosso ganha-pão. Se não puder pescar, minha família vai passar necessidade.” O relato é de Adalberto Barbosa, pescador que mora e trabalha em São José da Coroa Grande. A cidade, localizada no litoral Sul de Pernambuco, registrou 17 casos de intoxicação pelo contato com o óleo. Barbosa foi um dos voluntários a parar no hospital com dor de cabeça forte e náuseas. Ele só parou um dia.   

As repórteres Priscila Mengue e Mônica Bernardes, do Estadão, acompanharam mutirões nas praias pernambucanas nos últimos três dias. E alertam: a situação dos voluntários e até dos agentes públicos é preocupante, pois alguma parte do corpo acaba ficando exposta ao contato com o petróleo. Algumas das reações alérgicas já relatadas incluem inflamação nos olhos e aparecimento de caroços na pele. As manchas já atingiram 88 municípios, em 233 localidades.

Enquanto as pessoas comuns dão a própria saúde para limpar o litoral, o governo federal continua negligente. Ou melhor: atuante na esfera das fake news. Ontem, Ricardo Salles insinuou que a ONG Greenpeace pode ter alguma coisa a ver com o derramamento de óleo: “Tem umas coincidências na vida né… Parece que o navio do #greenpixe estava justamente navegando em águas internacionais, em frente ao litoral brasileiro bem na época do derramamento de óleo venezuelano…(sic)”, escreveu o ministro do Meio Ambiente no Twitter. A ONG informou que entrará na Justiça contra o ministro. 

O EVENTO DAS SEGURADORAS

Ontem foi o dia em que as seguradoras de saúde reunidas na FenaSaúde apresentaram sua proposta de mudança na lei dos planos. Convidado para palestrar no fórum da entidade, o ministro Luiz Henrique Mandetta afirmou que a lei 9.656 fez o mercado migrar de um cenário “totalmente desregulado” para “uma situação que quer regulamentar até a cor da cadeira que a pessoa senta”. “Eu acho a lei extremamente engessante. Extremamente restritiva”, criticou ele, que já foi presidente da Unimed em Campo Grande. Partindo do princípio de que a legislação aprovada em 1998 foi feita pensando apenas na realidade do Sudeste do país, Mandetta defendeu que é preciso “ter alguns olhares mais personalizados”. Nunca é demais lembrar: as empresas querem aval para comercializar planos fatiados, que ofereçam só consultas – sem direito a atendimento ambulatorial ou internações. Mais baratos, portanto. Deve ser essa a “solução” que Mandetta infere que deva ser implementada para o restante do país. O ministro da Saúde, no entanto, não se posicionou especificamente sobre as propostas de mudança colocadas na mesa pela FenaSaúde. “Esse é um debate do Congresso. Quando ele existir, a gente pode eventualmente participar”, esquivou-se. 

Um leitor da newsletter estava lá e nos contou sobre a participação de outros ‘personagens’ no evento das seguradoras. O secretário-geral da Previdência, Rogério Marinho, também foi convidado a palestrar. E defendeu proposta feita por ele mesmo, quando deputado federal, de flexibilizar o Estatuto do Idoso, permitindo a aplicação de reajustes nos planos de saúde para pessoas com mais de 60 anos, prática hoje vedada. A participação do representante do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, órgão ligado ao Ministério da Justiça, gerou reações na plateia e nas redes sociais. “Lamentável” foi como uma servidora do Procon considerou a fala, que apoiou a reforma no setor. Coube ao neoliberal Armínio Fraga problematizar a proposta das empresas. Ele ressaltou que equidade requer políticas distributivas e de proteção ao consumidor, apontando insatisfação e sensação de injustiça na população. E lembrou que a proposta de modulação de coberturas já existe hoje, na tão criticada lei 9.656. “Não é muito óbvio assim para mim que o ganho de variedade vai ser tão grande. A partir de um certo ponto a coisa fica tão complicada que as pessoas não entendem direito”.

Encerrando o debate, o presidente da FenaSaúde, João Alceu Amoroso Lima, tentou ressaltar uma convergência de agenda nada evidente, dizendo que as medidas propostas têm apoio de outras associações do setor. “Praticamente tudo o que está sendo dito tem alinhamento grande com outras operadoras”, afirmou. Mas a Associação Nacional das Administradoras de Benefícios publicou nota dizendo ser “fundamental que não haja qualquer tipo de retrocesso nos direitos dos consumidores”. E a Confederação Nacional de Saúde foi na mesma direção: “qualquer mudança precisa preservar o direito do consumidor que contratou o plano de saúde para que este possa ser atendido com qualidade e agilidade quando precisar de assistência”. 

MENOR E PIOR

Já falamos algumas vezes sobre a proposta do governo federal de mudar o financiamento da atenção primária. Anunciada pela primeira vez no mês passado, a ideia tem sido apresentada ao público geral em algumas reportagens na imprensa e, ao mesmo tempo, é intensamente debatida nos eventos e encontros específicos da área da saúde. Por enquanto, de documentos concretos, há apenas dois power points apresentados por representantes do governo em setembro e outubro – mas eles já dizem muito. E é a partir das informações dos slides que os professores Áquilas Mendes (USP e PUC-SP) e Leonardo Carnut (Unifesp) sistematizam as mudanças, contextualizando-as ponto a ponto.

Não se trata apenas de uma nova forma de financiamento, dizem eles, mas também do financiamento de uma outra atenção primária. Por exemplo: quase metade do orçamento da Secretaria de APS no ano que vem vai para um componente chamado ‘capitação ponderada’, que se concentra nas pessoas mais vulneráveis socioeconomicamente que estejam cadastradas nas equipes de saúde da família e na atenção primária credenciada. “Reconhecemos que a ‘o novo’ modelo será para transferir recursos para uma atenção primária centrada na atenção aos mais pobres, valor essencial de uma concepção neoliberal, que prioriza a eficiência econômica na alocação dos recursos focalizados, ou seja, um ‘SUS para os pobres’. De certa forma, elimina-se a lógica de transferências de um per capita baseado no conjunto da população do município, rompendo o vínculo com o território – população. Neste sentido, dificulta-se o fortalecimento das visitas domiciliares, prejudicando a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde, principalmente pela ausência de recursos globais direcionado à atenção primária nos municípios”. Estima-se que, com as mudanças, 78 cidades vão perder dinheiro – nada menos que uma soma de R$ 417 milhões, ou 62,9% do que eles receberam em 2018.

VOLTANDO NO TEMPO

Pois é. Escrevendo especialmente para o Outra Saúde, o professor da USP Paulo Capel Narvai detalha como o ‘novo financiamento’ vai deixar a saúde bucal à míngua. Não que isso seja uma surpresa: o presidente nunca demonstrou ter grandes planos para a área. Além disso, desde a época da campanha eleitoral, o ministro Luiz Henrique Mandetta diz que é possível “fazer muito mais” com o dinheiro que o SUS já tem – máxima defendida no programa de governo de Bolsonaro, em concordância com a manutenção do Teto dos Gastos.

Mas as contas de Capel mostram que “fazer mais” não vai ser uma tarefa nada fácil. A previsão é que, em 2022, seja alocado cerca de R$ 1,3 bilhão na área, contando a atenção básica e os Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs). Parece muito? Pois em 2005, quando o programa Brasil Sorridente dava seus primeiros passos, o valor foi de R$ 1,27 bi, corrigido pela inflação. Quase igual, mas com uma pequena diferença: na época, havia 12,6 mil equipes de saúde bucal e 161 CEOs. Hoje, são quase 27 mil equipes e mais de mil centros especializados, e ainda tem 1,9 mil laboratórios regionais de prótese dentária e as 302 Unidades Odontológicas Móveis. Haja “eficiência” pra dar conta…

MARCO HISTÓRICO

Ontem, a Organização Mundial da Saúde anunciou um importante marco histórico: o tipo 3 do vírus selvagem da poliomielite foi erradicado no planeta. O último registro de um caso ligado a ele aconteceu em Uganda, em 2012. Agora, um comitê de especialistas bateu o martelo. “É um divisor de águas para a saúde global”, comemorou o diretor-geral Tedros Adhanom Ghebreyesus, frisando que o organismo se mantém totalmente comprometido para a erradicação total da doença. Existem três tipos de vírus, e o 1 ainda é um problema no Paquistão e no Afeganistão. 

O fato de ainda haver países com o vírus circulando levou a Folha a destacar um dado preocupante: cem municípios brasileiros estão, hoje, com coberturas da vacina contra pólio abaixo dos 50%, quando o ideal é 95%. “O problema é se alguém infectado (não necessariamente doente) viajar ao Brasil e transmiti-lo a uma pessoa sem histórico de imunização, o que pode levar ao início de novos casos”, pondera a repórter Patrícia Pasquini.

IMPORTAÇÃO DE ESTRATÉGIAS

Em países onde as legislações sobre aborto são mais abrangentes do que no Brasil (e que sofrem pressão conservadora para que se aumentem as restrições), é relativamente comum que representantes dos chamados grupos pró-vida se postem diante de clínicas para hostilizar mulheres que vão realizar o procedimento. Já comentamos isso na newsletter: há lugares que estão criando espécies de bolsões de segurança no entorno das unidades para evitar isso. Pois a moda parece ter chegado por aqui, no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, referência no atendimento a vítimas de estupro e para a realização de aborto legal. Desde o dia 25 de setembro, o grupo católico “40 dias pela vida SP” monta diariamente sua tenda em frente à entrada do hospital. Com origem nos Estados Unidos e filiais em diversos países, a campanha também tem como alvo profissionais que atendem essas mulheres, como médicos, enfermeiros e psicólogos. Placas condenando a interrupção da gravidez, fotos de bebês e uma mesa com imagens de santos católicos e miniaturas de fetos fazem parte do arsenal, segundo a reportagem da Agência Pública. E o que é ainda mais grave: já teve até agressão física

FALTA PAUTAR

Aconteceu, finalmente. Ontem, o ministro Gilmar Mendes liberou para julgamento uma ação do PSB que contesta restrições impostas à doação de sangue por homens gays. Uma portaria do Ministério da Saúde e uma resolução da Anvisa estabelecem que serão considerados inaptos para doação de sangue – pelo período de 12 meses – os homens que tenham feito relações sexuais com outros homens. Quatro ministros do STF já votaram para declarar inconstitucional a restrição: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Quando chegou a vez de Mendes, nos idos de outubro de 2017, ele pediu a famosa ‘vista’, mais tempo para análise. Agora, o caso está pronto para ser retomado pelo plenário da Corte. Mas… precisa ser pautado pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli. 

ALGORITMO RACISTA

Um algoritmo usado em hospitais e seguradoras para gerenciar o cuidado de cerca de 200 milhões de pessoas por ano nos EUA tem um viés nada irrelevante. Um estudo publicado ontem na Science concluiu, após análise abrangente, que era (muito) menos provável o algoritmo referir pessoas negras do que pessoas brancas igualmente doentes a programas para melhorar o atendimento a pacientes com necessidades médicas complexas. Só 18% dos pacientes identificados pelo algoritmo como necessitando de mais cuidados eram negros, e 82% eram brancos. Isso porque pessoas que se identificaram como negras recebem geralmente escores de risco mais baixos do que os brancos. No geral, os cuidados prestados às pessoas negras custam em média, por ano, US$ 1,8 mil a menos do que os cuidados prestados a uma pessoa branca com o mesmo número de problemas crônicos de saúde.

Falando em algoritmos, o mais novo episódio da série ‘Explicando’, produzida pela Vox em parceria com o Netflix, fala sobre como evoluiu o código de programação. O último estágio de desenvolvimento é justamente o machine learning, quando as pessoas disponibilizam para o computador milhares, milhões de exemplos e ele se programa sozinho, digamos assim. Uma das entrevistadas alerta para o viés de quem alimenta a máquina, por exemplo com bem mais imagens de pessoas brancas, o que leva a uma arquitetura discriminatória. 

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