Na Hungria de Orbán, um sistema de saúde doente

Governo de extrema-direita corta e desvia verbas, acabou com ministério e se recusa a dar estatísticas para não “causar pânico”. Leia também: salto nas internações de crianças com transtornos mentais; a preocupante resistência a antibióticos

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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UM SISTEMA DOENTE

A saúde, definitivamente, não está entre as prioridades de Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria – e um dos políticos de extrema-direita mais influentes do mundo. O futebol, por outro lado… Instituições esportivas, como o time que ele próprio fundou, receberam renúncia fiscal de R$ 1,5 bilhão desde que ele assumiu o governo, em 2010. No condado em que Orban tem uma casa no campo, o estádio de futebol tem área VIP, museu e o dobro de cadeiras do total de habitantes do local. Já o hospital tem apenas dois médicos e nenhum banheiro funcionando, segundo reportaram Patrick Kingsley e Benjamin Novak para o New York Times. “Nos últimos oito anos, o sistema de freios e contrapesos do governo foi desmantelado. E isso aconteceu também no sistema de saúde”, explica um dos entrevistados.

A proporção do PIB gasto em saúde pelo governo é hoje de 4,8%, menor do que em 2009. Orban eliminou o cargo de ministro da Saúde: os assuntos do setor são tocados por um superministério. Em comparação aos outros países da União Europeia, a Hungria hoje ocupa quinta pior posição em relação às mortes causadas por doenças preveníveis. E é a última no ranking quando o assunto é câncer. O governo se recusa a dar estatísticas sobre alguns problemas, como as infecções nos hospitais públicos, sob a justificativa de que os dados “espalham pânico”. Outro número que não se sabe é a quantidade de médicos que emigraram desde que Orban subiu ao poder. Estima-se que tenham sido cinco mil profissionais, o equivalente a 10% dessa força de trabalho no país. 

A maior emergência pública, em Budapeste, sofre com um corte de US$ 1,8 milhão, de acordo com Gabor Zacher, ex-diretor da unidade que renunciou ao cargo em protesto. Conta hoje com 25 médicos, a metade do necessário para atender a demanda, e 1/3 dos leitos funcionando. “Foi demais. Não conseguia me olhar no espelho”, resumiu Zacher. Quem trabalha para o governo é proibido de falar sobre os problemas. “Eles são instruídos a publicar exemplos de avanços positivos toda a semana”, dizem os repórteres, que completam: “O partido de Orban, Fidesz, desviou recursos públicos para empresas do setor privado que têm ligações com o governo – como, aliás, aconteceu em quase todos os setores da economia. E ao menos uma dessas companhias privadas com contratos na saúde desviou dinheiro de impostos para o time de futebol de Orban”. A norma, que permite às empresas renúncia fiscal em favor dos esportes, foi aprovada em 2011.

O CHOCANTE CASO DE RATODERO

Quase 900 crianças da cidade de Ratodero, no Paquistão, contraíram HIV no começo do ano. A história é um conto de terror, mas também um exemplo concreto de porque o acesso à saúde deve ser garantido por um sistema que não distinga as pessoas pela quantidade de dinheiro que elas têm no bolso. Aconteceu assim: as crianças começaram a ficar doentes, até que se descobriu que tinham sido contaminadas por seringas reutilizadas. Quase todas eram pacientes do pediatra Muzaffar Ghanghro, a opção mais barata de Ratodero. Ele cobrava o equivalente a 20 centavos de dólar por consulta na cidade que é uma das mais pobres do Paquistão. 

O jornalista Gulbahar Shaik, que deu o furo de reportagem sobre o caso, entrou em pânico quando soube que as suspeitas recaíam sobre Ghanghro: o médico atendia seus filhos. A filha de dois anos do repórter foi infectada. O pior caso é o do trabalhador Imtiaz Jalbani. Quatro de seus seis filhos foram infectados (e dois morreram). Quando ele viu o pediatra pegando do lixo uma seringa para dar uma injeção no seu filho mais velho, protestou. O médico lhe deu um tapa e falhou que ele era pobre demais para pagar por uma seringa nova. 

O pediatra foi preso. Dentre outras acusações, responde pela de homicídio culposo. Conseguiu sair pagando fiança (embora seja ilegal no caso dele) e atualmente trabalha como clínico geral num hospital do governo… As autoridades paquistanesas, agora, dizem que ele não foi a única causa da epidemia, já que muitos profissionais de saúde também reutilizam seringas e outros materiais. Cerca de 1,1 mil pessoas receberam o diagnóstico de HIV desde então. O próprio governo acredita que o número seja muito maior, pois só uma fração da população foi testada.  

SALTO NAS INTERNAÇÕES

No Brasil, as internações de crianças por transtornos mentais deu um salto em 2018. Na faixa etária que vai dos 10 aos 14 anos, o aumento foi de 36%. E de 12% entre quem tem 15 e 19 anos. Desde 2009, o crescimento acumulado é de 29% – mesmo diante da queda da população nessa faixa etária. De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, uma das explicações pode estar no aumento de tentativas de suicídio, que invariavelmente demandam internações. Entre 2013 e 2017, houve aumentos importantes: de 225% nos casos envolvendo entre crianças de 10 a 14 anos (chegando a 5.596) e de 192% entre aqueles com 15 a 19 anos (chegando a 13.443). 

O psiquiatra Rodrigo Ramos, do departamento de saúde mental da Santa Casa de São Paulo, apontou que o mais frequente é que as tentativas de suicídio estejam associadas a quadros depressivos – mas ele também acredita que casos de 2017 podem estar relacionadas ao jogo da “baleia azul”, que desafiava participantes à automutilação e ao suicídio, e ao seriado “13 Reasons Why”, da Netflix. Liubiana Araújo, da Sociedade Brasileira de Pediatria, vai pelo mesmo caminho: ao mesmo tempo em que há muita exposição a conteúdos violentos, a internet dá a impressão de que há muita gente vivendo uma vida perfeita, o que gera um abismo entre o idealizado e o real. 

SOBRE O PAPEL DA INDÚSTRIA

A resistência antimicrobiana é um problema grave que vem ganhando espaço particularmente depois que os países que compõem a OMS aprovaram um plano global de ação, em 2015. De lá para cá, os líderes de Estado já se reuniram para debater o assunto na sede da ONU e um grupo de especialistas lançou um relatório com números alarmantes. Ontem, a BBC Brasil chamou atenção para um aspecto do problema, mas de forma um tanto incompleta. A reportagem fala de um estudo promissor, desenvolvido no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. Os cientistas conseguiram desenvolver um remédio “teleguiado” capaz de atacar e destruir bactérias com uma microdosagem de antibiótico. A inovação, contudo, não consegue sair do papel. Por um lado, os pesquisadores não têm conhecimento técnico para cumprir todas as etapas e exigências da Anvisa. Por outro, os testes em animais e humanos são extremamente caros – neste caso, podem chegar a R$ 4 bilhões.

“Sem algo que combata de maneira eficaz as superbactérias, o que a indústria faz hoje, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é ‘enxugar gelo’. Isso ocorre porque, mesmo que as empresas invistam alto e passem anos desenvolvendo um novo medicamento, seus efeitos duram pouco tempo, pois as bactérias passam por mutação e criam resistência a ele”, diz a reportagem. Contudo, relatórios internacionais sobre o assunto mostram que um dos problemas é justamente o fato de a indústria ter regredido os investimentos nessa área. A última classe de antibióticos foi desenvolvida em 1987. Em 1990, 18 empresas farmacêuticas tinham programas ativos nesse sentido. Em 2010, apenas quatro permaneciam. 

O South Centre, organismo de cooperação entre os países do Sul global, aponta que uma das razões para isso é que como as companhias visam maximizar os lucros, o investimento em antibióticos foi se tornando menos atraente diante de outras possibilidades, já que o regime de uso dessa classe de medicamentos é restrito (justamente para evitar a resistência). No debate sobre pesquisa & desenvolvimento feito na arena global, a indústria tem pressionado para que os governos ajudem a criar um modelo “sustentável” de negócios injetando recursos públicos nesse mercado por meio, por exemplo, de pagamentos adiantados (as chamadas recompensas de entrada no mercado) e da criação de um fundo global. Por outro lado, movimentando a discussão sobre preços e patentes, se argumenta que não faz sentido investir dinheiro público sem assegurar que o resultado desse investimento estará ao alcance de todos. Além de tudo, como a gente pode ver na própria matéria da BBC Brasil, não é da Big Pharma que a inovação nessa área está surgindo, mas de centros públicos de pesquisa (caso do CNPEM) e mesmo de empresas menores. E isso precisa ser levado em consideração.

FALTA BARIÁTRICA

Reportagem da Época aborda a demanda reprimida por cirurgia bariátrica no Brasil. Apesar de ter aumentado consideravelmente no SUS – 12% no primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano passado – o procedimento deveria ser mais acessível. Em 2018, ao todo, foram feitas 11.402 operações. Mas segundo as informações do Vigitel, inquérito telefônico feito pelo Ministério da Saúde, 13,6 milhões de brasileiros estão com o IMC acima de 35 o que, combinado a fatores como diabetes e hipertensão, tem como tratamento indicado a bariátrica. 

Enquanto isso, nos EUA, a Academia Americana de Pediatria mudou suas recomendações sobre o procedimento. Baseada numa revisão de estudos, a entidade divulgou ontem que pré-adolescentes – ou seja, menores de 12 anos – devem ser submetidos à operação. No país, quase cinco milhões de crianças e adolescentes têm obesidade grave (o número dobrou em apenas 20 anos). Mas, segundo o Stat, muitos deles não têm acesso porque a maior parte os esquemas públicos e privados de seguros não cobrem o procedimento nessa faixa etária. Por lá, a cirurgia custa em média US$ 20 mil.  

LANÇADA

No sábado, foi criada a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia. Aconteceu em Fortaleza, reunindo profissionais de dez estados brasileiros. A nova entidade está baseada em quatro pontos de ação: defesa do Estado democrático de direito, dos direitos humanos, do SUS e do exercício ético do trabalho médico. 

AGENDA

O Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste) promove entre os dias 7 e 8 de novembro um evento para debater o cenário fiscal e as estratégias de financiamento e consolidação do SUS. O encontro acontece na Escola de Saúde Pública da Bahia, em Salvador, é gratuito, aberto ao público e com vagas limitadas. Dá para se inscrever aqui.

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