Vacinas: o dilema ético em torno da terceira dose

Começa em setembro esforço para ampliar imunização dos idosos brasileiros. Opção é apoiada em evidências científicas mas escancara abismo vacinal, num mundo em que 67% da população não recebeu sequer uma única dose

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A TERCEIRA DOSE NO BRASIL

O Ministério da Saúde anunciou ontem que vai mesmo oferecer uma terceira dose de vacina contra a covid-19 a determinados grupos mais vulneráveis, e que já tem prazo para começar: a segunda quinzena de setembro. O ministro Marcelo Queiroga já tinha sinalizado algumas vezes que isso seria feito, mas ele sempre dizia que aguardaria até outubro ou novembro para tomar a decisão – pois é quando devem sair os resultados do estudo sobre terceiras doses encomendado pela pasta à Fiocruz.

A medida vai valer para pessoas imunossuprimidas, como transplantadas e portadoras do HIV, ou com mais de 70 anos; no primeiro caso, as que já tinham tomado a segunda dose (ou a vacina de dose única) há pelo menos 28 dias; no segundo, há mais de seis meses. Todo esse grupo vai ter direito, independentemente do imunizante recebido antes. A terceira dose será preferencialmente da Pfizer/BioNTech, mas, se não houver disponibilidade, pode ser com as vacinas da Janssen ou de Oxford/AstraZeneca. Inclusive, o Estadão apurou que o Ministério quer antecipar a entrega de vacinas da Janssen para este fim.

Para que não fiquem dúvidas: faz um bom tempo que um conjunto de evidências começou a apontar os benefícios da aplicação de doses de fabricantes diferentes

Apesar de o Ministério ter uma orientação geral, estados e municípios podem tomar decisões diferentes. Niterói já vai começar a oferecer amanhã a nova dose, que poderá ser tanto da Pfizer como da CoronaVac. O estado de São Paulo vai oferecê-la a todos os maiores de 60 anos a partir do dia 6 de setembro, mas ainda não decidiu sobre os imunossuprimidos; além disso, a dose adicional será com “qualquer tipo de vacina“, segundo João Gabbardo, coordenador-executivo do Comitê Científico do estado.

Marcelo Queiroga criticou: “Se cada um quiser criar um regime próprio, o Ministério da Saúde lamentavelmente não terá condições de entregar doses de vacinas”, afirmou, em coletiva de imprensa. Ele falou disso até num evento da corretora de investimentos XP: “Oswaldo Cruz enfrentou a revolta da vacina e hoje nós enfrentamos essa anarquia“.

PRIVILÉGIO OU DIREITO?

Faz três meses que saiu o primeiro estudo de “vida real” no Brasil sugerindo que os idosos não estavam suficientemente bem protegidos pela vacinação – comentamos aqui, e depois voltamos ao assunto diversas vezes. De lá para cá, outras evidências foram (e continuam) surgindo.

Ontem mesmo saiu um artigo, ainda sem revisão de pares, calculando a efetividade da CoronaVac e da vacina da AstraZeneca a partir de dados de 61 milhões de pessoas vacinadas no Brasil. Se estudos anteriores já observavam problemas a partir dos 80 anos, este dividiu ainda mais as idades, ajudando entender melhor o quadro. Pela análise, a efetividade da AstraZeneca contra mortes foi perto de 90% para as pessoas abaixo de 90 anos, caindo para 70,5% a partir dessa idade. Já a CoronaVac conferiu cerca de 80% de proteção contra morte para pessoas de até 79 anos, mas ela caiu para 67,3% para o grupo de 80 a 89, chegando a apenas 35,4% para os maiores de 90. Também há evidências de que a proteção conferida pelas vacinas de mRNA, como a da Pfizer, caia em idosos e imunossuprimidos, embora, nesse caso, o ponto de partida seja uma eficácia bastante alta. 

Todo este preâmbulo serve para apimentar o debate – que também temos procurado enfatizar por aqui – sobre o dilema ético de se distribuir novas doses a quem já tomou a vacina, enquanto dezenas de nações de baixa renda ainda não conseguiram vacinar nem 1 ou 2% de suas populações

A OMS já pediu (em vão) uma moratória global de terceiras doses, pelo menos até que se atinja 10% das populações de todos os países. Ontem, a posição foi reforçada: “A prioridade deve ser salvar vidas. Não estamos no momento de recomendar doses extras. Não temos um abastecimento sem limites“, disse a cientista-chefe da entidade, Soumya Swaminathan.

A questão é que, se há dados apontando que as pessoas que mais têm chance de adoecer e morrer por covid-19 continuam muito vulneráveis mesmo após a vacinação, será que pensar doses extras para elas também não se encaixa na prioridade de salvar vidas – e será que não deve, portanto, entrar na conta da quantidade de vacinas necessárias para proteger adequadamente as populações mundo afora? A própria OMS reconhece que, para algumas vacinas e algumas subpopulações, há evidências apontando para a necessidade de terceiras doses. 

Essa discussão não pode vir descolada daquela sobre os acordos desiguais e sobre a produção insuficiente de imunizantes, que é um ponto crucial. Aliás, embora a OMS tenha estabelecido um centro de transferência de tecnologia de vacinas de mRNA na África do Sul, onde as instalações para a fabricação já existem, até hoje a Pfizer e a BioNTech não toparam compartilhar seus conhecimentos

Existe uma lacuna importante: não se sabe quanta proteção as terceiras doses realmente podem trazer, então ainda não se pode dizer com certeza qual o custo-benefício disso. Em outras palavras, mesmo que uma pequena parte da população continue menos protegida pela vacinação, não dá para saber exatamente o quanto vale a pena – no cenário de escassez global e em termos de controle gearl da pandemia – reforçá-la. É uma boa aposta, mas de resultados ainda incertos. Quanto a isso, nos perguntamos por que ensaios clínicos que quantificassem essa proteção extra não foram feitos meses atrás, uma vez que a redução da resposta vacinal em idosos e imunossuprimidos já era um problema conhecido e esperado

PALAVRAS, PALAVRAS

Erramos na newsletter, em várias edições, ao usar os termos “terceira dose” e “reforço” como se fossem sinônimos. Não são, e especialistas explicam a diferença no G1. Terceira dose é quando o esquema vacinal definido em primeiro lugar não atinge seus objetivos, ou seja, não provoca a resposta imune que estava prevista nos estudos. Sua necessidade ou não depende de fatores como idade e condições de saúde, e nesse caso o esquema vacinal completo de idosos, por exemplo, pode ser diferente do de jovens. Já o reforço é dado para quem teve a resposta imune esperada, mas serve para reestabelecer o nível de anticorpos previsto nos estudos quando eventualmente ele cai com o tempo. É o que os Estados Unidos propuseram, quando estabeleceram a oferta de reforço para todas as pessoas que já tenham se vacinado há mais de oito meses.

Mas na verdade está tudo bem confuso,porque ainda não se sabe direito o que vai significar essa terceira dose. O Ministério da Saúde falou em “reforço“, e a Anvisa afirmou que, neste momento específico, terceira dose e reforço vacinal são termos semelhantes, já que o conhecimento a este respeito ainda está sendo gerado. “Se for comprovado que serão sempre necessárias três doses em idosos para gerar reposta imunológica suficiente e relativamente duradoura, vamos chamar de terceira dose”, explica infectologista Suzi Berbert. 

INTERVALO REDUZIDO

O Ministério da Saúde também anunciou ontem que vai reduzir o intervalo entre as doses da vacina da Pfizer e AstraZeneca, de 12 para oito semanas, a partir de setembro. O objetivo é alcançar logo um percentual maior da população totalmente vacinada. A redução poderia ter sido ainda mais drástica, mas optou-se por manter um intervalo razoavelmente longo porque pesquisas no Reino Unido mostraram melhor desempenho das vacinas com um tempo maior entre as doses. 

DESINFORMAÇÃO INTERESSADA

Hospitais mexicanos passaram por problemas com o abastecimento de oxigênio medicinal em 2020: a demanda disparou, as entregas caíram e os preços subiram. Com isso, alguns deles colocaram os custos na ponta do lápis e decidiram construir usinas próprias, para evitar a escassez e fugir dos altos preços. 

Foi aí que começou uma perversidade contada pelo Bureau of Investigative Journalism: os dois principais fornecedores de oxigênio do México estão sendo acusados de espalhar medo, dúvida e desinformação a respeito dessas usinas locais para evitar que os hospitais as construíssem e, de quebra, manter seus lucros. O Grupo Infra e a Praxair Mexico – que juntos controlam 70% do mercado de oxigênio do país – alegaram falsamente que essas usinas poderiam vir a matar pacientes. Eles também enviaram cartas a hospitais com informações enganosas sobre usinas locais. Por conta disso, “alguns hospitais no México cancelaram os planos de construir essas fábricas, que são usadas com segurança em mais de 100 países. Pelo menos um hospital foi ameaçado com ações legais e penalidades financeiras por quebra de contrato por tentar fornecer oxigênio aos pacientes”.

SEM RESPOSTAS

Foram 90 dias de investigação, mas, ao final do processo, a inteligência dos Estados Unidos não conseguiu chegar a uma resposta sobre a origem do novo coronavírus. Como comentamos aqui, Joe Biden ordenou às agências de inteligência do país a elaboração de um relatório sobre o tema, intensificando o questionamento à China por não ter fornecido os dados brutos dos primeiros pacientes de covid-19 em Wuhan. 

O texto, entregue ao presidente dos EUA na última terça, deixou em aberto a principal pergunta motivadora da investigação: se a pandemia foi iniciada a partir de um acidente com vírus, que teria vazado de um laboratório na China, ou naturalmente, através da transmissão de animais para humanos. Os resultados ainda não foram divulgados, mas, segundo o New York Times, algumas das informações serão disponibilizadas ainda esta semana. 

Ontem, a China acusou os Estados Unidos de “politização” da investigação. Fu Cong, do Ministério das Relações Exteriores chinês, disse em coletiva que Washington quer fazer Pequim de “bode expiatório”. A China reforça que a entrega integral dos dados dos primeiros pacientes feriria a privacidade dessas pessoas. Além disso, os cientistas do país defendem que os esforços globais precisam priorizar os estudos sobre morcegos e sustentam que as investigações sobre a origem do vírus devem se concentrar nas hipóteses indicadas no relatório publicado em março pelos participantes da missão coordenada pela OMS em Wuhan, quando a ideia de vazamento biológico foi descartada. 

Outra parte dos cientistas que participaram da missão, no entanto, discorda. Também ontem, 11 deles publicaram artigo na Nature afirmando que o relatório de março deveria ser a primeira parte de um processo e que é preciso insistir nas investigações enquanto há tempo, porque a “janela de oportunidade para a condução dessa pesquisa crucial” estaria se fechando rapidamente. Segundo o grupo, qualquer atraso pode impossibilitar biologicamente a realização de alguns dos estudos necessários. 

FACHADA?

Todos os caminhos da CPI da covid parecem levar a Ricardo Barros. O depoimento de Roberto Pereira Ramos Júnior, diretor-presidente da FIB Bank, novamente colocou na mira das investigações o deputado e líder do governo Bolsonaro na Câmara. Segundo os senadores, há fortes indícios de que a empresa, fiadora da Precisa Medicamentos no contrato suspeito de fraudes e irregularidades para compra da vacina indiana Covaxin, teria um “sócio oculto”: o advogado Marcos Tolentino, amigo pessoal de Barros. 

Os senadores questionaram as credenciais da FIB Bank  – que, apesar do nome, não é um banco ou instituição financeira – para atuar como avalista da Precisa no contrato de R$ 1,6 bilhão firmado com o Ministério da Saúde para venda da Covaxin. O seguro de R$ 80 milhões, também suspeito de fraude, foi apresentado pela Precisa através de uma “carta-fiança” e seria acionado caso a intermediária não cumprisse a entrega das doses ao governo brasileiro. 

Em um depoimento desencontrado, o diretor-presidente afirmou que o capital declarado da FIB Bank – segundo ele, uma “empresa pequena” –, de R$ 7,5 bilhões, seria integralmente proveniente de dois imóveis de propriedade da companhia. De acordo com os senadores da oposição, no entanto, um dos imóveis seria fantasma e estaria registrado em um cartório de Curitiba que sequer existe. A conexão com Tolentino – e, a partir dele, com Ricardo Barros – foi estabelecida quando o depoente tentava explicar quem seriam os donos da FIB Bank. Segundo Roberto Junior, a companhia pertence a duas empresas, a Pico do Juazeiro e a MB Guassu. Acontece que o endereço e telefone da Guassu são os mesmos do escritório de Tolentino, que é oficialmente advogado e procurador da empresa.  

Na semana que vem, Tolentino, agora suspeito de ser o verdadeiro dono da FIB Bank, será ouvido pela CPI. Renan Calheiros (MDB-AL), relator da comissão, chegou a afirmar que o advogado costuma se apresentar como dono da empresa. 

Ainda ontem, o cerco da CPI a Barros se fechou um pouco mais. A comissão acionou o Supremo Tribunal Federal (STF)  e pediu o compartilhamento de informações referentes a todos os processos envolvendo o líder do governo. A ideia é descortinar os termos exatos de suas relações com a intermediária Precisa e sua sócia Global, que vêm desde a época em que Barros foi ministro da Saúde, ainda no governo Temer. 

JOGO RÁPIDO

Em tempo recorde, o Ministério Público Militar (MPM) concluiu pela absolvição do general da ativa e ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e também do tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, quanto à participação em atos políticos ao lado de Bolsonaro neste ano. Segundo o MPM, as ações não constituíram crimes militares. 

As denúncias, segundo contou a Folha, foram recebidas pela Ouvidoria do MPM e convertidas em notícias de fato, procedimento comumente adotado no Ministério Público. A responsabilidade por analisar acusações, investigar e denunciar oficiais-generais suspeitos de crimes militares é do procurador-geral de Justiça Militar, Antônio Pereira Duarte. No entanto, no caso de Pazuello e Baptista Júnior, o procedimento sequer se desdobrou em investigação, seguindo o caminho de vários outros do mesmo tipo envolvendo militares de alta patente, e sendo logo de cara arquivado. Segundo o jornal, nos últimos dois anos e meio, foram 65 os procedimentos que tiveram esse fim. Uma média de dois por mês.

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