África: onde o apartheid das vacinas é mais cruel

Num continente em que parcela ínfima da população está imunizada, há fábrica pronta para produzir doses em massa. Mas o oligopólio farmacẽutico ainda não se dispõe a fazê-lo. E mais: o Chile considera aplicar uma terceira dose

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MISTURAS E REFORÇOS

O governo chileno está avaliando estabelecer uma terceira dose de vacina contra a covid-19 para a sua população. Segundo a subsecretária de Saúde Pública, Paula Daza, para bater o martelo só falta o resultado de uma pesquisa que está sendo feita pela Universidade Católica do Chile, a ser divulgada em julho. “Acreditamos – não com os dados que temos, mas com os dados que a Universidade Católica provavelmente vai nos dar – que provavelmente as primeiras pessoas que foram vacinadas em fevereiro e tomaram a segunda dose em março podem exigir uma terceira dose em setembro“, afirmou ela.

Até agora, 63% dos chilenos tomaram uma dose, 50% estão totalmente vacinados e, esta semana, o país começa a vacinar adolescentes com mais de 12 anos. Mas, como temos visto por aqui, a situação continua crítica. Ainda no fim de março, diante dos casos que aumentavam rapidamente, o Ministério da Saúde anunciou o retorno de medidas restritivas para 13 milhões de pessoas, ou 70% da população. Elas foram se intensificando e, na semana passada, o nível mais estrito de isolamento começou a vigorar na região metropolitana de Santiago. 

A matéria da Folha diz que, embora a decisão final sobre a terceira dose ainda não tenha sido tomada, já foi lançada uma campanha para que as pessoas continuem se protegendo mesmo após a vacinação completa. O entendimento é o de que as novas variantes tornam o reforço necessário. Por ora, a ideia é que as pessoas que receberam a CoronaVac (que representa 77% das doses aplicadas) recebam a terceira dose do mesmo imunizante;  quem tomou a vacina de Oxford/AstraZeneca e tem menos de 60 anos receberia a da Pfizer. Essa mistura não é novidade no país, que, esta semana – por precaução, após um caso de trombose em um homem de 31 anos – passou a restringir a AstraZeneca aos maiores de 45 anos; os mais jovens que tomaram a primeira dose desse imunizante devem completar o regime com a vacina de mRNA. O mesmo tem sido feito em vários países europeus. 

E o Canadá recomendou que todas as pessoas que receberam a AstraZeneca tomem, de preferência, o imunizante da Pfizer ou da Moderna na segunda dose. Mas, nesse caso, não se trata de precaução contra eventos adversos, e sim de tentar melhorar a resposta imunológica: “Novas evidências [veja aqui e aqui, por exemplo] estão começando a surgir, sugerindo que as respostas imunológicas são melhores quando uma primeira dose da vacina AstraZeneca é seguida por uma vacina de mRNA como segunda dose”, disse em nota o Naci (o comitê canadense consultivo sobre imunização). Também segundo a Folha, pesou na decisão o fato de que, hoje, as vacinas de mRNA estão em maior disponibilidade naquele país.

No Brasil, onde a situação é a inversa, talvez fosse o caso de otimizar as vacinas da Pfizer utilizando-as como segunda dose, além de estudar as interações entre a CoronaVac e outros imunizantes. Mas isso parece estar fora de questão.

FABRICAÇÃO PRÓPRIA

O continente africano pode começar a produzir em breve suas próprias vacinas de mRNA contra a covid-19: um centro de transferência de tecnologia está sendo instalado na África do Sul, conforme anunciou a OMS ontem. Ele será composto pelas empresas sul-africanas Afrigen Biologics and Vaccines e Biovac, uma rede de universidades, e o Centro Africano para Controle de Doenças. 

Mas, para o esquema funcionar logo, será preciso contar com a boa vontade das farmacêuticas que produzem esses imunizantes hoje – Pfizer e Moderna. As instalações para a fabricação já existem: “Já há uma planta piloto, então tudo que precisaríamos é colocar alguns equipamentos, treinar a força de trabalho neste novo processo e ter todas as matérias-primas e outras coisas necessárias para isso”, informou a cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan.

Caso uma das duas farmacêuticas decida se apresentar, as vacinas podem começar a ser produzidas dentro de 9 a 12 meses. Ainda soa como muito tempo, mas, infelizmente, nada indica que até lá a situação estará resolvida. Como disse o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, “simplesmente não podemos continuar a contar com vacinas que são feitas fora da África, porque elas nunca chegam”.

Se nenhuma das empresas aceitar apoiar o novo centro, a história vai ser mais complicada. Nesse caso, a OMS considera tratar com empresas de biotecnologia menores, que ainda não têm seus imunizantes aprovados. E aí ainda seria preciso realizar os testes clínicos, o que vai atrasar todo o processo.

A transferência de tecnologia resolve uma parte do problema da disponibilidade e do acesso às vacinas. Falta outra: a suspensão das patentes, uma questão que, como ressalta este texto publicado recentemente no Outra Saúde, já estava posta em abril, quando a OMS decidiu apoiar a construção desse tipo de hub em países de média e baixa renda: “É essencial que a tecnologia usada esteja livre de impedimentos relacionados à propriedade intelectual nesses países ou que tais direitos sejam disponibilizados”, dizia a entidade, na época. 

Em tempo: começou ontem (e vai até sexta-feira) o Fórum Mundial de Produção Local, um evento da OMS com a participação de governos, agências e setor privado que vai discutir mecanismos para a produção local de medicamentos e outras tecnologias de saúde. 

MAIS UMA CUBANA

O Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia de Cuba anunciou ontem que a vacina Abdala alcançou 92,3% de eficácia nos testes clínicos, em seu esquema de três doses. A notícia vem apenas dois dias depois de os desenvolvedores da Soberana, outra vacina feita no país, divulgarem 62% de eficácia com duas de suas três doses previstas. Ambos são resultados extremamente animadores, mas ainda não encontramos nenhuma informação além dos informes no Twitter. 

ESCÂNDALO NO AR

O governo comprou a vacina indiana Covaxin por um preço 1.000% maior do que, seis meses antes, era anunciado pela fabricante Bharat Biotech. A informação está em um telegrama sigiloso da embaixada brasileira em Nova Délhi datado de agosto do ano passado. Segundo o Estadão, que teve acesso ao documento, o preço do imunizante foi estimado em 100 rúpias (US$ 1,34 a dose). Em dezembro, outro comunicado diplomático afirmou que o produto “custaria menos do que uma garrafa de água”. 

Só que não: em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde pagou US$ 15 por unidade – o que transformou a Covaxin na mais cara das seis vacinas compradas até agora. Ao contrário de outras negociações, esta não foi feita diretamente entre ministério e fabricante, mas com intermediação da Precisa Medicamentos. 

Os documentos colocam mais lenha na fogueira, num momento em que o foco da CPI passou a ser as empresas beneficiadas pela atuação do governo Bolsonaro. Como destacamos ontem, chegou ao conhecimento dos senadores o depoimento de um servidor do Ministério da Saúde que acusa o tenente-coronel Alex Lial Marinho de fazer muita pressão pela Covaxin – inclusive na Anvisa pela autorização da vacina. 

Tem mais: esse mesmo servidor estava no grupo de técnicos ouvidos em 2018 em outra apuração que envolvia a Global Gestão em Saúde, que é sócia da Precisa Medicamentos. Na época, o ministério pagou antecipadamente por medicamentos que não recebeu. O resultado foram estoques zerados, o que causou a morte de pelo menos 14 portadores de doenças raras. Segundo a PGR, esses repasses foram “absolutamente fora do comum”. O órgão moveu uma ação de improbidade administrativa contra a Global e contra o ministro na época, Ricardo Barros (PP-PR), atual líder do governo Bolsonaro na Câmara.

Amanhã, a CPI ouve Francisco Emerson Maximiano, presidente da Global. A comissão já pediu a quebra dos sigilos do empresário. E pretende pedir a quebra de sigilo fiscal, bancário, telefônico e telemático do tenente-coronel Alex Lial Marinho também

QUEM VAI, QUEM NÃO VAI

A CPI ouve hoje o deputado Osmar Terra (MDB-RS). Ele fala na condição de convidado, e o foco das perguntas deverá ser a existência do “gabinete paralelo”. Em um reunião realizada em setembro do ano passado com a presença de Jair Bolsonaro, o parlamentar foi apresentado como “padrinho” de um grupo de médicos que apoiavam o uso de remédios sem eficácia contra a covid-19. 

Falando neles, a Isto É publicou ontem um vídeo com trecho de uma entrevista em que o empresário Carlos Wizard promete “forrar o Brasil” com cloroquina. Teria recebido de Eduardo Pazuello a “missão” de acompanhar contratos públicos para a compra de medicamentos, mesmo sem cargo. 

Wizard está voltando ao Brasil, e deve se apresentar para depor no próximo dia 30. O bilionário que não compareceu ao primeiro depoimento da CPI mudou de ideia depois que Omar Aziz afirmou que iria pedir ajuda à Interpol para localizá-lo.

Em tempo: a ministra Rosa Weber suspendeu as convocações dos governadores para a CPI da Covid. A decisão deverá ser examinada pelo plenário do STF quinta ou sexta-feira. Na decisão, ela argumenta que a competência para julgar o uso que esses gestores fazem das verbas repassadas pela União cabe ao TCU e não ao Congresso. A liminar foi dada em resposta a uma ação movida por 19 governadores para evitar o comparecimento obrigatório à comissão.

ODE ÀS CTs

O Ministério da Cidadania segue avançando para ocupar o espaço que um dia já foi da Saúde no campo das drogas. A guinada começou quando Osmar Terra comandava a pasta, mas continua com João Roma. Em 2020, o ministério criou o Fórum Permanente de Mobilização Contra as Drogas, pautado pelo proibicionismo total. Ontem, a segunda edição do fórum aconteceu presencialmente em um auditório fechado e visivelmente sem distanciamento social. Foi lançado um projeto-piloto de “prevenção e recuperação” de usuários de drogas e álcool, em parceria com o município de Sorocaba. 

“O projeto começa em Sorocaba e depois será levado aos demais municípios da nossa região metropolitana, sendo estendido em seguida a outras cidades do estado e do país”, disse o prefeito Rodrigo Manga (Republicanos). Uma das ações previstas é a ampliação de vagas de internação de usuários de drogas. Outra é a “capacitação” de profissionais das comunidades terapêuticas, onde certamente as vagas serão abertas. 

“Faço questão de destacar o valoroso papel das comunidades terapêuticas, fator central na recuperação dos dependentes químicos e no suporte às pessoas acolhidas e seus familiares. São 69 unidades apenas no estado de São Paulo e quase 500 no Brasil inteiro. Precisamos levar às crianças, às escolas e aos nossos jovens a mensagem da saúde”, afirmou Roma ontem. 

Por trás do plano está a Secretaria de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred), tocada pelo psiquiatra Quirino Cordeiro – que está aboletado no governo federal desde Michel Temer. Na semana passada, ele promoveu um evento (virtual, pelo menos) para debater a “Espiritualidade como um Fator de Proteção para o Uso de Drogas”. Mais uma vez, as comunidades terapêuticas foram exaltadas

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