Covid: como evitar a perigosa transmissão por aerossóis

Novo estudo frisa: em lugares fechados, corona e outros vírus circulam e infectam mesmo a distância. Trabalho sugere preferir ambientes ao ar livre e fazer adaptações como ventilação, filtragem do ar e esterilização com ultra-violeta

 

UM GUIA E TANTO

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É quase setembro de 2021, ano dois da pandemia. Mas até hoje o grosso dos protocolos de prevenção contra a covid-19 no Brasil continua muito focado em banho de álcool em gel, aferição de temperatura, barreiras acrílicas e desinfecção das superfícies (para a cada vez menor parcela da população que tem condições para isso, ainda resta o famoso "fique em casa"). Há também a obrigatoriedade do uso de máscaras, que sem dúvidas importa muito – porém, é aceito um amplo espectro delas, incluindo até mesmo as finíssimas, frouxas e que deixam o nariz escapar a todo instante. Para se ter uma ideia, a página do Ministério da Saúde sobre formas de proteção, atualizada em abril, preconiza o uso de máscaras de alto padrão de filtragem (como as PFF2) apenas para os profissionais de saúde que lidam diretamente com pacientes com covid-19. Mesmo assim, é apenas uma recomendação.

Quando se sabe que o coronavírus se transmite pelo ar, por aerossóis, e que o contágio começa antes de os primeiros sintomas aparecerem, essas regras se mostram frágeis demais. Só que esse entendimento demorou muito a ser aceito até mesmo pela OMS, e ainda não foi incorporado por uma parte enorme da população e dos gestores. E não só no Brasil. Por isso é importante demais o longo artigo que saiu na edição de hoje da Science, possivelmente o mais completo até agora sobre o assunto.

Para lembrar: a transmissão pelo ar significa que o vírus se espalha em partículas muito menores do que as gotículas que saem da boca e do nariz quando tossimos ou espirramos, e que essas partículas são tão leves que podem ficar suspensas por um longo período de tempo. Então, em um ambiente em que o ar não seja renovado, nem faz muita diferença estar perto ou longe da outra pessoa: o vírus vai alcançar longas distâncias, porque, ao contrário das gotículas, não cai logo no chão. Até mesmo depois que todas as pessoas saem desse tipo de ambiente, os vírus continuam lá. É assim que se comportam o bacilo da tuberculose e o vírus do sarampo, por exemplo.

O texto traz uma extensa revisão das pesquisas mais recentes sobre a transmissão pelo ar de vários patógenos.  No caso do novo coronavírus, eles sustentam que a transmissão por gotículas e superfícies nunca poderia explicar os numerosos eventos de superespalhamento e as diferenças no contágio em ambientes internos e externos (praticamente não há registro de surtos iniciados com infecções ao ar livre). Os autores indicam que esta não é apenas uma via importante de transmissão do SARS-CoV-2 – deve ser a principal via. E sugerem que a transmissão por aerossol deva ser reavaliada para todas as doenças infecciosas respiratórias.

Há pelo menos uma razão prática para se evitar esse entendimento: é mais fácil implementar totens de álcool em gel do que fazer ajustes na arquitetura para melhorar a ventilação. Mas os autores concluem que, para mitigar a pandemia atual e prevenir novos surtos, autoridades precisam realmente pensar na implementação de uma série de medidas adicionais, com especial atenção a ventilação, filtração de ar, sistemas de radiação UV para inativação de vírus e, é claro, máscaras boas e bem ajustadas. Não são medidas necessariamente caras – especialmente quando comparadas aos custos das próprias doenças –, e são duradouras: "Levarão a melhorias há muito esperadas, cujos benefícios para a saúde que vão muito além da pandemia covid-19", defende o texto.

IMUNIDADE VIA INFECÇÃO

Em reportagem repleta de necessárias advertências, a jornalista da Science Meredith Wadman explica os resultados de um estudo que pode ser perigoso em mãos erradas – mas que traz informações relevantes. É um preprint (ainda não publicado em periódico nem revisado por pares), que  compara a proteção da vacina contra a covid-19 com a imunidade natural, conferida por infecção prévia, em Israel. Resultado: a proteção natural foi mais duradoura e mais forte. Infecção prévia seguida de uma dose de vacina foi ainda melhor. Vale observar que o país só usou o imunizante da Pfizer/BioNTech, então é dele que a pesquisa trata.

Embora nossos leitores certamente já saibam disso, não custa reforçar que seria uma insensatez apostar em imunidade coletiva via infecção ou em sugerir que as pessoas buscassem se contaminar – individualmente, há risco de doença grave, sequelas e óbito; coletivamente, colapso sanitário e morte em massa.

Já mencionamos aqui estudos que faziam comparações do tipo considerando a produção de anticorpos e células de defesa. Mas este examinou os registros médicos de dezenas de milhares de pessoas entre junho e agosto, já com a Delta predominando no país.

Uma primeira análise comparou cerca de 16 mil pessoas vacinadas e outras 16 mil não-vacinadas, mas previamente infectadas. Viram que os vacinados tiveram de seis a 13 vezes mais chance de se infectar. Em relação à covid-19 sintomática, o risco foi 27 vezes maior. Também houve mais hospitalizações entre os vacinados, mas o número total foi pequeno demais: uma hospitalização após reinfecção, contra oito no grupo vacinado. Ninguém morreu em nenhum dos grupos, o que impede qualquer avaliação nesse sentido. Outra análise examinou os dados de 14 mil pessoas que já tinham sido infectadas e tomaram uma dose da vacina, e um número igual de previamente infectados não-vacinados. Nesse caso, quem ainda não tinha se vacinado teve uma probabilidade de se reinfectar duas vezes maior.

"Continuamos a subestimar a importância da imunidade natural à infecção, especialmente quando [a infecção] é recente. E quando você reforça isso com uma dose de vacina, você a leva a níveis que não podem ser comparados com nenhuma vacina existente até o momento", diz Eric Topol, médico-cientista do Scripps Research. Ele e outros especialistas apontam, porém, limitações do estudo. A principal é que os resultados vêm dos testes realizados voluntariamente pelas pessoas no passado, em vez de ter sido um estudo prospectivo, em que as pessoas envolvidas fossem testadas regularmente como parte da pesquisa. Pode haver um fator de confusão, por exemplo, caso os previamente infectados tenham menor propensão a se testar.

De todo modo, esse tipo de pesquisa pode ser importante até para a otimização das doses de vacina e proteção de uma maior parcela da população em menor tempo: quando se orienta que pessoas com infecção prévia recente tomem inicialmente apenas uma dose, é possível alcançar mais gente, e mais rápido, com as doses restantes. Aliás, essa foi a recomendação dos governos de Israel, França e Alemanha.

DISPUTA INDEVIDA

Saiu ontem a nota técnica do Ministério da Saúde sobre a aplicação da terceira dose de vacina contra a covid-19 no Brasil. Como esperado, a pasta orienta que o imunizante utilizado seja a da Pfizer/BioNTech, ou, de maneira alternativa, de vetor viral (Oxford/AstraZeneca ou Janssen). Só que o governo de São Paulo já tinha adiantado que ofereceria "qualquer tipo de vacina" disponível, incluindo a CoronaVac.

O secretário de Saúde do estado, Jean Gorinchteyn, disse ontem que a decisão do Ministério de excluir a CoronaVac nesse caso é "abominável". Antes, o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, afirmara se tratar de mais um ataque do governo federal: "Não há fato científico que sustente a decisão do ministro Queiroga. É mais uma vez a preferência por atacar a Coronavac”. À colunista da Folha Monica Bergamo, epidemiologistas disseram que o impasse pode gerar não apenas confusão como judicialiação.

A nota técnica cita um estudo indicando que uma terceira dose de CoronaVac promove amplificação da resposta imune. Mas menciona também outro, em modelo animal, que avaliou uma dose adicional tanto da CoronaVac como de outras marcas/tecnologias, e verificou maior resposta com as novas doses de mRNA ou vetor viral.

Faz pouco tempo que alguns países começaram a aplicar terceiras doses, de modo que os dados populacionais sobre isso ainda são incipientes. O documento do Ministério leva em conta o que já foi publicado a esse respeito, e sempre podem surgir novas evidências apoiando caminhos diferentes. Porém, as pesquisas que já indicam uma perda de efetividade da CoronaVac em idosos não devem ser ignoradas quando se pensa uma medida que deve proteger justamente essa parte da população (ontem saiu mais uma, ainda não revisada por pares, que compara o desempenho dos imunizantes usados no Bahrein). Além disso, em regimes de duas doses, um bom punhado de estudos tem demonstrado os benefícios da combinação de marcas diferentes.

Ninguém desconhece os ataques políticos de Bolsonaro à CoronaVac, mas o governo de São Paulo está contra-atacando do jeito errado.

AQUI NO BRASIL

A Pfizer e a BioNTech anunciaram ontem cedo uma carta de intenção com a Eurofarma para produzir sua vacina no Brasil. Segundo as empresas, a produção deve começar em 2022, com capacidade anual de mais de 100 milhões de doses; todas serão distribuídas na América Latina.

UM CURIOSO VOLUNTÁRIO 

Os senadores que integram a CPI da Covid acreditam ter encontrado mais uma peça-chave das negociatas de medicamentos e vacinas que, aparentemente, eram a principal atividade do ministério da Saúde no pior momento da pandemia no Brasil até agora. José Ricardo Santana, o personagem da vez, conseguiu se destacar em um time pra lá de inusual, que conta com empresas-fantasma, PMs vendedores de vacinas e reverendos atravessadores, entre outras figuras.

Santana, que depôs ontem à comissão, é ex-funcionário do primeiro escalão da Anvisa e estava presente no jantar em que Roberto Dias, seu amigo e ex-diretor de Logística do ministério, teria pedido propina para avançar com a negociação de vacinas. Seu nome foi citado à CPI pelo próprio Dias. Ele disse que, na ocasião, não presenciou qualquer pedido de vantagem indevida e que, apesar de não se lembrar do conteúdo da conversa, falava-se de “amenidades”. Ainda segundo ele, naquela noite sua intenção era apenas se encontrar com Dias, quando apareceram mais duas pessoas que – coincidência! – eram supostos vendedores de vacinas.

O clima esquentou quando o depoente tentou explicar - depois de se negar a responder a maioria das perguntas dos senadores – qual era o caráter de sua atuação no ministério. Santana relatou à comissão ter pedido demissão do cargo de secretário-executivo da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos da Anvisa para ir trabalhar de graça no ministério, a convite de Dias. Mesmo sem cargo (e sem salário), conduzia negociações com fabricantes de respiradores pulmonares e exercia outras atividades como “homem de confiança” do ex-diretor de logística. Segundo revelou o Estadão com informações da agência Fiquem Sabendo, ele esteve pelo menos 25 vezes no ministério entre 2020 até este ano. Em todas elas, foi visitar o departamento então chefiado por Dias.

Para os senadores, ficou explícito que Santana deixou o cargo público para atuar como lobista de empresas junto ao Ministério, ao qual tinha acesso facilitado. Entre elas, estaria a Precisa Medicamentos, que acumula denúncias de irregularidades em contratos com a Pasta - a mais grave envolvendo a negociação da vacina indiana Covaxin. Registros da portaria mostram que ele frequentou o ministério enquanto dialogava com empresários interessados na venda de testes rápidos da Precisa ao governo, e também em março de 2021, quando o governo negociava compra da Covaxin.

Ao final da sessão, o depoente passou de testemunha a investigado pela CPI.

DISCRETAMENTE

Foi em janeiro deste ano que, motivado pela competição com o governador de São Paulo, João Dória, pelo pontapé inicial da vacinação no Brasil, o governo Bolsonaro se afobou e fez um papelão que desperdiçou muito dinheiro público e trouxe um total de zero vacinas ao país. Para supostamente buscar 2 milhões de doses de imunizantes da Oxford/Astrazeneca na Índia, o ministério da Saúde - à época sob o comando de Pazuello - fretou um voo comercial da empresa Azul e, ao mesmo tempo, ordenou à Fiocruz que providenciasse a estrutura para a busca das vacinas.

Faltou combinar com os indianos: as vacinas não estavam disponíveis na data esperada pelo governo e as duas tentativas foram em vão. O que sobrou foi, de um lado US$ 500 mil de prejuízo à Fiocruz, que havia fretado um voo para Mumbai, e, de outro, um avião adesivado pelo Ministério que decolou pomposamente de São Paulo prometendo buscar vacinas na Índia, mas parou em Recife.

A sucessão de erros e atropelos motivou, segundo a Folha, que o Itamaty fizesse uma terceira tentativa por conta própria, mantendo a Saúde propositalmente alheia de toda negociação até que tudo estivesse fechado. Segundo o jornal, que revelou agora o caso, o Itamaraty negociou secretamente com o governo indiano e conseguiu transportar as 2 milhões de doses por US$ 55 mil, cerca de 10% do valor investido pela Fiocruz para fazer o mesmo. Pazuello só soube do voo quando as vacinas já estavam no aeroporto de Mumbai.

 

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