Korsch: provocações sobre marxismo e filosofia

Pensador alemão, cuja obra emblemática completa 100 anos, propunha: o processo revolucionário exige luta econômica… e espiritual. É preciso superar a filosofia burguesa, mas sem abandoná-la na formulação de uma crítica radical

Ilustração: C R Sasikumar
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A afirmação de que as relações entre o marxismo e a filosofia levantam um problema teórico e prática da mais alta importância não encontrou, até muito recentemente, mais do que uma limitada compreensão entre os intelectuais, burgueses ou marxistas.
Karl Korsch, Marxismo e Filosofia, 1923.

A virada do século XIX para o século XX revela um ponto de inflexão no interior das mais diversas organizações de trabalhadores que reivindicam a teoria marxista, bem como pelos intelectuais e militantes que buscavam interpretá-la e desenvolvê-la. Virada essa, que desandou para a retomada da intensificação dos conflitos sociais em diversos países, culminando na vitória da Revolução Russa, mas no fracasso da Revolução Alemã.

Como componente do movimento operário, a sua expressão teórica, o marxismo passou por uma disputa ferrenha sobre as suas bases políticas e teóricas. Questões como a forma de organização correta para o proletariado, a abolição ou tomada do Estado, a interpretação dos textos de Marx e seus usos em tempos outros, são exemplos do que estava sendo disputado nas querelas entre diversos marxistas.

No contexto dessas disputas, uma se destaca notavelmente: a questão de como o marxismo deveria interagir com outras formas de conhecimento, notadamente aquelas que Marx caracterizou como ideologias, ou seja, como expressões de falsa consciência. Nesse cenário, ganha destaque a relação entre o marxismo, como teoria da revolução, e a filosofia, um campo de conhecimento com raízes milenares que adquire uma configuração particular na sociedade burguesa. Curiosamente, neste ano de 2023, celebramos o centenário de uma das respostas mais impactantes e influentes tanto na história do marxismo quanto na história da filosofia ocidental. Essa resposta foi oferecida por Karl Korsch em sua obra Marxismo e Filosofia, publicada em 1923. Como uma efeméride, apresentamos a discussão korschiana ao leitor e leitora.

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Após a morte de Marx e a consolidação da interpretação dominante do marxismo pela II Internacional, a presença da filosofia nas discussões teóricas das organizações do movimento operário praticamente se esvaiu. Dava-se como certo a “morte” da filosofia; ou melhor, sua inutilidade para questões práticas e tarefas na dinâmica dos conflitos entre trabalho e capital. Já entre os filósofos e intelectuais burgueses, o marxismo se apresentava tão somente como uma das tantas abordagens, sem muita importância ou pouco mencionada nos livros da história das ideias, após a dissolução da escola hegeliana (neohegelianos).

Logo, a relação entre marxismo e filosofia, tanto pelos marxistas quanto pelos intelectuais burgueses era negligenciada ou simplesmente esquecida. Korsch, ao contrário, na senda de outros autores que também buscaram reabilitar a dimensão teórico-prática do marxismo, resgatou esta relação de maneira inovadora e fundamental para o desenvolvimento da teoria marxista. Que justificativa tem nosso autor para tal empreitada? Para ele, não se trata de uma discussão escolástica ou mobilizada por curiosidades apartadas dos conflitos sociais de sua época.

Para Korsch, o estudo sistemático da relação entre marxismo e filosofia dilucida uma outra questão fundamental para época que estava na ordem do dia após os desdobramentos da Revolução Russa de 1917. Trata-se da relação entre teoria e práxis política revolucionária, na qual o exame da relação entre marxismo e filosofia busca dar inteligibilidade.

Para compreender essa relação, é necessário, antes, assimilar o contexto atual do problema, ou seja, a maneira como até então tanto marxistas ortodoxos quanto os filósofos abordaram a questão e as consequências desse tratamento. O que havia em comum, nessas duas maneiras de tratar a relação, era a compreensão mútua de que o marxismo não possuía um conteúdo filosófico próprio.

Tal inexistência de conteúdo filosófico, para os filósofos, significava um sintoma negativo em desfavor ao marxismo. Já para os marxistas ortodoxos, essa inexistência significava um argumento favorável, ou seja, a ausência de conteúdo filosófico no marxismo era benéfica. Derivado dessa última, surgiu outra subtendência, que tinha a pretensão de completar a teoria marxista a partir de diversas reflexões filosóficas extraídas de Kant, Mach e outros. Korsch argumenta que, ao reconhecer a necessidade de um complemento filosófico para o marxismo, fica evidente que este último, em sua essência, não possui um conteúdo filosófico próprio. Isso implica que os marxistas ortodoxos e os adeptos dessa tendência estão, de certa forma, em sintonia, embora persigam diferentes abordagens e objetivos.

Por motivos distintos, a confluência da interpretação negativa da relação entre marxismo e filosofia se ligava a uma compreensão limitada e incompleta das determinações históricas e teóricas daquele momento. Korsch cita diversas dessas determinações, mas a mais importante para o objetivo do nosso texto é, evidentemente, a conexão, que fora ofuscada ou suprimida, da teoria hegeliana tanto com a filosofia burguesa quanto com a teoria marxista. Korsch coloca que, na segunda metade do século XIX, os intelectuais burgueses, à medida que abandonavam a filosofia de Hegel, também perdiam gradualmente a perspectiva “dialética” que vinculava a filosofia ao mundo real, à teoria e à prática. Este princípio, que outrora havia sido o elemento vital da filosofia e da ciência na era de Hegel, caiu na obscuridade. Paralelamente, nesse mesmo período, os marxistas também começaram a negligenciar cada vez mais o significado desse princípio. Nos anos 1840, os jovens hegelianos Marx e Engels, ao se afastarem de Hegel, tinham a intenção consciente de “salvar” esse princípio, transferindo-o da filosofia alemã para uma concepção materialista da natureza e da história.

Com base nessa constatação, Korsch empreende uma investigação aprofundada das determinações subjacentes ao fenômeno do “esquecimento” de Hegel por parte dos pensadores de sua época.

Iniciando sua incursão pelos filósofos e intelectuais burgueses, o nosso autor percebe uma deficiência simultaneamente metodológica e ideológica na maneira como a filosofia burguesa e, em particular, na história burguesa da filosofia, é desenvolvida pelos seus representantes. Isso decorre dos limites intransponíveis que a burguesia enfrenta ao tentar elucidar suas próprias contradições.

A historiografia das ideias de lastro burguês, após a sua desvinculação da filosofia de Hegel, não percebia mais o vínculo entre pensamento e realidade concreta, isto é, a práxis social. Nesse sentido, para os pensadores que expressam os interesses e valores burgueses, à medida que essa classe deixa de ser revolucionária em sua práxis social, perde também a sua capacidade de pensar a relação dialética entre as transformações da realidade e das ideias – em particular, a relação entre filosofia e revolução, que Hegel havia verificado como bem desenvolvida e explicitada por Marcuse em sua obra, Razão e Revolução. Trata-se de um flagrante retrocesso por parte dos representantes intelectuais da burguesia, frente às teorias dos representantes do Idealismo Alemão que procuravam, ao seu modo, a conexão entre filosofia e transformação social.

Daí que o declínio do movimento revolucionário burguês, à medida que se tornava classe dominante e, portanto, sem tarefas revolucionárias a desempenhar, teria que encontrar sua expressão ideológica no declínio do movimento filosófico e na sua incapacidade de compreender as transformações (tanto dentro do campo filosófico, quanto no campo das lutas reais concretas). Resultado desse processo é que os representantes intelectuais da burguesia são incapazes de compreender a dinâmica da passagem do idealismo alemão para a dialética materialista, à luz das transformações do capitalismo.

Nesse momento, Korsch adentra na primeira relação entre marxismo e filosofia, após evidenciar os limites intransponíveis que a filosofia burguesa se esbarra ao analisar tal conexão. Localiza, no movimento histórico da transição entre o idealismo alemão e a concepção materialista da história, o cerne para entender a conexão entre marxismo e filosofia.

Assim, pode-se não apenas compreender as relações que subsistem entre a filosofia idealista alemã e o marxismo, mas também discernir a necessidade intrínseca dessas relações. É possível perceber que o sistema marxista, como uma expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, deve estabelecer, no plano ideológico, uma relação análoga àquela que o movimento revolucionário do proletariado mantém, no âmbito da práxis social e política, com o movimento revolucionário burguês. Ambos surgem a partir do mesmo processo de desenvolvimento histórico. Por um lado, surge o movimento proletário “independente” a partir do movimento revolucionário do terceiro estado, e, por outro lado, emerge a nova teoria materialista do marxismo em oposição à filosofia idealista burguesa, também de forma “independente”. Todos esses fenômenos interagem mutuamente.

Logo, de acordo com o nosso autor, em termos “hegeliano-marxistas”, o surgimento da teoria marxista é unicamente o “outro momento” do surgimento do movimento revolucionário do proletariado. Tais momentos, em seu conjunto, constituem a totalidade concreta do desenvolvimento histórico. Korsch, por esse ângulo, concebe a transição entre idealismo alemão e a dialética materialista em quatro momentos: (1) surgimento do movimento revolucionário da burguesia; (2) a sua respectiva expressão filosófica, à luz da teoria idealista de Kant e Hegel; (3) o surgimento do movimento revolucionário do proletariado no bojo do capitalismo; (4) e, por fim, a constituição da dialética materialista do marxismo, sua expressão teórica.

Dessa discussão, Korsch desenha uma definição: o marxismo é expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. Para tanto, o autor se inspirou na passagem do Manifesto Comunista em que Marx e Engels afirmaram que o marxismo é “[…] a expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos”. Por sua vez, Marx se inspira na fórmula de Hegel onde este atesta o vínculo entre filosofia e a realidade, sendo o primeiro “a sua época apreendida pelo pensamento”. É nítido, nesses trechos, uma certa confluência.

Confluência esta que nos leva novamente à questão da relação dialética entre teoria e realidade, a qual os representantes intelectuais burgueses esqueceram. Isso explica a incompreensão ou a ignorância da dialética marxista por parte desses mesmos representantes. Agora podemos compreender por que a história da filosofia burguesa se viu compelida a negligenciar a filosofia materialista do proletariado revolucionário, que emergiu dos sistemas altamente desenvolvidos da filosofia idealista da burguesia revolucionária. A história burguesa da filosofia optou por ignorar essa filosofia materialista, ou a interpretou de maneira distorcida e negativa. Da mesma forma que os objetivos fundamentais do movimento operário não podem ser concretizados dentro dos limites da sociedade burguesa e do seu sistema estatal, a filosofia intrínseca a essa sociedade também é incapaz de compreender a natureza das concepções gerais nas quais o movimento revolucionário proletário se expressa de maneira consciente e autônoma.

Para o marxismo (ou o “socialismo científico”) se tornar um objeto de conhecimento possível, a história da filosofia necessita superar suas limitações derivadas de sua perspectiva de classe burguesa. No entanto, se esse limite é superado, o conteúdo filosófico novo do marxismo é, enquanto objeto filosófico, simultaneamente superado (aufgehoben) e destruído. Logo, desprovido de lastro filosófico. Como veremos a seguir, a chave para compreender a relação entre marxismo e filosofia, em Korsch, está no conceito de Aufheben.

Munidos desses elementos contextuais e preliminares, já podemos lançar a pergunta: se o marxismo possui uma conexão com o idealismo alemão, ele pode ser considerado então como filosofia?

Para Korsch, o reconhecimento da conexão umbilical entre o materialismo histórico e o idealismo alemão não coloca este primeiro como uma filosofia. Esse processo fica claro especialmente no livro A Ideologia Alemã, no qual Marx e Engels deixam evidente que não buscavam edificar uma nova filosofia; pelo contrário, buscam superar e suprimir não apenas a filosofia hegeliana, mas a filosofia em geral. Aqui, Korsch resgata as contribuições de Engels sobre esse processo, especialmente no livro Anti-Duhring. Neste último, é evidenciado que o conteúdo da nova concepção materialista da história está atrelado a novas concepções que, em uma determinada fase do desenvolvimento histórico, surgem necessariamente no proletariado. Isso ocorre em razão, sobretudo, de sua situação concreta material. Já em relação à sua forma noosférica (científico-teórica), o materialismo histórico se constituiu sob as bases do idealismo alemão, especialmente do sistema hegeliano. Reconhecer essa origem filosófica puramente formal não implica, no entanto, afirmar que o marxismo, em seu atual estágio de autonomia e desenvolvimento, ainda seja uma filosofia. Para abordar a questão das relações entre marxismo e filosofia, é absolutamente essencial partir das declarações de Marx e Engels, nas quais eles afirmam de forma inequívoca que a superação (Aufhebung) não apenas da filosofia idealista burguesa, mas também da filosofia em seu conjunto, é uma consequência necessária de sua nova perspectiva materialista dialética.

Novamente, nesse contexto, estamos diante do problema da supressão e superação da filosofia executada pelo marxismo. Para Korsch, tal supressão não pode ser encarada como uma simples alteração terminológica ou uma querela verbal, substituindo a palavra “filosofia” por “materialismo histórico”. Logo, para entendermos o que significa tal supressão, algumas perguntas basilares são apresentadas:

  • Como esta supressão deve se processar ou já se processou? À luz de quais ações? Com que rapidez? Para quem?
  • A supressão da filosofia é feita como uno actu, destruída de uma só vez? É executada por um “ato cerebral” de Marx e de Engels ou pelos marxistas? Por todo o proletariado? Por toda humanidade?
  • Tal supressão deve ser vista como um processo histórico revolucionário longo, desenvolvendo-se em diversas fases?
  • Caso afirmativo para a última questão, qual a relação do marxismo com a filosofia enquanto este demorado processo não alcançar seu objetivo final, a supressão da filosofia?

Apesar de anunciar tais questões, Korsch não as responde totalmente. Sua pretensão é demonstrar como a quase ausência de discussões sobre essas questões, especialmente no marxismo ortodoxo explicita uma lacuna importante que contribui para a debilidade teórica das organizações operárias. Essa situação, da relação entre marxismo e filosofia e a sua supressão, é análoga àquela existente entre o marxismo e o Estado e a necessidade igualmente de sua supressão. Korsch, aqui, demonstra que o mesmo relapso entre a relação entre marxismo e filosofia se deu também com a relação marxismo e Estado, especialmente entre os marxistas da II Internacional. Tal relapso não é fortuito. A não discussão dessas questões ou o seu escanteio por colocarem que suas soluções são indiferentes a luta de classes, evidencia, entre outras consequências, o aprofundamento do reformismo e a não compreensão do caráter revolucionário da dialética materialista.

Voltando à questão da superação do ponto de vista filosófico, Korsch enumera três argumentos em seu favor:

  1. O ponto de vista teórico em que Marx se coloca, com o seu novo materialismo histórico-dialético, está em oposição não apenas parcialmente às consequências, mas em antagonismo geral aos princípios basilares de toda filosofia alemã – cuja obra de Hegel é a grande representante.
  2. Tal antagonismo não é somente um antagonismo à filosofia (“o complemento ideal do mundo existente” Hegel), e sim um verdadeiro antagonismo à totalidade deste mundo, em toda a sua concreticidade.
  3. Finalmente, e a argumentação é decisiva, esse antagonismo não é puramente teórico; é simultaneamente “prático e ativo”. Aqui encontra eco a 11ª tese sobre Feuerbach: “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”.

A superação da filosofia, no entanto, não significa que o marxismo não conserva ainda um caráter filosófico. Como colocamos acima, ele ainda está atrelado, ao menos formalmente, a mediações conceituais oriundas da filosofia – em que pese suas ressignificações no interior de um outro modo de pensar. Além disso, a sua superação não pode significar o seu simples abandono do ponto de vista da necessidade da crítica, afinal, para uma concepção dialética e materialista do processo histórico, seria inviável afirmar que a ideologia filosófica, ou até mesmo a ideologia em sua totalidade, deixasse de ser um componente efetivo da realidade histórico-social. Pelo contrário, essas ideologias devem ser compreendidas em sua realidade e, simultaneamente, devem ser transformadas em sua realidade por intermédio de uma práxis materialista.

É nesse contexto que a partir de uma nova interpretação tanto da XI tese sobre Feuerbach, quanto ao lema colocado por Marx no final da Introdução à Crítica do Direito de Hegel (“Não podeis superar a filosofia sem a realizá-la”), que Korsch reabilita a crítica filosófica como um dos momentos decisivos da luta de classes.

Por esse ângulo, trata-se de ampliar as trincheiras contra a exploração e dominação capitalista por meio de uma luta cultural intensa que envolve, segundo as palavras de Korsch, também uma tarefa espiritual (ou “ação espiritual”, em outra tradução), luta de classes na produção do saber. Logo, a luta cultural (contra a filosofia e a ciência burguesa) se impõe como uma necessidade no interior da luta de classes, em que pese grande parte dos epígonos de Marx terem negligenciado essa questão, colocando a consciência como um mero epifenômeno do mundo. Logo, “luta espiritual” deve ser feita ao lado e simultaneamente à luta econômica, política, etc.

Korsch, nesse momento, junta-se a outros dois intelectuais marxistas que, na mesma época, buscaram reabilitar a importância da consciência no processo revolucionário, cada qual à sua maneira: György Lukács e Antonio Gramsci. As discussões desses três autores desembocará nas reflexões inaugurais do que ficará chamado, posteriormente, como marxismo ocidental, termo cunhado pelo próprio Korsch em 1930 em sua Anticrítica de seu livro Marxismo e Filosofia, desenvolvido, à luz da fenomenologia francesa, por Merleau-Ponty em As Aventuras da Dialética e sistematizado e popularizado por Perry Anderson em seu livro Considerações sobre o Marxismo Ocidental.

Por fim, resta-nos explicitar que a categoria Aufhebung é a chave explicativa para compreender a relação entre marxismo e filosofia para Korsch. É a partir dela que se torna compreensível a ideia de superação da filosofia executada pelo marxismo, mas conservando alguns de seus aspectos formais. A palavra aufhebung é um substantivo alemão frequentemente utilizado derivado do verbo aufheben, cujo significado no dicionário é diverso a depender da situação utilizada: a) negar; b) preservar; c) alçar um nível superior.

A elevação da palavra aufhebung como uma categoria filosófica é feita especialmente por Hegel que a utiliza não apenas em um de seus usuais significados, mas todos ao mesmo tempo. Em termos gerais e bastante esquemático, Hegel utiliza esse termo para descrever o processo de transformação no qual uma ideia ou conceito é superado e preservado ao mesmo tempo. Para Hegel, todo conceito possui uma contradição interna que leva a sua superação e transformação em algo novo. Esse processo de superação é, portanto, uma síntese entre a tese (a ideia original) e a antítese (a ideia oposta). Tal procedimento é característico da dialética hegeliana, tal como pode ser vista em sua discussão sobre o ser, o nada e o devir.

Marx, na senda de sua assimilação materialista da dialética hegeliana, utiliza o conceito de aufhebung em diversas passagens de sua obra. É conhecida, por exemplo, no Manifesto Comunista, a ideia de abolição/supressão da propriedade privada. No original, em alemão, a palavra utilizada para se referir a “supressão/abolição” é “aufhebung”. O termo também aparece nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos para definir o comunismo como um aufhebung da propriedade privada. É claro que a assimilação marxiana do conceito de aufhebung é, como toda assimilação no interior do materialismo histórico, produzida de maneira crítica e ressignificada, à luz de uma outra base epistêmica. A superação/suprassunção do capitalismo é simultaneamente uma negação, preservação e superação. Negação fundamental da propriedade privada dos meios de produção, mas preservação da ideia de propriedade, que se torna propriedade social no comunismo (socialização), superando as formações sociais classistas. Por esse ângulo, Korsch utiliza esse mesmo raciocínio de Marx na relação entre marxismo e filosofia.

Em síntese, a relação entre marxismo e filosofia atribuída por Korsch aponta para uma crítica radical à filosofia como uma forma de saber de seu tempo, ligado à sociedade capitalista, como sua expressão ideológica. O marxismo, como expressão teórica do proletariado, supera a filosofia, mas ainda não deixa de considerá-la uma realidade importante que dá legitimidade, consciente ou não, à dominação capitalista. A recolocação do problema entre marxismo e filosofia aponta para a necessidade de o marxismo não abandonar a crítica filosófica, reinserindo-a em sua crítica radical, na totalidade dos processos sociais, contra sociedade capitalista.


Referências

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DIAS, Fabio Alves dos Santos. A redescoberta da herança filosófica do marxismo nos anos 1920: observações sobre Marxismo e filosofia de Karl Korsch. Analecta, v. 14, n. 1, p. 55-68, 2013.

ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Boitempo Editorial, 2017.

HEGEL, G. W. F. “Enciclopédia das ciências filosóficas”. Vol. I: A ciência da lógica. Tradução de Paulo Menezes. São Paulo: Loylola, 2005.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

KONDER, Leandro. O que é dialética? 10. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução – Hegel e o advento da teoria social. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Boitempo Editorial, 2015.

MARX, Karl; VIANA, Nildo. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: O manifesto inaugural do materialismo histórico. Edições Redelp, 2020.

MUSSE, Ricardo. Marxismo e Filosofia. In: Margem esquerda: ensaios marxistas, número 17. São Paulo: Boitempo, 2011.

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Um comentario para "Korsch: provocações sobre marxismo e filosofia"

  1. José Mario Ferraz disse:

    Aqui na estante há um livro que indaga por que a esquerda não funciona. O chamamento de Marx ao operariado do mundo para se unir na luta contra a cultura do venha a mim e os outros que se danem é até risível atualmente face à indiferença política do povo em geral cuja simpatia foi totalmente conquistada por seus algozes. Antes de se falar em mudança faz-se indispensável falar em combate ao analfabetismo político.

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