Estátuas a quem as merece: Tebas homenageado em SP

No Dia da Consciência Negra, cidade presta tributo a arquiteto negro do século XVIII. Escravizado até os 57, foi um dos maiores nomes da construção colonial. Autores da obra contam sobre o processo criativo e o resgate da memória negra da cidade

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Texto: Baobá Comunicação, Cultura e Conteúdo | Fotos: Marcel Farias

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Escravizado até os 58, Tebas dominou a arte de entalhar pedra e foi um dos maiores nomes da construção colonial, no século XVIII. Sua presença revela influência negra na arquitetura brasileira. Mas sua história até hoje é esquecida
Por Rôney Rodrigues

A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo entrega à cidade, em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, uma estátua na Praça Clóvis Bevilácqua – face leste da Praça da Sé – que celebra a grandiosidade do legado arquitetônico de Joaquim Pinto de Oliveira (1721-1811). O ex-escravizado ficou célebre com a alcunha de Tebas, “alguém de grande habilidade” na língua quimbundo. A sua aclamação profissional oficial ganhou relevância, nos últimos anos, tendo, inclusive, em 2018, sido chancelado pelo Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (Sasp) – ocasião que datava mais de dois séculos de sua existência. A inauguração oficial do monumento será em 5 de dezembro, como atividade da programação da sexta edição da Jornada do Patrimônio, que, neste ano, terá como tema “Nossa Cidade, Nossas Memórias”.

Originário da cidade de Santos, Tebas foi trazido para a capital pelo mestre pedreiro português Bento de Oliveira Lima, em 1740; com exímia habilidade na técnica da cantaria, o talhar de blocos de pedras, logo passou a ser disputado pelos templos católicos, na São Paulo do Brasil-Colônia. A ideia das ordens religiosas era substituir a taipa de pilão – método construtivo tradicional – para adornar com detalhamento mais requintado as fachadas das igrejas do triângulo histórico paulistano. Ele construiu a primeira torre da Matriz da Sé (1750) e, em 1769, reforma a mesma Torre da Sé e, em feito inédito, compra a própria alforria, aos 57 anos de idade, 110 anos antes da abolição da escravidão. Os ornamentos originais dos conventos da Ordem 3ª do Carmo (1775-1778), Ordem 3ª do Seráfico Pai São Francisco (1783) e Mosteiro de São Bento (1766 e 1798) também são de sua autoria. Ele ainda construiu uma fonte pública mais conhecida como o “Chafariz de Tebas”, (1791) no Largo da Misericórdia, onde, atualmente, está o cruzamento das ruas Direita, Quintino Bocaiúva e Alvares Penteado, na região central de São Paulo.

O projeto da escultura que será incrustada alicerçando a imagem de Tebas na memória contemporânea e resgatando sua importância ancestral é afro-centrado, conceituado e desenvolvido pelo artista plástico Lumumba Afroindígena e pela arquiteta Francine Moura. A obra tem o objetivo de firmar e reverberar a expertise e modernidade do legado de Tebas, revelar de modo artístico a sua produção tecnológica sofisticada para a época e propor, acima de tudo, uma reflexão que recobra a relevância da ocupação territorial preta em área central da cidade que foi fragmentada ao longo dos séculos.

Com sobrenome herdado da bisavó congolesa, Lumumba, 40 anos, além da ascendência africana direta, também carrega em suas veias a herança indígena. O artista autodidata multifacetado tem repertório extenso que passeia por diversos suportes das artes plásticas. Seu trabalho já ocupou espaços como Funarte, Matilha Cultural, também assinou a cenografia de óperas infantis, no Theatro Municipal de São Paulo – caso das montagens, “O Rouxinol”, de Igor Stravinsky e “O menino e os sortilégios”, obra de Maurice Ravel contemplada com o Prêmio Carlos Gomes e esculpiu personagens do desenho Madagascar para o Beto Carrero World.

“Estou muito centrado na minha carreira e tenho uma visão muito clara sobre a pujança que o meu trabalho reverbera no universo das artes e na sua representatividade afro-indígena. A cada avanço da escultura e das minhas inquietações entro em um deslocamento temporal. Perpasso toda a minha trajetória e sei exatamente aonde quero chegar e quem estará ao meu lado nessas realizações. Assinar essa obra fomenta conceitos ancestrais da minha existência que são amálgama da minha base como realizador”, expressa Lumumba.

Tebas homenageado em Doodle, em junho desse ano

Curiosamente, a memória e preservação já faziam parte do início da trajetória da arquiteta Francine Moura, 43 anos, mulher preta formada em Arquitetura e Urbanismo no Mackenzie. Com 20 anos de carreira, seus primeiros passos foram na conservação do painel de azulejos do Largo da Memória, quando estagiou no DPH – Departamento de Patrimônio Histórico. Francine é especialista em Projeto de Arquitetura na Cidade Contemporânea e pesquisa espaços públicos e coletivos. Também possui especialização em Educação, Relações Étnico-Raciais e Sociedade e investiga as percepções construídas sobre o corpo da mulher negra e a busca por ressignificações. “Participar do monumento ao Tebas após convite irrecusável do meu amigo Lumumba tem dimensão simbólica muito forte para mim enquanto arquiteta negra. Contribuir para o reconhecimento do trabalho deste arquiteto nos impulsiona a seguir seu legado. Olhando para a minha produção recente, nos últimos dois anos meu amor, energia e técnica foram dedicados a projetos arquitetônicos e artísticos afro-referenciados em 99% das experiências”, reforça Francine, que também atua profissionalmente como carnavalesca, cenógrafa e diretora de arte audiovisual. Seu último projeto entregue é o da Casa Preta Hub, no Vale do Anhangabaú, no Centro de São Paulo.

Grafite que retrata Tebas na Rua Rego Freitas, em São Paulo

Coube à paulistana Rita Teles, do Núcleo Coletivo das Artes Produções, alinhavar a produção executiva e artística do aquilombamento e, para demarcar a arte e o protagonismo negro na centralidade da proposta, compôs uma equipe com 90% de profissionais negros para a realização do monumento. A paulistana é formada em Educação Artística – Artes Cênicas e trabalha como atriz, produtora cultural, arte educadora, pesquisadora, além de ser reconhecida como ativista e articuladora de políticas culturais.

“A ideia principal desta empreitada é afastar, de uma vez por todas, a aura de invisibilidade que repousava sobre a história de Tebas. Um monumento que projeta, em grande escala, a contribuição negra para a cidade em que uma criança, ao passar no local, possa se sentir representada com aquela escultura que pode remeter a um super-herói ou, simplesmente, a um homem importante que existiu e lutou dignamente por sua afirmação e espaço”, ressalta Rita.

Os autores – Lumumba e Francine – conectaram-se à fluidez das ideias e, juntos, possuem uma força potente que deságua em um rio de criatividade e expertise, seja de tecnologias, seja na arquitetura, justamente em uma cidade coberta de asfalto e concreto que guarda em seu subterrâneo mais de 200 cursos d’água catalogados pela prefeitura. O resultado dessa união entre o artista e a arquiteta é uma equação cujas variáveis convertem o atual momento dos criadores – a dupla, em suas trajetórias individuais celebram neste ano (2020), 20 anos de carreira, e criam a representatividade de um Tebas que passou por este plano há mais de 200 anos.

“Ter Francine Moura na concepção desse monumento público é muito importante para mim. Assim como Tebas esteve à frente de seu tempo, a presença desta mulher preta e arquiteta, neste território central, é de extrema relevância para esse diálogo permanente entre o patrimônio e a sociedade”, afirma Lumumba.

Outro tópico relevante para o desfecho da narrativa é o fato de Lumumba estar dedicado a uma nova fase de pesquisas no universo dos super-heróis de HQ’s. O flerte com este tipo de linguagem foi um caminho natural para a concepção da escultura afro-futurista – estética cultural que combina ficção científica, fantasia, história e arte africana. Vale ressaltar que o apagamento, o reconhecimento e a alforria, de modo subversivo, também agregam à somatória que fundamenta todo o conjunto da obra.

O processo do desenvolvimento da escultura, em si, foi feito em imersão dentro de prazo desafiador, de dois meses de trabalhos, no Quimera Atelier, no bairro dos Campos Elíseos, em São Paulo.

“A obra suspensa no ar dará uma ideia de ascensão, como se ela emergisse para fora, do período da escravidão, desse universo perverso, ao mesmo tempo em que temos a presença do high tech, que faz um contraponto ao componente perecível, da corrente de ferro comum, que ficará na base da estrutura ao inox que é um material mais contemporâneo”, contextualizam os autores.

Essa forte simbologia de opressão para o povo preto, ao longo do tempo, será propositalmente deteriorada uma vez que, o ferro da corrente, não resiste às intempéries da natureza. Os artistas pretendem com este signo dialogar com as próximas gerações, de modo a quebrar paradigmas e não definir interpretações estáticas. O intuito é que a partir deste ponto consigam traçar perspectivas e paralelos entre o passado histórico de resistência e o avanço das pautas étnico-raciais no Brasil e no mundo de forma fluída e contundente.


Sobre Joaquim Pinto de Oliveira, Tebas

Mais conhecido como Tebas, o arquiteto negro nascido em Santos permaneceu escravizado até os 57 anos, 110 anos antes da abolição da escravatura. Trazido para a São Paulo, em 1740, o mestre pedreiro português Bento de Oliveira Lima, seu senhor, lhe ensinou o ofício de talhar pedras.  A habilidade para os adornos, numa época em que, na capital paulista, a técnica construtiva vigente era a taipa de pilão, fez com que Tebas gozasse de prestígio junto às ordens religiosas pertencentes ao triângulo histórico paulistano: os carmelitas, os franciscanos e os beneditinos.  Algo inimaginável para um escravizado, a sua expertise rendeu contratação e pagamento por estas instituições. A primeira torre da igreja Matriz da Sé (1750), bem como os ornamentos das fachadas dos conventos: Ordem 3ª do Carmo (1775-1778), Ordem 3ª do Seráfico Pai São Francisco (1783) e Mosteiro de São Bento (1766 e 1798) fazem parte de seu repertório.

Sobre Lumumba Afroindígena

Mineiro, artista autodidata, 40, tem na conta duas décadas dedicadas ao universo das artes plásticas. Descendente de congoleses, um caso raro de terceira geração, nascido no Brasil, herdou o sobrenome da bisavó escravizada, a congolesa Tereza Lumumba, e também carrega a herança indígena, da etnia Puri-Guarani, da Serra do Caparaó. Sua trajetória começou na pintura de orixás, no suporte juta, em que traduzia os mitos yorubás.  Em 2009, ele passa a se dedicar à cenografia como escultor em eventos como: a parada “Momentos Mágicos Disney – Brasil”, Óperas Infantis para o Teatro Municipal de São Paulo, – venceu o Prêmio Carlos Gomes de cenografia com “O menino e os sortilégios” de Ravel– Beto Carrero World, Dreamworks e Oktoberfest, Da visita em 2018, ao Parque Indígena do Xingú, quando foi honrado e participou da cerimônia Kuarup nasceram as sete obras, feitas na aldeia com pigmentos naturais e que foram exibidas, na expo individual, na galeria Matilha Cultural, de São Paulo.

Sobre Francine Moura

Mulher negra, natural de Angra dos Reis (RJ), 43 anos, graduada em Arquitetura e Urbanismo, 20 anos de carreira. No campo da arquitetura, interiores e construção civil, tem experiência em projeto, obra e manutenção predial tanto comerciais, corporativas quanto residenciais. Já atuou com pesquisa e preservação de patrimônio histórico. Possui vivências no campo das artes visuais em direção de arte e cenografia na criação, planejamento, execução e montagem de projetos artísticos e audiovisuais em expressões como evento, exposição, carnaval, espetáculo, cinema, documentário, websérie, videodança, videoclipe, programa de TV e ensaio fotográfico. E também cria e desenvolve figurinos e adereços para espetáculos em geral. É especialista em Educação, Relações Étnico-Raciais e Sociedade com investigação das percepções construídas sobre o corpo da mulher negra e a busca por ressignificações. Também possui especialização em Projeto de Arquitetura na Cidade Contemporânea com pesquisa sobre espaços públicos e coletivos. Tem capacitação em Gestão de Projetos, curso de extensão em Folclore e Cultura Popular e oficinas de Conservação de Obras de Arte e de Produção Cultural. Ama criar espaços, imagens e imaginários e encontra nas formas e cores a melhor maneira de se comunicar com o mundo.

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