Chile, 1973: A morte como prato frio, uísque e salgadinho

Memória de um revolucionário brasileiro. Asilado na embaixada mexicana, o pavor não passa – pela própria sorte, mas também a de um povo cujo futuro escorre pelas mãos. Murais políticos são apagados. Ouvem-se tiros esparsos. O avião decola

Embaixada do México no Chile, em 1973
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Sétima e última parte do relato de Mário Maestri sobre o golpe no Chile. Leia a primeira, segunda e terceira e quarta, quinta e sexta.

Sempre aprendi que devemos agradecer sobretudo pelo que nos é dado de mão beijada. Antes que o embaixador se levantasse, falei-lhe, no meu melhor castellano, que, em nome de minha esposa e meu, agradecia imensamente a ele e ao governo colombiano pelo refúgio solidário que recebíamos. Sorrindo, ele disse que, caso quiséssemos agradecer ao governo colombiano, teríamos que deixar o prédio e nos dirigir a duas ou três casas mais acima, por onde havíamos passado. Ali era a embaixada do México! Respondi-lhe imediatamente que não, obrigado, quase gritando, !Y que viva Zapata!

A residência era a moradia oficial do embaixador Gonzalo Martínez Corbalá, então com 45 anos, amigo pessoal de Salvador Allende, homem de coragem e decisão, que não negou refúgio a ninguém que bateu nas portas do México, garantindo a liberdade, a vida e o caminho do exílio mais ou menos amargo para quase oitocentos desesperados, não poucos com suas famílias.

Meses mais tarde, após partir o último refugiado, da sua residência e da embaixada, Gonzalo Martínez Corbalá abandonou Santiago e o governo mexicano suspendeu as relações com Chile, durante toda a era pinochetista. Ao contrário, durante o longo período da ditadura, as embaixadas do Brasil, sob o tacão dos generais, assim como a da China, sob o comando do “Grande Timoneiro”, mantiveram relações fraternas com a ordem terrível, após manterem as portas fechadas durante o golpe.

Nara chegou no dia seguinte de nossa entrada, após estabelecer notícias conosco, para que facilitássemos sua entrada – segundo ela se lembra.

A moradia era ampla, um pequeno palacete, e estava já literalmente entupida – talvez cinquenta ou mais pessoas. Havia uma grande sala, com lareira e um piano, volta e meia tocado por algum refugiado. Em uma pequena sala havia uma televisão, em preto e branco, transmitindo notícias controladas pelo golpismo. Além disso, um ou dois quartos e, certamente, os aposentos do embaixador, de sua família e outras dependências em que não circulávamos.

Havia chilenos, argentinos, uruguaios e outros latino-americanos. Brasileiros, poucos. Era um grupo desigual, com ex-militantes, funcionários da UP e sei lá mais o quê. A solidariedade fazia-se às vezes faltar. Os quartos foram adonados pelos ocupantes. As filas dos banheiros eram enormes. Quatro ou cinco se enxugavam com a mesma toalha. Dormíamos pelo chão, bem atapetado, em cima de mesas. Creio que havia aquecimento central. As cadeiras e sofás eram guardados com zelo e cedidas com cara feia para alguém de idade ou crianças. Mas vi companheiras abrir as malas e dar peças de roupa a desconhecido necessitado.

Dois brasileiros organizaram uma “ação” e “expropriaram” algumas garrafas da adega do embaixador. Minha recriminação recebeu olhares perplexos. As discussões eram raras. Em geral, comentava-se que tudo estava perdido, antes de começar o golpe. Comunista chileno afirmava que o golpe fora devido à radicalização propiciada pelos esquerdistas.

Novos refugiados chegavam, a conta-gotas. Vi Gustav Harald Edelstam, embaixador da Suécia, alto, magro, vestido de negro, entrar na peça grande trazendo consigo o dirigente camponês trotskista Hugo Blanco, que escapara de condenação à morte no Peru, de onde fora deportado, em 1970. A imprensa golpista chilena pedia então sua cabeça.

Os não chilenos eram em parte “militantes armados” exilados no Chile. Estabeleci relações com dois simpáticos montoneros politicamente não muito ilustrados. Em uma roda, um deles, enorme, sempre alegre, e muito rústico, declarou que odiava os homossexuais. – Se vejo um “maricón”, o fodo sem pena! Um brasileiro franzino levantou-se dizendo: – Me retiro, antes que o companheiro, em abstinência, salte sobre o mais fraco de nós! O montonero recebeu um tapa na nuca do seu companheiro que não parava de rir. Perplexo, deixava compreender que não entendia por que ríamos.

A concentração de esquerdistas refugiados no Chile oferecia a possibilidade para a direita de assassinar centenas de dirigentes e “guerrilheiros” esquerdistas. Muito logo se organizaria a Operação Condor de extermínio, coordenada pelo imperialismo, com a participação do Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai.

O embaixador Gonzalo Martínez Corbalá organizou a pronta retirada dos estrangeiros, temendo invasão dos grupos paramilitares fascistas, sob as ordens dos militares. Em fins de setembro, notificou que os estrangeiros viajariam para o México. Teríamos ficado de sete a dez dias na residência diplomática. Um ônibus parou junto ou no pátio da casa. Diria sem certeza que era amarelo e que entramos por uma porta traseira.

Seríamos umas duas dúzias, incluindo a Sandra, a Nara, a mim e ao Hugo Blanco. O ônibus fez uma ou duas paradas – uma delas certamente na Embaixada mexicana, onde embarcaram diversos outros refugiados, entre eles, alguns dos brasileiros enviados para Santiago, em troca do embaixador da Alemanha, sequestrado em 11 de julho de 1970, no Rio de Janeiro.

Antes de embarcar, um oficial mexicano, bigodudo, grande e um pouco gordo, com duas enormes pistolas, teria dito que não temêssemos, ele cuidaria de nós. Se não me falha a memória, viajou conosco ao lado do motorista, junto à porta do ônibus. A viagem até ao aeroporto foi dilacerante. Era noite ou madrugada. Se escutava os tiros esparsos, dos militares ou, não raro, de franco-atiradores que esperavam a noite para disparar contra as forças golpistas. Não havia quase ninguém nas ruas.

Imitando os mexicanos, formara-se no Chile brigadas de jovens que pintavam murais nos muros, sobre múltiplos temas – o trabalho, o programa da UP, acontecimentos internacionais. A brigada do Partido Comunista se chamava Ramona Parra (BRP) e a dos socialistas, Elmo Catalánde (BEC). MAPO, Esquerda Cristã, MIR pintavam alguns muros, mais raramente, sem igual qualidade.

A BRP era a mais organizada e de obras gráficas superiores. Elas eram também conhecidas pela violência sectária contra os militantes da esquerda revolucionária, tendo assassinado o estudante mirista Arnoldo Rios, em Concepción, em dezembro de 1970, com dois tiros. Passando pelas ruas viam-se os antigos e belos murais cobertos rapidamente com tinta branca, início da tentativa encanzinada de apagamento impossível da tradição de luta chilena.

O ônibus entrou no aeroporto. Descemos e tivermos que passar por central de identificação, onde não mostramos nenhum documento, já que sob a proteção do Estado mexicano. Talvez alguma lista tenha sido entregue pela embaixada. Alguns dos refugiados sequer documentos tinham.

Lembro-me que jovens oficiais ou suboficiais da Força Aérea avançaram em direção a dois companheiros nossos, querendo registrá-los. O nosso guardião mexicano, de grandes bigodes, avolumou-se, se pôs em posição de tiro e disse qualquer coisa que não ouvi. Fantasiando, diria que rosnou: – Ni cagando, gringos! Os golpistas recuaram e passamos tranquilo. Creio que embarcamos, outra vez, até a porta do avião, com o nosso anjo Pancho Villa na porta do ônibus.

Entramos e sentamos. Mais tarde, disseram-me que era o Caravelle da Presidência de México. Talvez. O certo é que cinco aviões mexicanos fretados teriam levados os refugiados de Santiago. Comecei a me sentir, finalmente, mais tranquilo.

Seriam poltronas de quatro pois, além da Sandra, estava ao meu lado um brasileiro e sua companheira. O jovem suava às bicas. Tentei aclamar o medroso. Disse-lhe que não temesse, que já estavam fechando as portas do avião. Respondeu-me, sempre assustado, que cagava pros milicos fascistas. Tinha era medo de andar de avião! Mais tarde fiquei sabendo que participara com destaque e coragem de diversas ações militares no Brasil.

O avião levantou voo. Não quis olhar pela janelinha. Respirei tranquilo mas o vazio na barriga que sentia desde o 11 de setembro não desapareceu. E não desapareceria por longos meses. Mesmo passando o medo de ser preso, de ser torturado, de morrer, era certo que algo tivera fim em mim com o ruir do país em que decidira passar o resto de minha vida, pois jamais me sentira e sentiria tão vivo e realizado como ali, entre um povo que segurava o destino com as duas mãos.

O avião subiu, estabilizou. O comandante liberou o cinto de segurança. Algumas pessoas se levantaram para ir a toalete. E, tranquilo, relaxei ainda mais, esparramando-me na poltrona. E, subitamente, perplexo, me deparei com quadro que Nara, ontem, por WhatsApp, definiu, com pertinência, de “surreal”. Pelos corredores avançavam lindas lindas e jovens aeromoças, com elegantes chapeuzinhos e uniformes azul e vermelho, creio, com bandejas de copos de whisky, conhaque, vinho, e bandejas de delicados salgadinhos e doces. Tudo do bom e ótimo.

Não pude deixar de pensar que alguém estava nos gozando.

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