Porto do RJ: onde o capitalismo tisnou o Brasil

Livro vê na zona portuária carioca o “lugar-chave” para compreender relação entre o país e a economia globalizada. Da escravidão às Olimpíadas, ele transformou-se junto à cidade, sob influência das transações mercantis

O Cais do Valongo, local onde, até meados de 1770, os negros escravizados vindos do continente africano desembarcavam na cidade do Rio de Janeiro.
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O texto que você lerá abaixo é uma resenha do livro Um Porto no Capitalismo Global, de Guilherme Leite Gonçalves e Sérgio Costa, publicado pela editora Boitempo.
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Por Josué Pereira da Silva

O livro trata de dois objetos, ou temas, aparentemente díspares – o Porto de Rio de Janeiro e o Capitalismo Global – conforme indicado no título, cujo vínculo seus autores procuram estabelecer na análise que desenvolvem ao longo das suas cerca de 150 páginas, divididas em cinco capítulos, mais a introdução e as considerações finais. Já no subtítulo do livro – Desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro – eles deixam entrever a ideia básica que norteia o empreendimento por eles desenvolvido, qual seja, analisar o Porto do Rio de Janeiro a partir do conceito de acumulação entrelaçada.

Os autores consideram o mencionado porto como um espaço-síntese – “uma miniatura das metamorfoses da expansão capitalista” (p.10); ou seja, um microcosmo privilegiado a partir do qual eles podem elaborar uma espécie de diagnóstico do capitalismo contemporâneo, de forma a capturá-lo em toda sua complexidade. Assim, armados com o conceito de acumulação entrelaçada, elaborado no primeiro capítulo do livro, eles tomam o porto como um “lugar-chave” para estudarem a relação entre a economia brasileira e o capitalismo global.

Essa é, portanto, a tese que permeia toda a análise, conforme, aliás, eles realçam nas considerações finais: “A zona portuária do Rio de Janeiro representa uma espécie de espaço-síntese no interior do qual as diversas fases do capitalismo no Brasil, assim como formas variadas de integração da economia brasileira à economia mundial e diferentes formatos de acumulações entrelaçadas aparecem refletidas e concretizadas” (p.129).

A par dessa tese central, eles acrescentam que o objetivo, ou a mensagem principal do livro, é “refletir sobre os pressupostos eurocêntricos” que, subentende-se, permeiam as análises ora dominantes. E essa é, para os autores, a principal contribuição do livro.

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Eles alertam, no entanto, já no início que, ao estudarem o porto do Rio de Janeiro, não têm qualquer pretensão de originalidade, uma vez que já existe uma robusta bibliografia sobre o porto, na qual, aliás, eles se apoiam para escreverem o ensaio. A propósito, eles afirmam que utilizaram o porto, inicialmente, para ilustrar um paper, mas a interlocução crítica com outros estudiosos levou-os a desenvolver o estudo inicial de forma a resultar no presente livro.

Não se trata, pois, de um estudo de caso sobre o mencionado porto, mas sim de um ensaio que procura compreender o capitalismo contemporâneo a partir do exemplo do Porto do Rio de Janeiro – “lugar-síntese”, vale lembrar – onde se materializam as relações essenciais do atual capitalismo financeiro. Mas, se o porto é utilizado, ao menos inicialmente, para ilustrar o argumento central, cabe, então, a pergunta: qual é propriamente o objeto central, o tema, do livro?

Para mim, a resposta a esta pergunta aparece de forma relativamente clara já na introdução do livro: o conceito de acumulação entrelaçada. Este, sim, parece ser a chave para que o estudo do porto deixe de ser um estudo de caso e se torne um ensaio teórico – ainda que, verdade seja dita, se trate de teoria aplicada – sobre o conceito de acumulação entrelaçada.

A estrutura do livro, sua disposição em capítulos, também evidencia isso. Assim, temos, para reforçar essa evidência, todo o primeiro capítulo dedicado à elaboração conceitual da acumulação entrelaçada. Nele, os autores se debruçam sobre diferentes vertentes da teoria marxista da acumulação – “da acumulação primitiva à acumulação entrelaçada” – para mostrarem os desenvolvimentos dessa última ao longo da expansão capitalista.

E uma vez definido e apresentado, ao final do primeiro capítulo, o conceito chave de “acumulação entrelaçada” que guiará a análise, eles se dedicam nos capítulos seguintes mais propriamente à história do porto. E, vale lembrar, a história do porto ao longo do ensaio só se torna clara à luz do conceito de acumulação entrelaçada. Daí porque eu o considero o tema principal do livro, embora as análises sobre os diferentes momentos da história do porto possam dar a entender o contrário, que o porto é o tema principal.

Nos demais capítulos, os autores tratam, inicialmente (capítulo II), da relação do porto com “a capital e o capital”, onde chamam a atenção para os vais e vens da mercantilização e da desmercantilização, conforme se alteram os interesses da capital (seus mandantes) e, obviamente, do capital, cuja lógica de acumulação norteia as oscilações das decisões políticas e econômicas tomadas em relação ao lugar que o porto ocupa no contexto de cada época.

Em seguida, eles dedicam os capítulos III e IV à história do porto em suas diferentes épocas, indo do tráfico mercantil de pessoas durante o período da escravidão aos tempos recentes do megalomaníaco projeto conhecido como Porto Maravilha, narrativa que deixa claro o vínculo dessa trajetória com a lógica da acumulação capitalista e os interesses mais imediatos dos mandantes de plantão.

No capítulo V, intitulado “a crise ancorada do porto”, os autores abordam a decadência, o esvaziamento dos projetos megalomaníacos direcionados aos grandes eventos esportivos – Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016 – à luz da crise econômica que passamos a vivenciar desde então, centrando a análise no que chamam de “reinvenção da acumulação financeira”, para a qual também recorrem ao conceito de acumulação entrelaçada. Por fim, nas considerações finais, além do que foi dito antes, eles também articulam as mencionadas formulações teóricas com o “caso estudado” do porto, para indicar pistas de uma “agenda para pesquisas futuras”.

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A ideia básica que permeia o livro – o porto do Rio de Janeiro como um lócus privilegiado para a intelecção do capitalismo global – é convincente e seus autores a desenvolvem com muita competência. O ensaio, conforme o livro é definido pelos próprios autores, aborda a relação entre a história do porto do Rio de Janeiro e a acumulação de capital em todos os capítulos do livro de forma a realçar a existência de conexão, de vínculo, permanente entre o que ocorria no porto, na cidade e no país com o processo de acumulação de capital em escala global a cada momento histórico, do capitalismo mercantil ao capitalismo financeiro, da acumulação primitiva à acumulação entrelaçada.

Eles conseguem nos mostrar com clareza essas conexões entre o local e o global; nisso o livro é bem sucedido, convincente. Ele, de fato, contribui para elucidar tais relações. Ademais, os autores chamam a atenção para o vínculo crônico entre acumulação de capital e corrupção – ontem e hoje – “como mecanismo sistemático da dinâmica de expropriação feita em espaços não mercantilizados (…) de modo a facultar a expansão dos circuitos de produção do mais-valor” (p.31). E, é preciso não se esquecer, esse vínculo sempre se beneficia da mediação exercida pela regulação do Estado, que no mais das vezes está direcionada a facilitar e corroborar o processo de acumulação por meios lícitos e até ilícitos.

Eles realçam ainda os efeitos, quase sempre perversos, de tais políticas para as vidas das pessoas afetadas, sobretudo aquelas que fazem parte dos estratos sociais economicamente mais vulneráveis e culturalmente passíveis das mais diversas formas de discriminação, sobretudo as de cunho racista. Trata-se, pois, de um processo, bem exemplificado pelas contrarreformas neoliberais e suas políticas de privatização, no qual tudo se faz para acentuar e aprofundar a abissal e crônica desigualdade social do país, sendo o caso do porto do Rio de Janeiro um bom e elucidativo exemplo. Um Porto no Capitalismo Global é um livro que vale a pena ler.

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