Arrastão dos Blocos fecha o carnaval livre

O Arrastão dos Blocos, um coletivo dos blocos de rua indeopendentes, sai ainda uma última vez pela cidade de São Paulo, evadindo o controle policial e a comercialização do carnaval de rua.

1Saí da estação República do metrô para o “encerramento oficial do carnaval de rua”. Era o Arrastão dos Blocos, uma confederação de blocos de rua de São Paulo que tenta reunir os blocos independentes para, juntos, se despedirem do carnaval.

O Arrastão esteve muito presente nas ruas durante as jornadas de resistência ao golpe. São assumidamente a “esquerda festiva”, isto é, acreditam na folia como forma de estar na rua, e cultivam a insubmissão humorística. Durante os anos Temer, figuravam em vivo contraste com as mobilizações petistas e sindicais, engessadas na forma e no discurso.

Cheguei às 15h e ainda estava meio vazio. Alguns estandartes encostados em uma árvore sinalizavam que vários blocos já estavam lá: Bloco da Ursal, Obscênicas, Negras Vozes e o do Bloco Regx FritX, que trazia um aplique na forma de uma bunda rosada. A Fanfarra Clandestina também tinha belo estandarte, com a metade de uma grande bomba de pavio, daquelas pretas esféricas de desenho animado, ladeada de pequenos instrumentos musicais dourados. Umas 120 pessoas conversavam na praça, muitas delas fantasiadas.

Um moço vestia uma camisa social, mas tinha escrito ao peito “Bolso não”, com uma seta que indicava o furo que rasgara no tecido, onde estaria o bolso, agora arrancado! O buraco retangular emoldurava seu mamilo.

Dei um giro e vi um sorriso gigante, lábios e dentes montados sobre uma haste. A bocona abria e fechava conforme o comando do folião que a segurava.

Vi uma camisa do Juventus.

Foi enchendo e começou a cantoria. Dentre elas, seu hino, o “Arrastão dos Blocos, um hit dos loucos anos Temer:

“Arrastão dos Blocos

Nem um passo à trás

Folia da democracia

Ditadura nunca mais”

Logo vi C no apoio ao carrinho de som, e B e depois G.

A presença do Arrastão era boa na praça, a bateria composta de instrumentistas de diferentes blocos tocavam juntos, chamando a atenção dos transeuntes e passantes. Notei também que vinham ouvir e às vezes dançar alguns homens da rua. Alguns olhavam de fora, tristes, mas outros achavam a sua alegria para dançar.

Às 15h45 o cortejo saiu para a rua, trazendo a faixa de abertura “Carnaval de Rua Livre”. A mensagem era de repúdio à violência policial deste ano contra certos blocos e também contra a mercantilização do carnaval de rua em geral, que redunda em controle e autorizações.

Entramos pela rua 7 de Abril, que é calçada e não tem tráfego de automóveis. Ladeada de prédios altos, o som reverberou de maneira muito rica. Ainda tinha bastante gente no centro da cidade, e o impacto sobre elas era bom.

“Vou pra rua sem culpa, ocupa, ocupa!

Contra todo impostor, amor, amor!

Pra fazer revolução, carnaval do Arrastão!”

Éramos umas 200 pessoas, mais ou menos igual homem/mulher, no geral jovens de 25 a 35, com um contingente ao redor dos 50. Seguimos pela rua até que dois PMs vieram abordar. Um deles tinha uma prancheta e anotava os dados pessoais de um organizador.

Partimos sem mais e o povo da rua se juntou a nós. Um homem sem camisa carregava seu cachorro nos braços, e quando alguém lançou aquela neve de espuma, ele e seu animal ficaram todos cobertos de pontinhos brancos. Outro homem, mais tristonho, nos seguia atrás, com um carrinho de supermercado onde carregava seus pertences.

O povo dançava muito, e chegaram três moças de pernas de pau para abrir o cortejo.

Seguimos com uma ciranda que muito tocou na campanha de 2018. Era o sábado antes da eleição, e eu estava angustiado com a coisa toda. Nessa mesma praça, o Arrastão fazia seu último arrasto antes do voto. A noite caía e ouvi pela primeira vez essa canção, que começa com “Segura sua mão na minha, segura sua mão na minha, bora fazer juntas, o que não dá pra fazer sozinha”. Lembro que chorei na calçada.

Um moço e seu amigo, ambos jovens e negros, curtiam a festa. Um deles carregava a camisa da CBF. Me chamou a atenção que ele sorria muito, e ficou no sorriso aberto até o fim. Vários colãs e sainhas de tule, em homens e mulheres, máscaras felinas e chapéus variados. Achei que a maioria devia ser veterana da folia.

Dobramos á esquerda na rua Marconi e passamos em frente da ocupação na esquina da rua Itapetininga, que tomamos girando à esquerda.

O povo que estava na rua, nas mesas de bar e nas lojas no geral curtiam muito o cortejo. Mas alguns fechavam a cara, e brinquei de pensar que estes eram bolsonaristas, descontentes e frustrados com seu capitão, que ainda por cima tinham que testemunhar que a alegria continuava renitente no campo popular. A certa altura vi um homem com o maior jeitão de ser Careca, cabelo raspado e cenho franzido. Não disse nada. Quase todo mundo que assistia de fora também filmava com celular.

“A ditadura não acabou, tem que lutar até o fim do capital”

Vi uma bandeira do MST, carregada na mão. Notei que um dos estandartes trazia escrito no verso “Lula Livre”. Uma moça tinha montado a cabeça de um unicórnio a uma haste.

Viramos à esquerda na rua Dom José de Barros. Passamos por um figura que trouxe seu cachorro. Um cartaz informava que o animal se chamava “Lobo” e era treinado. Mas o cão não aguentou fica imóvel e foi interagir com os cachorros do sem-teto que alucinava no meio da folia.

Uns 5 homens assistiam tudo da entrada do Cine da José, que passa filmes pornográficos. Um cartaz informava “É proibido fazer programa neste local. Sessões a partir das 9:00”. Um outro homem, de uniforme de segurança, mas de meias diferentes e sem sapato, batucava num tampo de madeira com dois cabos de vassouras. Mas não parecia muito feliz.

Chegando no Largo do Paissandu, dobramos à esquerda na avenida São João, para então pegar a avenida Ipiranga também à esquerda, em direção à praça da República.

Ali, surgiram de repente duas enorme bandeiras, uma com o rosto de Marielle e outra a bandeira do Brasil, mas rosa e verde, com o dístico “Índios, negros e pobres”. Era idênticas àquelas do desfile da Mangueira. Foi muito bonito. A moça do microfone saudou as bandeiras: “Olha lá quem está aqui – a Marielle!”, O povo aplaudiu e saudou a vereadora.

Dobramos à esquerda na rua Itapetininga. Eram 16:45h, e o espaço ficou mais apertado, pois disputávamos espaço com muitas mesas de bar e camelôs com suas mesas de armar.

“Juntos a gente é forte pra buceta!” gritou a moça, entre um e outro verso da canção.

Fiquei mais atrás para proteger o cortejo de um buraco na via, e então vi a multidão por trás. O rosa e verde das bandeironas coloridas se destacavam do fundo cinza da cidade, os estandartes logo abaixo e aí as cabeças das pessoas. Era muito belo.

Um casal veio passar purpurina no meu braço e ofereci a cabeça, que saiu cintilando no cair do dia.

Chegamos ao Teatro Municipal, onde nos concentramos. Tinha algum evento para acontecer no teatro, e umas 50 pessoas esperavam na escadaria. Os seguranças ficaram ariscos, e mas a festa ficou lá na frente por um tempo. Depois os estandartes foram arranjados na escadaria, com a faixa e as duas bandeironas, para registro fotográfico.

O manifesto do Arrastão foi lido em jogral. “Não vão parar o carnaval. Todos na rua para cuidar de gente, da nossa cidade, do planeta”.

Fizeram a chamada de todos os blocos presentes, e a minha lista final é esta, além daqueles que já mencionei acima: Ska Ravana, Bloco O Quê?, Saia de Chita, Filhos de Gil, Pernaltas Essepê, Bloco Bastardo, Broco da Buroca, Filhas da Lua, Eu Acho É Pouco, Pimentas do Reino, Cacique Jaraguá, Me Lembra Que Eu Vou, Bloco do Fuá, Ilu Obá di Min, o Pitbull Banguela, Vai Quem Quer, Bloco das Minas, do Pequeno burguês, Jegue Elétrico, Agora Vai, Bloco da Água Preta, a Charanga do França, Siga Bem Caminhoneira, BloCU, Te Pego no Cantinho, Pilantragem, Manada, Me Ocupa Que Eu Sou da Rua, Quem Tem Boca Vaia Roma.

Seguimos em direção à Praça do Patriarca e atravessamos o Viaduto do Chá. Passamos em frente a prefeitura, onde, atrás das grades, estavam 5 soldados da Guarda Civil Metropolitana, dois deles filmavam a folia em seus celulares.

Chegamos à Patriarca e fizemos uma grande roda, ainda no batuque e no gogó: “Cadê o pato que estava no seu saguão? Amarelinho, de borracha, ele representa o patrão”.

Sem fios elétricos por cima, as bandeironas podiam se desfraldadas com muita liberdade, e elas encheram o ar da praça.

Notei que o moço do bolso arrancado ainda estava entre nós, só que seu mamilo agora estava purpurinado. Vi um cartaz “Geladinho alcoólico”. Um moço negro trazia à mão uma cabeça branca de manequim. Um homem de boné sorria com seu avental que trazia “Compra-se ouro, dólar, euro, platina, prata, brilhantes. Temos advogados”.

“Sexo anal, pelo fim do capital! Sexo oral, pelo fim do capital! Sexo bucetal, pelo fim do capital! Sexo lateral, pelo fim do capital! Assexual, pelo fim do capital!” gritava a multidão.

C veio tomar uma cerveja perto e descansar um pouco. Conversamos e achei ele um meio desanimado com a conjuntura. Ele é sempre infatigável e eterno otimista, mas desta vez notei um sombra de amargura na sua análise.

Fiquei um tempo mais, até as 17h45. Depois saí caminhando pela rua Direita, e o som do batuque do Arrastão foi diminuindo até sumir:

“Segura a sua mão na minha, segura a sua mão na minha, bora fazer juntas…”

Subi a Praça da Sé a pé e caminhei para casa.

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