Diário: marcha com estudantes e cientistas

Uma passeata em São Paulo traz lufada de rebeldia e mobilização. A Educação pode vir a ser um campo de resistência central para várias forças hoje dispersas.

Desci do ônibus no ponto da rua Itapeva, na avenida Paulista, para alcançar o MASP, onde ia ocorrer a Marcha pela Ciência. Chegou até mim como chamada pelos Cientistas Engajados. Por isso, esperava encontrar gente mais velha, tipo professores e pesquisadores. Fiquei surpreso de ver que o vão do MASP estava tomado de jovens, de 18 a 25 mais ou menos.

Eram 16h30 e já contavam-se uns 200 manifestantes, descontada a fila de ingressantes ao MASP. Não havia carro de som, o que eu achei bom: muita roda de conversa e nenhuma agremiação monopolizou o encontro.

Dei o primeiro giro em busca de uma impressão geral e para o primeiro registro de cartazes e bandeiras. Enquanto eu escrevia na caderneta, de pé, um PM cinza veio me abordar: “Você é jornalista? Quem é essa gente? Você sabe se eles vão sair? Você deve ter mais informação do que eu. Eu perguntei a eles mas disseram que a direção deles ainda não chegou”. Desconversei e disse que não sabia nada.

Logo vi uma faixa grande, “Cientistas Engajados”. Lembrei que eles já tinham vindo às ruas durante as eleições, inclusive concorreram a vagas no Congresso Nacional. Mas quem dava corpo à manifestação hoje eram os estudantes.

Fiquei feliz de ver que as mensagens e palavras de ordem eram novas e originais, uma bem-vinda lufada de novas formulações:

“Eu não sou maluco, sou cientista”

“Temos a solução” (ilustrado por um tubo de ensaio com solução química dentro!)

“Cientista não existe só em filme”

“No começo de todo filme de desastre tem cientista sendo ignorado”.

“A filosofia é a mãe da ciência”

Até o termo “balbúrdia”, justificativa do ministro Weintraub para os cortes, foi incorporado pelos manifestantes.

“Ciência não é balbúrdia”

“Defina ‘balbúrdia’”.

Vi uma única camiseta do PT, e bem depois uma outra do PSOL. Achei que os partidos não estavam lá e achei melhor – dá chance à base cultivar sua diversidade e horizontalidade. Não vi autonomistas, mas achei que as várias bandeiras da UNE, UMES e UPES não configuraram hegemonia deste ato. Mas não sei ao certo, não vi ninguém que eu conhecesse dentre os manifestantes hoje, de modo que não fui interado dos bastidores.

Vi camisetas da USP, e o pessoal da UNIFESP estava lá. Vi um pessoal da UFABC, com faixa (“DCE UFABC”) e bandeira (“Movimento Corrente”). Já os pós-graduandos da USP tinham sua associação presente: “APG Helenira Preta Rezende”.

Fecharam uma roda ao redor da faixa dos cientistas, mas não consegui ouvir as falas nessa hora.

Anotei mais cartazes, todos feitos à mão:

“Ciência não é gasto, é investimento”

“Um salário de juiz = 90 bolsas”

“Sem investimento não há conhecimento”

“Tudo o que uma garota quer é investimento na pesquisa”

“Exatas pelas ciências humanas: porque estamos todos juntos”

“95% da pesquisa brasileira é feita em universidades federais”

A esta altura eu já tinha me contagiado com a energia do local. Deu para sentir que podemos ter saído do coma geral. As pautas gerais da sociedade devem tender a convergir: deu um vislumbre de muitas lutas dispersas sentirem o clima e saírem às ruas nesse momento.

Na época das ocupações secundaristas, parte da esquerda depositava enorme esperança nessas mobilizações. De fato era o mais promissor que existia, mas achava também que era algo injusto com a meninada atribuir a eles a tarefa de salvar a humanidade. Mas o viés persecutório e drástico dos cortes devem ter sensibilizado até os acadêmicos mais tucanos, e no mínimo embaraçado aqueles que apoiaram ou propiciaram Bolsonaro. Quero dizer, a educação pode vir s er um campo importante da resistência.

Reparei nessa hora um cartaz autoportante na calçada: “Hipnose Grátis. Experimente aqui”.

Vi uma camiseta “O dia só começa depois do café”.

Dei mais um giro e anotei os cartazes:

“Sem Ciência, Sem Futuro”, “Eles gostam dos produtos da ciência, mas não gostam das perguntas da ciência”, “Quero estudar, não quero me tornar o que vocês são”, “Sem ciência de base não tem tenologia”.

Fizeram um jogral e aí foi possível ouvir algumas formulações. Chamaram a mobilização por direitos, e afirmaram que “não vai ter corte à ciência, não vai ter escola sem partido”. O presidente foi mencionado algumas vezes, incluindo numa robusta chamada “Ei Bolsonaro, vai tomar no cu”, campeã nacional do carnaval de 2019. Além disso, chamaram para a mobilização nacional do dia 15 de maio, pela Educação. Fecharam com “Ciência sim, Bolsonaro não”.

Depois começaram a cantar uma versão da canção Bella Ciao, mas não conhecia essa letra específica e não consegui captar tudo.

Chegaram umas moças e moços de avental branco, com cartazes. Eram 17h30 e apenas dois PMs estavam na calçada, perto do pessoal. Tinham a cara fechada, mas o que me mais perturbou foi como eles mastigavam seus chicletes, os dois. Além dos policiais, tinha um agente do trânsito CET e um outro “Fiscalização”, presumivelmente da Prefeitura.

O povo foi ganhando a rua e ocupamos a faixa de ônibus. O trânsito da avenida continuou a fluir pelas outras faixas. A animação era grande e fiquei feliz de ver a passeara encher no percurso. Avaliei o ato em pelo menos 600 pessoas. Meu coração gritava “mil!”, mas contei várias vezes e dava essas 600.

A avenida estava bem cheia ainda, muito pedestre nas calçadas. Dizer que eles festejavam a passeata seria mentira, mas notei que não ser abertamente petista nem mesmo ter muito vermelho ajudava muito. A galera gritou bastante contra Bolsonaro:

“Ô Bolsonaro, presta atenção, sou cientista lutando por educação!”

“Ô Bolsonaro, sei fascistinha, os estudantes vão pôr você na linha!”

“Ai, aiaiai, iaaiaiaiaiaiai, Bolsonaro é o carai!”

“Ô Bolsonaro, seu imbecil, a educação é o progresso do Brasil”

“Doutor, eu não me engano, o Bolsonaro é miliciano!” – esta uma antiga marchinha (Coração Corinthiano) reescrita para o contexto contemporâneo… Sucesso do carnaval 2019.

A luz começava a cair e caminhávamos pela avenida. Passamos pelo Conjunto Nacional e pelo Banco Safra. Alguém puxou e o povo acompanhou:

“Que contradição! Tem dinheiro pra banqueiro mas não tem pra educação!”

“Se você paga, não deveria, porque educação não é mercadoria!”.

“Aha! Uhu! A rua é nossa!”

“Quem está ouvindo, população, a nossa luta é por sua educação!”

Vi (de novo!) o senhorzinho com a placa “Tarifa Zero” que do outro lado traz “Lula Livre”.

Um moço passou na calçada, de cara pintada de branco e um macacão de palhaço que ele mesmo deve ter feito, de chita branca com bolas vermelhas, passou meio surpreso com o que via na rua… mas ele sorriu que eu vi!

Vi mais de um manifestante com livros em riste. Uma moça trazia um livro intitulado “Comum” por cima das cabeças.

Vi os cartazes “Quer viver mais? #acienciaque faz”, “Bolsonaro e Weintraub, inimigos da educação”, “Astrofísica pela Ciência”.

Sorri ao ler o cartaz “EU AVISEI!”.

Gostei de outro “A verdade destrói mito”. E “Estudante organizado perigo pro Estado”.

Notei que uns 10 PMs faziam uma esparsa linha de contenção ao longo da faixa de ônibus por onde caminhávamos. Mas não apreciam agressivos.

Vi o fotógrafo L.

Cruzamos a rua Augusta sem problemas e fizemos uma alça na altura da rua São Luís, retornando na direção do Paraíso. Essa alça se dá em cima de um túnel que conduz o fluxo de carros para a Rebouças e Dr. Arnaldo. Quando a fila de jovens estava fazendo essa ferradura, rolou um momento onde todo mundo se via de frente: quem vinha em direção à Consolação, quem ia já em direção ao Paraíso e quem fazia a curva no meio. A passeata parou e todos se olharam nessa ferradura, as faixas e cartazes, os sorrisos e os corpos.

Vibrei com esse momento, era bonito de ver quantos éramos, tinha carro e motoboy lá embaixo buzinando em apoio.

Se ver na potência da rua: acendeu esperança.

Logo seguimos e paramos em frente ao escritório da Secretaria da Presidência. Nos aguardavam 12 motocicletas e duas viaturas tipo veraneio. Vi uns 15 PMs, um deles com um colossal spray de pimenta.

Vi um pessoal da UNIFESP. Vi uma bandeira do PSOL. Vi um cartaz “Cientista também é trabalhador”, “Universidade para todxs”, “Não quero imediatismo, quero plano de educação”. “O Brasil precisa estudar o brasileiro”.

Em frente à Secretaria, novas chamadas. Eram 18h:

“A nossa luta, é todo o dia, pela ciência e pela tecnologia!”

“Vem, vem, vem pra rua vem, pela ciência!”

“Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro!”.

Os últimos cartazes que anotei: “Celular? Carro? Remédio? Exame? Energia renovável? #acienciaque faz”, “O governo quer derrubar a educação porque ela derruba o governo”.

Eram 18h e fizemos mais um jogral. Chamaram a mobilização do dia 15 de maio. Um moço clamou: “Bolsonaro, se prepara, você mexeu com os estudantes!”.

Encontrei o fotógrafo B e conversamos um pouco. Ele colocou muito a necessidade de trabalho de base, principalmente na periferia. Falou como falta trabalho à esquerda para se reaproximar da sociedade e dos trabalhadores.

Despedi-me e ia sair fora quando ainda ouvi a meninada gritar, numa cadência sincopada que não tem escrita correspondente: “Queremos gre-ve ge-ral, greve geral!”.

Saí para outro rolê mas fiquei muito contente com o ato de hoje. Não foi massivo, é ainda potência, mas abriu um canal por onde podem escoar as torrentes secundaristas, republicanas, esquerdistas, libertárias e artísticas. Os partidos têm que observar com humildade e oferecer apoio sem condições.

Mas também está claro que não pode ser uma restauração aos tempos do PSDB ou mesmo do PT institucional: tem que defender a universidade, mas ampliando a noção de educação e de ciência, esgarçando sua vocação universalista. Há que se defender a educação ao mesmo tempo que se a transformamos.

Chamo os companheiros: sai de casa, amigx e vem pra rua com a meninada. Vai virar, não esteja em casa… aqui mora a alegria.

Tomei o metrô e fui para casa.

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