Cultura: o que virá depois da devastação?

Em novo livro, colunista de Outras Palavras faz uma radiografia das políticas culturais dos últimos 20 anos. Da vibrante gestão de Gilberto Gil, no governo Lula, à demolição total do Ministério pelo bolsonarismo, obra vislumbra novos caminhos para reestruturá-lo

Foto: Franklin Dórea/Jornal Grande Bahia
.

O Pum do Palhaço – O desmonte da Cultura sob Bolsonaro, editado pela Ação Educativa. Lançamento: dia 20 de dezembro, às 18:00 na sede da Ação Educativa, na rua General Jardim, 660, São Paulo

Será lançado no próximo dia 20 o livro O pum do palhaço – o desmonte da cultura sob Bolsonaro, de minha autoria, publicado pela editora da ONG Ação Educativa. A obra faz um balaço das políticas culturais no Brasil de 2016 até 2023, com ênfase no nefasto período de Bolsonaro na Presidência da República. Apresento uma abordagem sobre a conjuntura recuperando os fatos e atores políticos centrais do período. É um exercício de “memória do presente”, como disse Heloisa Teixeira (Heloisa Buarque de Hollanda) no texto da contracapa. Além de Heloisa, o livro conta com textos de Adriana Barbosa, do Instituto Feira Preta que faz a orelha e do poeta e ex-coordenador de Cultura do Instituto Polis, Hamilton Faria que assina a apresentação.

Para tratar do período destacado acabo percorrendo os últimos 20 anos de políticas culturais no Brasil. No primeiro capítulo retomo os oito anos da gestão Gil – Juca no Ministério da Cultura (MinC), onde houve avanços consideráveis como a realização de duas conferências nacionais, o Programa Cultura Viva, o Plano Nacional de Cultura e a proposição do Sistema Nacional de Cultura lançando as bases de uma política cultural de Estado e não de governo como se dizia muito na época.

Aponto, entretanto, que a derrocada da Cultura começou no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Naquele período a direção do MinC foi ocupada por duas pessoas de perfis bem distintos: a cantora Ana de Hollanda e a então senadora Marta Suplicy. Ana não deu seguimento a pujante gestão anterior e deixou que a agenda da Cultura ficasse subordinada à educação e área social. Já Marta, buscou imprimir uma marca. Tirou do papel o Vale Cultura e criou os CEUs da Cultura, além de ter conseguido aprovar emenda constitucional do Sistema Nacional de Cultura, antes de se licenciar do Senado. Outro feito de seu mandato foi a terceira Conferência de Cultura. Sua gestão, porém, foi personalista e não retomou o vigor dos tempos de Gilberto Gil e do Juca Ferreira nos tempos de Lula 1 e 2. Juca voltou a ser ministro no segundo mandato de Dilma, mas pouco conseguiu fazer em 16 meses de atuação numa conjuntura conturbada que levou ao impeachment de presidenta.

Já o presidente Temer tentou por meio do MinC atrair um nome feminino ao seu governo quase todo formado por homens; não conseguiu. Acabou tendo três homens: Marcelo Calero, o mais jovem a chefiar a pasta; o ex-deputado Roberto Freire e o jornalista Sergio de Sá Leitão que havia trabalhado na gestão de Gil, inclusive. De comum, os três tinham o apreço pelo mercado e colocaram no centro da agenda a economia criativa não dando importância ao Plano Nacional de Cultura vigente. E na política tiveram sérios problemas na relação com os artistas e trabalhadores da cultura.

Na época, Calero brigou com o movimento cultural que ocupou sedes da Funarte pelo Brasil; Freire se desentendeu com o escritor Raduan Nassar por ocasião da entrega do Prêmio Camões a este autor de Lavoura Arcaica. Já Leitão, derradeiro dos três, foi também o mais longevo dada a sua inata habilidade política, fato que o levou a ser secretário de cultura de João Dória no estado de São Paulo, quando este foi eleito governador em 2018. O governo Temer acabou por consolidar a descontinuidade iniciada com Dilma e serviu de antessala para a fase de desmonte que viria com Bolsonaro entre 2019 e 2022.

Guerra cultural

Um dos primeiros atos de Bolsonaro foi acabar com o Ministério da Cultura. O órgão, reduzido a uma secretaria, foi primeiro vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social, chefiado pelo então deputado federal gaúcho Osmar Terra e depois transferido para o Ministério do Turismo, onde ficou até o final do governo. Até meados de 2020 passaram pela pasta quatro nomes, sendo que dois deles tiveram destaque, ambos negativamente.

O primeiro foi o dramaturgo Roberto Alvim que é um desses casos de artistas que assumiram posições de direita nos últimos anos. O cara era uma referência de vanguarda no teatro, mas surpreendeu ao assumir o figurino bolsonarista. Alvim foi galgando espaço no governo até que assumiu a Secretaria. Foi demitido depois de veicular um vídeo no qual anuncia um edital embalado por um discurso muito semelhante ao do chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels: “a cultura será nacional ou não será nada! “

O outro nome é muito conhecido e foi inspiração para o título do livro. Trata-se da atriz Regina Duarte, notória reacionária. Ela ficou pouco mais de dois meses no cargo depois de ter feito uma apoteótica cerimônia de posse na qual usou a metáfora do pum do palhaço para explicar como ela via a cultura no Brasil e como pretendia tocar a Secretaria de Cultura. No livro, pondero que Regina foi alvo de conspiração interna, pois a gestão da Secretaria de Cultura estava tomada por olavistas terraplanistas postos ali pelo Roberto Alvim, como o jornalista Sergio Camargo que era diretor da Fundação Palmares. Ela queria manter o perfil de direita, mas pretendia colocar pessoas que entendiam das artes. Foi sendo fritada até que saiu melancolicamente.

Com a chegada de Mario Frias, houve estabilidade na pasta e a política persecutória ganhou ainda mais força. Frias foi ator de programas vespertinos na TV Globo e gozava da simpatia de Bolsonaro e de seus filhos. Fez o serviço que queriam e consolidou a política da guerra cultural com desmonte, aparelhamento, censura e perseguição.

São muitos os feitos malignos de Frias e Bolsonaro. Fiquemos em cinco:

1) Desmonte e aparelhamento das entidades vinculadas: IPHAN, IBRAM, Fundação Palmares, Casa de Rui Barbosa, Cinemateca, Biblioteca Nacional e a Ancine que tem uma dinâmica própria, mas, entrou no mesmo pacote. A Cinemateca foi abandonada e chegou a ter um galpão incendiado; a Funarte foi entregue a militares; a Biblioteca Nacional condecorou o deputado Daniel Silveira; a Fundação Palmares passou a atuar contra os negros e o IPHAN foi entregue a amigos da família Bolsonaro para não impedir, por exemplo, que as obras de uma unidade da loja Havan, de Luciano Hang, fosse embargada por ocupar uma área onde há um sítio arqueológico no Rio Grande do Sul.

2) Controle da Lei Rouanet. Primeiro, Bolsonaro quis acabar com a Lei. Depois se conformou em reformá-la para dificultar a vida dos artistas. Numa terceira fase, resolveu se apropriar dela, estimulando empresários e artistas bolsonaristas a fazer uso do mecanismo de incentivo à cultura. Como CNIC – Comissão Nacional de Incentivo à Cultura foi destituída, a decisão do que seria aprovado pela Lei ficou a cargo do secretário de Incentivo, o ex capitão da PM da Bahia, André Porciúncula.

3) Perseguição e censura. Logo no início do governo, Bolsonaro quis impedir que um filme LGBTQIAP+ tivesse financiamento por meio de edital público. Na mesma época ficou extremamente contrariado com a indicação de Chico Buarque de Hollanda para o Prêmio Camões que acabou só sendo dado ao escritor e cantor por Lula, em 2023. Esses foram somente dois casos de repercussão, mas a sanha persecutória foi a tônica que animou a guerra cultural durante os quatro anos e segue ativa.

4) Frias e Bolsonaro boicotaram a Lei Aldir Blanc de apoio emergencial ao setor da Cultura formulada pelo Congresso Nacional em 2020 e implantada em 2021. Fizeram o mesmo com a Lei Paulo Gustavo também emergencial e a Lei Aldir Blanc II que é estruturante e de prazo mais largo (5 anos). Essas duas últimas só foram implementadas na gestão da Margareth Menezes em 2023 já com o Ministério reerguido.

5) Não convocou a Conferência Nacional de Cultura que teria de renovar o Plano Nacional de Cultura que venceu em 2020 e virou letra morta. O Plano foi postergado por duas vezes e sua vigência acaba em 2024 cabendo ao atual governo reformulá-lo por meio do processo de conferências que já está em curso nos municípios e estados.

Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro

Feito o balanço do período Temer-Bolsonaro, o autor encerra o livro com um capítulo no qual destaca a agenda do atual governo que, ironicamente, foi beneficiado pelo governo anterior. Isso ocorre porque, ao postergar a Lei Paulo Gustavo e Aldir Blanc II, o Ministério da Cultura começa sua gestão com R$ 6,8 bilhões em caixa, uma cifra muito relevante para o setor. Além disso, a Lei Aldir Blanc possibilitou a efetivação, finalmente, do Sistema Nacional de Cultura materializado na PNAB – Política Nacional Aldir Blanc. Até o dia 11 de dezembro, 97% dos municípios e todos os estados haviam aderido à PNAB e receberão recursos para implementarem seus projetos.

Foi positivo também que o governo anterior não tenha convocado a Conferência de Cultura. Assim, ela será feita num clima de gestão democrática. E, junto com o PNC o governo poderá atualizar o Plano Nacional do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca PNLLLB, já sob a égide da Lei Nacional de Leitura e Escrita que foi promulgada em 2018, mais de 10 anos depois de o PNLLLB ter sido feito (2006).

O governo atual também tem a chance de retomar o Programa Cultura Viva que são os Pontos de Cultura. Editais já foram lançados e espera-se que a partir de 2024 o Programa se expanda com os recursos da PNAB. Destaco, por fim, o Programa Nacional dos Comitês de Cultura que colocará cerca de mil agentes territoriais de cultura em campo para ajudar as políticas chegarem na ponta articulando as ações federais, estaduais e municipais e outras demandas locais.

Termino o livro com uma mensagem de esperança para os novos tempos. Espero que o verso da canção de Belchior “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, não seja mais um bordão da resistência. Nos tempos atuais, cabe mais o verso da canção de Milton Nascimento: “nada será como antes, amanhã”.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *