Uruguai: A Frente Ampla se reergue

Após profunda crise, esquerda é a favorita para vencer as eleições deste ano. Para isso, voltou às bases, renovou suas lideranças e elaborou plataforma participativa. Mas pleito será disputadíssimo – e ultradireita tem a máquina do Estado a seu favor

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Por Verónica Pérez Bentancur, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues

Em 2024 serão realizadas eleições no Uruguai para eleger presidente e parlamentares. Em junho serão as eleições primárias onde os partidos políticos escolherão os seus candidatos à Presidência. Já as eleições nacionais serão no último domingo de outubro e, se nenhum candidato atingir a maioria absoluta, haverá um segundo turno em novembro. Hoje, apenas dois partidos têm a possibilidade de vencer: o Partido Nacional, hoje no poder (que, atualmente, lidera uma coligação de centro-direita presidida por Luis Lacalle Pou) e a Frente Ampla (FA), um partido de centro-esquerda que governou o país durante três mandatos consecutivos (2005-2020) durante a chamada “virada progressiva”.

Embora as eleições sejam acirradas, a FA é favorita em todas as pesquisas. Depois de perder as eleições em 2019, esta força peculiar, capaz de articular quase toda a esquerda uruguaia, recuperou-se da derrota: iniciou um processo de autocrítica, ampliou sua estrutura de base e promoveu uma renovação de lideranças, mantendo a unidade. Este processo cristalizou-se na elaboração do seu recente Congresso Extraordinário Tabaré Vázquez, no qual foi aprovado o seu programa de governo para o próximo período, construído, como em outras ocasiões, de forma verdadeiramente participativa e em estreitos laços com os atores sociais. Numa região em que as forças políticas de esquerda se mostram dependentes da figura dos seus líderes (Brasil), estão fragmentadas e têm dificuldades de mediar e canalizar as demandas da sociedade (Chile), ou vivem fraturas internas (Bolívia), a FA aparece como um partido de esquerda resiliente.

A derrota de 2019 foi um duro golpe para o partido fundado em 1971. A FA passou para a oposição após 15 anos de governo ininterrupto e a maior perda de votos da sua história (oito pontos percentuais em relação às eleições anteriores). Além disso, enfrentaria um governo altamente popular: o presidente Luis Lacalle Pou teve índices de aprovação muito elevados para sua gestão desde o início do seu mandato em 2020. Diante deste cenário, alguns previram uma erosão da estrutura da frente-amplista, o que, no entanto, estava longe de acontecer.

Em outubro de 2020, a FA decidiu juntar-se às organizações sociais que promoviam uma campanha para recolher assinaturas para a revogação via referendo do que consideravam as partes mais regressivas da Lei de Urgente Consideração (LUC), uma lei omnibus (muito extensa e multitemáticas) que o presidente Lacalle conseguiu aprovar durante os primeiros meses de seu governo. A LUC continha vários artigos regressivos, incluindo aqueles que se referiam a questões de “mão de ferro” (penas aumentadas e discricionariedade policial) ou aqueles que procuravam limitar o direito de protestar.

A FA colocou toda a sua estrutura para trabalhar na campanha pelo referendo. Embora a opção “sim” à revogação proposta pela FA e pelas organizações sociais (a principal delas foi a Plenária Intersindical dos Trabalhadores-Convenção Nacional dos Trabalhadores, a PIT-CNT, central única única dos trabalhadores) tenha perdido, a diferença com o “não” que promovia o governo Lacalle Pou foi muito pequena (2,7 pontos percentuais). Diante de um governo com altos índices de popularidade, o resultado do referendo foi lido por muitos como um sinal de vitalidade da estrutura da Frente Amplista . A FA mostrou que era o agente político capaz de articular o descontentamento com o governo de uma parte da sociedade e que poderia ser uma ameaça à direita no poder.

Também em 2020, e como consequência da derrota eleitoral, a esquerda iniciou um processo de autocrítica. Os motivos do revés eleitoral foram discutidos ao longo de sua complexa estrutura. O processo culminou em 2021 com a aprovação de um documento em seu Congresso ordinário, órgão máximo do partido e instância composta basicamente por militantes de base. O documento destacou que a FA quando estava no governo promoveu grandes transformações, mas também apontou que se distanciou da sociedade. Procurando responder ao processo de autocrítica, em 2022 a FA implementou dois tipos de ações. Em primeiro lugar, elaborou um plano de desenvolvimento organizacional com o qual pretendia expandir a sua estrutura de comitês de base – áreas territoriais de militância – para territórios onde a FA tinha pouca presença; em essência, o plano buscava criar comitês de base em alguns lugares do interior e em alguns bairros da periferia de Montevidéu. Em segundo lugar, delegados da estrutura partidária e sua direção realizaram diversas reuniões por todo o país, no que ficou conhecido como “A FA te escuta”. Esta iniciativa teve como objetivo levantar demandas de diversos atores da sociedade. No âmbito do “A FA te escuta”, foram realizadas 38 excursões por todo o país, visitadas 303 localidades e realizados mais de 1.400 encontros com diversos grupos e organizações sociais (sindicatos, cooperativas, associações rurais e profissionais, cozinhas populares, grupos de mulheres e dissidentes sexuais, grupos ambientalistas, associações de bairro, etc.).

Paralelamente ao desenvolvimento das atividades da “A FA te escuta” e à ampliação da estrutura de base, em 2022 também começaram as atividades preparatórias do congresso programático da FA (VIII Congresso Extraordinário Tabaré Vázquez), que foi realizado nos dias 9 e 10 dezembro de 2023. Neste âmbito foram aprovados o programa das eleições de 2024 e os candidatos que concorrerão às eleições primárias desse ano.

O Congresso é o órgão mais importante da FA. Em função dos estatutos do partido, o Congresso define as suas posições ideológicas e programáticas e, desde a reforma constitucional de 1996, que estabeleceu eleições primárias obrigatórias para todos os partidos, o Congresso autoriza candidatos presidenciais que competem nas primárias. O Congresso é presidido pelo Plenário Nacional (órgão máximo diretivo), mas é composto principalmente por delegados de comissões de base. É convocado a cada 30 meses, embora ocasionalmente o Plenário Nacional possa convocar um congresso extraordinário para tratar de um assunto importante como, neste caso, o programa.

A construção do programa FA no âmbito do Congresso é um exercício de democracia deliberativa. A sua preparação inicia-se com as atividades coordenadas pela Comissão Nacional do Programa, órgão dependente da Mesa Política da FA (órgão executivo do partido). A Comissão é composta por militantes de base e representantes das múltiplas facções do partido. Por sua vez, esta comissão delega o seu trabalho em unidades (comissões) temáticas, cuja finalidade é preparar os documentos programáticos que o Congresso irá discutir e votar. Tal como o resto da estrutura partidária, as unidades temáticas também são constituídas por militantes de base e facções da FA.

Para preparar o programa eleitoral de 2024 trabalharam 32 unidades temáticas que se reuniram durante 2022 e os primeiros meses de 2023. Cada unidade temática gerou um relatório que foi submetido à Comissão Nacional do Programa. A partir deles, a Comissão Nacional do Programa elaborou um documento-resumo que continha 80 páginas organizadas em sete capítulos. Este documento foi aprovado pelo Plenário Nacional da FA no dia 15 de julho de 2023 e, a partir daí, foi discutido nas comissões de base e dentro das facções partidárias, que tinham até outubro para enviar as propostas de modificações que seriam tratadas no Congresso de dezembro. Como resultado desse trabalho, o Congresso recebeu mais de 2.200 modificações no documento original.

No primeiro dia de trabalhos o Congresso reuniu-se em oito comissões e, no segundo dia, foi realizada a reunião plenária. Participaram 2.100 delegados (quase 600 a mais que o Congresso programático anterior, realizado em 2019). O Congresso trabalhou com base nas propostas de modificações recebidas. Caso conseguissem o apoio de dois terços dos presentes nas comissões, iam ao plenário e eram aprovados. Aqueles que não alcançaram dois terços nas comissões, mas tiveram o apoio de 20% dos presentes nelas, também foram ao plenário do Congresso, onde tiveram que conseguir o apoio de dois terços dos congressistas presentes .

Num partido orgânico de massas como a FA, esta instância é central, uma vez que o programa desenvolvido pelo Congresso normalmente funciona como uma âncora, orientando as ações dos líderes e do partido, tanto no governo como na oposição. Além disso, dado que muitos dos militantes que participam no desenvolvimento programático são também militantes de organizações sociais, o programa da FA costuma refletir algumas das reivindicações mais relevantes destes atores, que constituem o principal núcleo de apoio do partido, em particular o movimento sindical, mas também organizações de direitos humanos, o movimento pela diversidade sexual e o movimento feminista. Neste sentido, esta forma de elaboração programática garante porosidade para a influência dos movimentos sociais. Quando a FA estava no governo, o seu programa era a base da extensa legislação trabalhista que incluía muitas das demandas do PIT-CNT. Da mesma forma, o programa da FA tem refletido as reivindicações de grupos com pouco poder de mobilização, mas ligados à estrutura da FA através da dupla militância de alguns dos seus membros. O melhor exemplo é a Lei Integral Trans, uma lei avançada no mundo, aprovada durante o segundo governo de Tabaré Vázquez e cujas sementes estavam no programa eleitoral de 2014.

Esta marca no desenvolvimento programático não é isenta de tensões. Num partido que tem aspirações de governar, a discussão programática enfrenta sempre o debate sobre o risco eleitoral das propostas. Este debate esteve presente no Congresso de 2023 em que, por exemplo, caiu no esquecimento a ideia de criação de um Ministério da Igualdade, proposta da unidade temática encarregada de discutir questões de igualdade de gênero. Embora esta proposta tenha tido muitos apoiadores dentro da FA, sobretudo das mulheres, alguns consideraram que a ideia de criar novos ministérios era “descabida” em um momento em que o que estava em jogo era retirar a direita do governo. No entanto, foi incluída a proposta de criação de um Ministério da Justiça. Por uma lógica pragmática, outras vezes as propostas que aparecem no programa da FA não são explícitas. Exemplo disso é a forma como surgem propostas que procuram substituir legislação revogada pela LUC. Neste sentido, o programa aprovado no último Congresso aponta, por exemplo, a “necessidade de restabelecer” a participação dos delegados docentes nos órgãos dirigentes da educação. Esta proposta reflete uma exigência dos sindicatos de professores afetados pela sua participação na concepção das políticas educativas do governo Lacalle Pou. No entanto, o programa da FA não fala em revogar a LUC, em parte também porque houve um referendo em que foi aprovada.

Este processo deliberativo e democrático de desenvolvimento de programas também não deixa de lado os aspectos técnicos. De fato, nas unidades temáticas participam muitos técnicos, bem como pessoas que têm conhecimento do Estado por terem ocupado cargos em governos nacionais ou departamentais. Contudo, a característica distintiva da elaboração programática na FA é que o processo é eminentemente político, o que o torna amplamente legítimo para as amplas bases do partido. Terminado o Congresso e definidos os candidatos, prepara-se uma plataforma programática mais sintética para ser divulgada na sociedade. Da mesma forma, o candidato eleito nas eleições primárias pode dar uma marca própria ao programa, obviamente com base no que foi aprovado pelo Congresso partidário.

O Congresso recentemente realizado não foi importante apenas para a aprovação do programa, mas também para viabilizar os candidatos presidenciais que disputarão as eleições primárias de 2024. Isso ocorreu em um cenário diferente dos anteriores, sem suas principais referências políticas: Tabaré Vázquez (duas vezes presidente) e Danilo Astori (ministro da Economia e vice-presidente) morreram em 2021 e 2023 respectivamente, enquanto o ex-presidente José “Pepe” Mujica abandonou a possibilidade de ser eleito para qualquer cargo devido à sua idade avançada. Porém, apesar da ausência dos seus dirigentes históricos, nos últimos anos a FA processou uma renovação de lideranças que se cristalizou nas candidaturas aprovadas pelo Congresso. Nesse sentido, os candidatos que disputarão as eleições primárias serão quatro: Yamandú Orsi (prefeito de Canelones), Carolina Cosse (prefeita de Montevidéu), Andrés Lima (prefeito de Salto) e Mario Bergara (senador e ex-presidente do Banco Central ). Destes, o primeiro e o último são vistos como opções moderadas, embora a competição se centre em Orsi e Cosse. Embora Yamandú Orsi comece com vantagem, ainda falta tempo.

Nas últimas sondagens, a FA surge como favorita, à frente de todos os partidos da coligação de direita somados. Isso não significa, porém, que o caminho esteja pavimentado. Embora alguns recentes atos de corrupção tenham impactado a imagem do governo de Lacalle Pou, a FA irá competir contra máquinas poderosas. Em particular, o seu principal concorrente, o Partido Nacional, é uma estrutura sólida, que atualmente também tem a vantagem de dominar o Estado e a maioria dos governos departamentais. Tudo corrobora para um cenário altamente competitivo, mas em que a esquerda se entusiasma para regressar ao governo.

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