A potente imaginação política do Teatro Legislativo

Anos 90: eleito vereador do Rio, Augusto Boal coletiviza seu mandato. Pelo teatro, cria canais de escuta e participação, levando a Câmara às periferias. Via a política como a maior das artes e queria romper abismos entre gabinete e população

Augusto Boal posa em seu gabinete na Câmara Municipal do Rio de Janeiro durante o mandato de vereador. Imagem: Instituto Augusto Boal
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Uma experiência política que aconteceu na Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro nos anos noventa pode inspirar legisladores e legisladoras de esquerda que queiram construir um mandato verdadeiramente popular e, ao mesmo tempo, possibilitar que as suas bases compreendam os processos burocráticos que dificultam os avanços desejados. O Teatro Legislativo, criado por Augusto Boal durante o seu mandato como vereador e que faz parte do conjunto de técnicas do Teatro do Oprimido, pode servir como uma quilha para abrir caminhos no mar político brasileiro cada vez mais conservador. Obviamente os tempos são outros e são necessárias adaptações, mas as necessidades socioeconômicas gritantes e as ameaças à democracia que estamos a assistir em nosso país exigem ousadia e criatividade de quem quer trazer mudanças. É exatamente isso que o Teatro Legislativo pode oferecer para o momento atual.

Um convite de Darcy Ribeiro, à época vice-governador do Rio de Janeiro, trouxe Boal de volta ao Brasil para trabalhar com a formação de educadoras e educadores daquele estado. A formação para multiplicadores nas técnicas do Teatro do Oprimido (TO) aconteceu através do Projeto Fábrica de Teatro Popular nos Centros Integrados de Ensino Público (CIEPs). A derrota de Darcy para suceder a Leonel Brizola como governador forçou uma mudança nos planos para a continuidade do projeto. Pensando em deixar o Brasil e encerrar as atividades do Centro do Teatro do Oprimido, Boal decidiu oferecer apoio ao Partido dos Trabalhadores com atividades teatrais nas eleições de 1992 como última ação concreta daquele Centro. A ajuda ao partido foi aceita, mas em troca veio o pedido para que Boal fosse candidato a vereador por aquele partido, o qual aceitou. O resultado inesperado foi a sua vitória para a casa legislativa daquele município, onde assumiu um mandato entre os anos de 1993 e 19961. A inserção de Boal, um homem completamente dedicado ao teatro, no mundo político-partidário não deve causar estranheza. Ele sempre afirmou em suas teorias e com a sua prática teatral que toda arte é política e que a política é a maior de todas as artes, pois influencia todos os aspectos das nossas vidas. Mark Dinneen (2014) afirma que Boal percebeu que muitas opressões enfrentadas pelos participantes nas oficinas do TO tinham sua gênese em leis que necessitavam ser modificadas. O seu mandato foi uma tentativa de criar leis que fossem direcionadas aos grupos oprimidos no município carioca. Como ele mesmo disse, passaria do teatro político para o “teatro como política”.

Para não cair na velha armadilha do afastamento entre o parlamentar e quem o elegeu, Boal traçou uma estratégia que funcionou como um canal direto de comunicação entre o seu gabinete parlamentar e as comunidades cariocas. Foi criado o que ele chamou de ELO e Núcleos. Em seu livro Teatro Legislativo: versão Beta (1996 p. 66), ele explica que “Um ELO é um conjunto de pessoas da mesma comunidade que se comunica periodicamente com o Mandato, expondo suas opiniões, desejos e necessidades.” Já, “Um Núcleo é um elo que se constitui em grupos do Teatro do Oprimido e, ativamente, colabora com o Mandato de forma mais frequente e sistemática.” Essa via de mão dupla possibilitou um fluxo constante de informações e diálogo, ajudando a partilhar as dificuldades e os desafios encontrados nos territórios e grupos oprimidos, como também na direção contrária por parte do Gabinete de Boal que sofreu muitas retaliações vindas de vereadores de direita. As apresentações do Teatro Legislativo aconteciam em uma Sessão Solene Simbólica, onde o ritual legislativo era levado para as comunidades para que dele se apropriassem. A ideia era que o público presente às apresentações também se reconhecesse como representante do seu território nas discussões após as encenações.

O gabinete do vereador Boal, chamado de Mandato Político-Teatral Augusto Boal, era composto por um grupo de 25 pessoas dividido em 5 grupos entre artistas e técnicos, com uma pessoa coordenando cada uma das equipes, e tinha como uma das tarefas criar grupos de Teatro do Oprimido pelos bairros da periferia carioca. O passo inicial era criar núcleos nos bairros e identificar os problemas para, a partir daí criar as encenações que seriam apresentadas nas próprias comunidades e em outros bairros. Geo Britto (2015, p. 120), conta que este trabalho não estava limitado aos espaços geográficos da periferia. “Os ‘Núcleos Temáticos’ não tinham necessariamente uma vinculação a um território específico, mas aconteciam mobilizados por um tema particular, como saúde mental, terceira idade, racismo, educação, gênero, portadores de deficiência, trabalho, meio-ambiente, reforma agrária, etc.” Grupos GLBTQIA+ também utilizaram o TO para discutir os seus problemas e contaram com o apoio da equipe. A criação de dezenas de grupos de TO naquela capital possibilitou a origem de redes de solidariedade e trocas de informações entre eles sobre a similaridade dos problemas e as possíveis soluções encontradas. As ações eram intensificadas com “As reuniões públicas em distintas localizações da cidade, chamadas de A Câmara na Praça e a Mala Direta Interativa” (DINNEN, 2014). A ideia era levar a Câmara dos Vereadores para fora da sua sede, sempre tão distante do povo que deve representar. Para o Projeto Câmara na Praça, vereadores do mesmo espectro político e ideológico eram convidados para participar de uma sessão parlamentar na rua. Também eram feitas apresentações teatrais ao ar livre e o público era convidado para escrever os seus desejos em um papel exposto para tal fim.

O Teatro Legislativo é um avanço em relação ao Teatro Fórum2, que faz apresentações onde o expectador, chamado por Boal de expectator, pode fazer uma intervenção na encenação substituindo o personagem oprimido e buscar uma solução para o problema apresentado. Com esta nova técnica, os espectatores atuam na encenação sugerindo propostas para o legislativo e expõem os desejos para a comunidade onde vivem ou os grupos oprimidos aos quais pertencem. O espectator não apenas ocupa o palco para ensaiar a mudança, ele é convidado a propor uma mudança que pode se concretizar em forma de lei.

Caricatura de Augusto Boal feita por ocasião da campanha eleitoral para vereador do Rio de Janeiro. Imagem: Instituto Augusto Boal

Várias propostas de lei que foram sugeridas por moradores que assistiam aos espetáculos e faziam intervenções propondo soluções foram levadas para a apreciação do corpo técnico do Gabinete de Boal para serem avaliadas antes da apresentação como um Projeto de Lei (PL), já que algumas delas não eram viáveis ou até já existiam em forma de leis que eram desconhecidas pela população. Após ser apresentada na Câmara do Rio de Janeiro, o andamento do PL era acompanhado por um grupo de pessoas formado por representantes da comunidade, do Gabinete e por outras pessoas que podiam colaborar com as questões técnico-jurídicas. Esses representantes das comunidades e dos grupos temáticos transmitiam as informações sobre a tramitação dos projetos na Câmara para os seus pares, criando um canal direto mais confiável entre o Gabinete e as bases.

Durante o seu mandato, Boal conseguiu apresentar 33 Projetos de Lei, tendo 13 destes PLs aprovados na casa legislativa daquele município. Entre eles está a primeira Lei de Proteção às Testemunhas de Crimes no Brasil (BOAL, 2000) que viria, anos mais tarde, a inspirar a Lei Federal 9.807/99, conhecida com PROVITA. Obviamente que criar uma lei não resolve a situação de opressão, mas um marco legal possibilita abrir fissuras que deixam espaços para os grupos oprimidos fortalecerem as lutas. O sucesso do Teatro Legislativo não pode ser medido apenas pelo número de leis que foram aprovadas, mas também pelo processo de participação que fez as comunidades e grupos de pessoas oprimidas refletirem sobre os seus problemas e buscarem soluções coletivas.

Embora não tenha sido reeleito para um segundo mandato como vereador, esta experiência mostrou que é possível utilizar o teatro como mecanismo de diálogo com a população na busca por uma cidadania plena. Atualmente ela é muito utilizada em várias partes do mundo como na Índia, França, Alemanha, Estados Unidos e em algumas cidades brasileiras.

O Teatro Legislativo não é apenas o teatro da cidadania, ele é o teatro da cidade que busca se humanizar, criando uma dramaturgia própria para cada território e fazendo com que os seus participantes repensem o lugar onde habitam e estreitem os laços comunitários esgarçados pelas mais diferentes formas de violência presentes em seus espaços físicos e identitários. O diálogo desenvolvido para mudar a realidade opressora e o desejo por superá-la coletivamente costura novas relações nos territórios e nos grupos invisibilizados. O mais importante é que a política volta a ser apropriada de forma coletiva como um instrumento para criar “um outro mundo possível”.

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Bibliografia:

BOAL. Augusto. Teatro Legislativo: Versão Beta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1996.

_______. Aqui ninguém e burro. Rio de janeiro: Editora Revan. 1996.

_______. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record. 2000.

BRITO, Geo. Teatro Popular no Brasil. In Augusto Boal: atos de um percurso; Centro Cultural Banco do Brasil. 2015. p. 118-122.
Disponível em https://pdfslide.tips/documents/augusto-boal-catalogo-ccbb-2015.html

DINNEEN, Mark. Teatro Legislativo: estimulando a cidadania ativa. CHESNEY-LAWRENCE, Luis; DINNEEN, Mark. Augusto Boal revisitado. Revista de Estudios Culturales Teatr@, Nº26, 2ª Edicion. 2014. p. 241-280. Disponível em http://saber.ucv.ve/bitstream/10872/19232/1/18%20UCV%2014%2002%2031%20A%20BOAL%20%20REVISITADO%20VER%202%20FAY.pdf

SILVA, Flávio José Rocha da. Uma história do Teatro do Oprimido. In Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.7, n.19, fev.-mai. 2014. pp. 23-38. Acessível em file:///C:/Users/Fl%C3%A1vio%20Rocha/Downloads/17313-Texto%20do%20artigo-48141-1-10-20140411.pdf

1 O livro Aqui ninguém e burro (BOAL, 1996), é uma compilação dos discursos que Augusto Boal fez na Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro durante o seu mandato.

2 Para conhecer o Teatro Fórum, os livros de Augusto Boal são essenciais. Um resumo pode ser lido no artigo Uma história do Teatro do Oprimido, acessível em file:///C:/Users/Fl%C3%A1vio%20Rocha/Downloads/17313-Texto%20do%20artigo-48141-1-10-20140411.pdf

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Um comentario para "A potente imaginação política do Teatro Legislativo"

  1. José Mario Ferraz disse:

    Tirar o povo do ostracismo político e trazê-lo para o cerne do debate sobre solução de seus problemas. Esta é a chave do sucesso político. Do jeito que está, o povo é o único jeito de direitos na condição de sujeito de deveres. Esse negócio de orçamento secreto, cartões corporativos, emendas e assessoria parlamentares, auxílios disso e daquilo, tudo isso é malandragem monumental que só ocorre em função da falta de interesse dos donos dinheiro a quem é negado o direito de saber o que está sendo feito dele. Daí a necessidade que tem a juventude de superar o malefício da influência alienante do pão e circo e o conformismo da religião e se dedicar de unhas e dentes ao interesse pela política porque é dela que depende o futuro de seus descendentes e nunca da proteção divina porque os representantes de deus buscam proteção no hospital, em homens armados e carros blindados.

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