O Brasil da banalização da intolerância

Ela é sinal de narcisismo, apontou Freud. O indivíduo despreza a diversidade e só aceita a própria imagem. Encontra terreno fértil nas redes sociais. É arma política do “capitão”. Mas há elixir: educação emancipadora e vida coletiva

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Em meio a escalada de violência verificada na sociedade brasileira nos últimos anos, se faz necessário discutirmos a natureza histórica dessa intolerância bem como as diversas instâncias sociais nas quais elas se apresentam. Quem são os devidos responsáveis e quais ferramentas utilizadas para estimular esses atos violentos? Somente respondendo a essa questão a sociedade civil conseguirá se organizar e defender a manutenção de um estado democrático de direito, cada dia mais excepcional neste país. A marca violenta que o processo histórico colonial registrou no tecido social brasileiro é notória. Ao longo deste território, a violência foi constantemente utilizada como ferramenta política, não somente pelo permanente extermínio dos diversos povos originários, pelas insuperáveis mazelas geradas pela escravidão, mas principalmente pelo empoderamento econômico de uma pequena elite conservadora que até os dias de hoje se constitui a maior força política nacional e segue reproduzindo seus antigos métodos de coação e opressão das maiorias inferiorizadas. Compreendido esses fatores, podemos dizer que esse misto de concentração de riqueza e poder, somado com a normalização e banalização da violência sobre os corpos de seu povo, fizeram do Brasil uma terra onde a exceção tornou-se uma regra constitucionalmente aceita, desde a escravidão até a informalidade do trabalho já normatizada. Foi dessa forma que chegamos até aqui. Em poucos períodos da história foi possível que nos remendássemos, em tantos outros, e tornamos a abrir feridas.

A prática da intolerância neste país é cultural, foi inserida pela elite colonizadora e imposta como comportamento social de “cima para baixo”, sendo reproduzida inclusive pelo próprio povo oprimido, que, por não ter acesso a uma educação emancipadora, repete com seus iguais as práticas inseridas por essa elite opressora. Até aqui, nada de diferente do que sempre soubemos. Porém, a tragédia que agora se vê parece ter um novo padrão, ao assumir uma forma menos velada que aquela verificada historicamente e escondida pela suposta “democracia racial”. A intolerância praticada no Brasil de hoje atinge níveis alarmantes ao passo que é cada vez mais escancarada, aceita e incentivada, inclusive por diversos representantes políticos que ocupam os principais cargos políticos da sociedade. Veja-se, por exemplo o comportamento conflituoso e a linguagem bélica utilizada pelo atual presidente da República, seus ministros e seguidores políticos, principalmente utilizando-se de redes sociais e de espaços políticos privilegiados. Esse fato diz muito sobre como estamos construindo nossa sociedade, sobre a função das mídias sociais e, principalmente, sobre a importância de eleger representantes políticos que não promovam nem incentivem esse discurso de ódio entre diferentes segmentos da população. A necessidade de administrar o dissenso e respeitar as divergências de opiniões é urgente; por esse motivo, precisamos aprender um pouco mais sobre a intolerância e suas implicações na sociedade brasileira atual.

De onde vem a Intolerância?

Recorrendo ao mais simples dos dicionários saberemos que a palavra intolerância se deriva do termo tolerar, que por sua vez significa suportar ou aceitar uma determinada situação. Portanto, a intolerância pode ser definida como a incapacidade de aceitação de um posicionamento contrário, seja de natureza pessoal, política, religiosa ou comportamental. Sendo assim, pode-se dizer que a intolerância se caracteriza pela incapacidade de aceitação das diferenças de tal forma que toda diversidade é negada, reprimida ou até mesmo eliminada.

Em geral, o intolerante é intransigente com o comportamento que destoa daquilo que considera aceitável e, ao padronizar um comportamento de acordo com as suas preferências individuais, restringe a pluralidade e a liberdade dos demais indivíduos da sociedade. Com base nessa padronização comportamental, justifica-se ações de caráter discriminatório que se apresentam em diversas formas de intolerância social, tais como o racismo, sexismo, machismo, misoginia, antissemitismo, homofobia, xenofobia assim com a própria intolerância religiosa, cultural e política.

A intolerância pode se apresentar em diversas situações cotidianas nas quais as opiniões divergentes ou qualquer tipo de manifestação contrária seja suprimida ou silenciada. Enquanto a tolerância aceita a discordância respeitosa e a existência de possibilidades para o contraditório, a intolerância é a negação ou restrição dos espaços de discussão e representatividade.

Dentre as diversas formas de intolerância podemos também definir a intolerância religiosa como a não aceitação do direito de cada indivíduo de praticar livremente sua crença, ou até mesmo, de não pertencer a nenhum tipo de doutrina religiosa como é o caso de ateus e agnósticos. No caso brasileiro, essa intolerância também é histórica, porém, atualmente, atos de violências tem sido cada vez mais frequente contra centros de umbanda, terreiros de candomblé e tantos outros espaços que pratiquem as mais diversas manifestações religiosas de origem afro-brasileira. Logo onde reside, existe e resiste uma das principais manifestações da diversidade cultural brasileira é justamente onde também ocorrem atos de violência por parte daqueles que não toleram a diferença e só aceitam os seus iguais.

Conforme apresentado por Sigmund Freud, através do conceito que ele denominou de narcisismo das pequenas diferenças, é possível relacionar o comportamento intolerante com o mito narcisista, no sentido da busca e aceitação exclusiva de si próprio ou de sua própria imagem. Dessa forma, tudo que se diferencia de si mesmo torna-se uma ameaça. Por esse motivo, o intolerante considera a diversidade perturbadora, reagindo e desejando, por vezes, o extermínio das ideias, opiniões, culturas e indivíduos dos quais se diferencia. É possível citar diversos momentos na história quando a intolerância foi justificada por diferenças biológicas, como é o caso da escravidão e do nazismo, quando foram atribuídos características de superioridade racial a determinados indivíduos e eliminados aqueles cujas diferenças se davam através da religião, sexo ou etnia.

A intolerância e o cenário político nacional

No atual momento da história brasileira tem se intensificado também a prática de intolerância política, caracterizada como ação de negação ou restrição de manifestações políticas divergentes. Neste cenário, a escalada de violência é preocupante e não deve ser explicada pela existência de uma suposta polarização político-partidária, justamente pelo fato de que posições antagônicas e divergentes são comumente apresentadas em todo embate político e nem por isso desencadeiam ações violentas tais como estão ocorrendo recentemente. Ainda que existam projetos político-partidários bastante diferentes sendo apresentados no atual pleito eleitoral, o que explica a escalada de violência no Brasil é a prática da intolerância política executada exclusivamente por um determinado grupo político ligado a extrema direita brasileira, que responde aos seus opositores de maneira raivosa e violenta. Nota-se a evidente incapacidade de promover um diálogo civilizado, justamente porque o intolerante é incapaz de lidar com a diferença e com o contraditório. Nesse sentido, podemos dizer que o intolerante é duplamente incapaz, primeiro por sua limitação na prática do diálogo e segundo por não conseguir se reconhecer e superar essa condição. A violência surge então como forma de projetar no outro a dor de suas próprias incapacidades, ainda que inconscientes.

A existência deste comportamento não é uma exclusividade nacional, nem mesmo fruto de situações históricas da atualidade, ainda assim, o agravante no cenário brasileiro é que esse comportamento tem sido reproduzido e incentivado por políticos que ocupam atualmente importantes cargos do poder executivo nacional. Abre-se aqui uma janela de violências que tem sido canalizada pela extrema direita brasileira e utilizada como ferramenta política para dividir e ampliar o conflito social com o objetivo de justificar medidas de exceção e intervenção autoritária no país. Como consequência, o que temos é uma combinação de fatores bastante perigosos que colocam o país à beira de um conflito social e do autoritarismo político. Quando o próprio presidente da República estimula o conflito em uma sociedade marcada pela banalização da intolerância, justamente em um cenário de crise econômica e impulsos afetivos evidentes, resulta na elevação dos indicadores de violência política e intolerância social de maneira escancarada.

Esse padrão de violência tem aumentado em diversas instâncias sociais, desde a disputa político-partidária que deixa de ser plenamente democrática para ganhar traços intolerantes e autoritários, como verificado nos discursos agressivos do presidente Jair Bolsonaro ao se referir aos seus opositores como inimigos (sic) que devem ser eliminados (sic), até as mais simples relações sociais entre a população em geral, inclusive na esfera virtual. É neste cenário que as redes sociais e mídias digitais exercem importante função nesse processo de elevação da intolerância social. Dentre os diversos aspectos a serem considerados neste caso, vale ressaltar que as redes sociais estão sendo utilizadas como a principal ferramenta para repercutir o discurso de ódio apresentado por políticos e grupos de extrema direita no Brasil e, com isso, acabam impulsionando e replicando informações falsas que potencializam o conflito social e promovem a intolerância entre indivíduos de mesma origem social, ou seja, a manipulação das informações através das redes sociais geram divergência e polarização entre a própria população em geral, desencadeando um conflito político do qual quem se beneficia é a própria elite política conservadora, cada vez menos democrática e tolerante.

Na realidade, mais uma vez se reproduz a velha prática de intolerância, inserida e promovida por parte da elite política nacional, chegando até os setores mais populares da sociedade que permanecem em conflito, ao passo que são os verdadeiros prejudicados dessa lógica histórica opressora. Mais do que isso, é com base nessa manipulação e divulgação de informações falsas que se sustenta um projeto político de rompimento democrático no Brasil por parte da extrema direita nacional. O que se vê é uma permanente tentativa de desacreditar o processo político e as instituições nacionais de modo que parte da população rejeite o resultado das urnas caso esse resultado seja diferente daquilo que a extrema direita deseja. Neste caso, vale perguntar: em um país onde o respeito a regra é relativo, o que nos faz crer que o resultado das urnas será aceito e tolerado por aqueles que promovem a intolerância? Fica a dúvida que ameaça a democracia brasileira e para a qual devemos estar atentos.

Por fim, outro elemento que contribui para este cenário é o avanço da sociedade moderna e do comportamento promovido pelas redes sociais, o que leva a uma demasiada valorização da individualidade em contraposição aos valores coletivos de tal modo que os desejos individuais são preferíveis em relação às escolhas coletivas. Como consequência, a intolerância também avança por dois motivos principais. Primeiro por estimular o comportamento narcisista, uma vez que as famosas “bolhas virtuais” nos apresenta somente aquilo que nos assemelha e distancia tudo aquilo dos quais divergimos, fazendo com que não tenhamos que lidar com a diferença e toda divergência pode ser imediatamente “cancelada”. Segundo porque promove a padronização dos hábitos e costumes na sociedade de tal modo que se uniformizam os padrões de consumo e o comportamento social, impactando inclusive na formação das identidades e da aceitação das diversidades. Por consequência, os valores coletivos das demais culturas tradicionais, que possuem uma significativa riqueza de diversidades, continuam silenciadas e não são aceitas integralmente na sociedade atual, sofrendo constantes ataques por parte de quem não tolera a diferença. Justamente por não tolerar a existência de comunidades tradicionais que se diferem tanto do padrão reconhecido como moderno, que atos de violência contra os povos originários e seus defensores estão se elevando consideravelmente nos últimos anos, inclusive sob a tutela de instituições e órgãos públicos que deveriam oferecer proteção, como é o caso da Funai e Ministério do Meio Ambiente.

No mais, ao passo que as práticas intolerantes negam a possibilidade do convívio com as diferenças, evidencia-se que a aceitação da diversidade é fundamental para manutenção da existência humana de tal modo que a prática da tolerância democrática deve prevalecer para permitir a livre manifestação das potencialidades humanas e das diversas riquezas contida nas diferentes culturas existentes em nossa sociedade. A defesa da diversidade de ideias e culturas é significativamente importante não somente por manter os saberes e potenciais criativos que foram negados e silenciados através do processo de formação social, como também por que reúne valores coletivos que permitem se opor a padronização e homogeneização cultural sob o qual se sustenta o atual modelo de organização social, cada vez menos tolerante com as diversidades e que tem empoderado grupos políticos intolerantes e autoritários. Por esse motivo, em defesa de uma sociedade democrática, solidária e emancipada é que precisamos nos opor ao avanço dessa extrema direita global e eleger representantes políticos alinhados a um modelo democrático, que respeitem as diversidades e que estejam preparados para os desafios que o século XXI nos apresenta, tanto no que se refere a questão ambiental como na necessidade de inclusão e superação das diversas desigualdades sociais que causam dor e violência através de toda nossa história.

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