Crônica: O camaleão daltônico

Era uma vez, um réptil furta-cor que vivia na floresta em certo país do Sul global. Não distinguia cores – e que teimoso! Gritava “doutrinação cromática!” para despistar de suas exóticas “camuflagens”. E não é que o solipsista foi ficando famoso?

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Era uma vez um camaleãozinho que vivia na exuberante floresta tropical de um país ao sul do Equador. Era teimoso que só ele, e grande parte dessa teimosia estava ligada ao fato de que ele era, diferentemente dos demais camaleões, daltônico. Não sabia distinguir o verde do azul, e nem o vermelho do amarelo. E a bem da verdade é preciso dizer que, se ele estivesse diante de uma flor alaranjada, batia o pé dizendo que era roxa e não havia quem pudesse convencê-lo do contrário.

Não me entendam mal, daltonismo não é sinônimo de teimosia, e nem são os daltônicos todos um bando de teimosos. Isto era coisa desse camaleãozinho específico cuja história nos encarregamos aqui de contar. Vejam, o problema não era ele ser daltônico, o problema é que ele negava que era, se recusava a admitir que talvez pudesse ser, donde sua inquebrantável teimosia. No seu modo de ver as coisas, os outros, e não ele, é que sempre estavam errados, mesmo que os outros fossem, com frequência, quase todos os membros de seu bando.

O camaleãozinho não se abalava com isto e seguia com sua recusa em aceitar o que os outros lhe diziam, e, inclusive, fazia questão de tornar isto o traço mais saliente de sua identidade. Quando seu bando resolveu abrigar-se numa bananeira, por exemplo, onde moscas e mosquitos abundariam assim que os cachos começassem a apodrecer, o camaleãozinho se tingiu de rosa, aninhou-se entre as bananas e recusou-se a escutar os conselhos dos demais camaleões sobre o amarelo dever ser o Padrão de Tingimento (esse era o nome que os camaleões davam a sua decisão coletiva de mimetismo). Isto forçou o bando a procurar outro local, afinal, o teimoso camaleãozinho denunciava-lhes a posição e facilitava o trabalho de predadores.

A obstinação do camaleãozinho em contrariar os demais tornou-se folclórica, e houve até aqueles que chegaram a suspeitar de que ele talvez tivesse transcendido a percepção comum dos camaleões e que a veneranda instituição do Padrão de Tingimento era uma velharia ultrapassada. O que se revelou um erro prenhe de consequências infelizes, mas isso é outra história.

Os camaleões, assim como os seres humanos, tendem a buscar algum tipo de equilíbrio entre suas próprias disposições e as demandas que o mundo ao seu redor impõe, e isto acabou por ter implicações inesperadas no caso de nosso camaleãozinho teimoso. Como ele se especializou em discordar dos outros, ele não se preservava somente de eventuais erros que os outros camaleões cometessem, mas também dos muito mais frequentes acertos deles. Em outros termos, ele dispensava como se fossem a mesma coisa o equívoco e a lucidez – ou, como se diz naquele ditado humano, ele jogava fora o bebê junto com a água de banho.

Desse comportamento crescentemente arrogante até o autoengano a distância não era grande, e o camaleãozinho não demorou a dar esse passo crucial. Para manter sua irredutível atitude ante os demais, ele teve que começar a fazer manobras cada vez mais complexas (e estapafúrdias!), distorcendo a realidade para que ela não desse razão aos outros, mas sim a si próprio. Se os outros estavam certos, como quando estavam morando numa colônia de bromélias e mimetizaram o encarnado das flores, o camaleãozinho se viu forçado a defender coisas absurdas, como a adoção de um tom azul como Padrão de Tingimento adequado, algo que seu daltonismo acabou ajudando o a fazer, embora contradissesse a realidade de um modo ridículo. Seu daltonismo se tornara acessório à sua teimosia. Acabou que ele teve sorte, porque nesse dia só havia pássaros vegetarianos e cobras com fossetas loreais míopes pelas redondezas.

Como uma parte importante da existência dos camaleões é saber distinguir cores – sua condição de sobrevivência, aliás –, a vida do camaleãozinho daltônico não era nada fácil. A ajuda dos demais camaleões era crucial, mas a atitude adotada por ele o fazia não somente dispensar essa ajuda, como também o fazia estar mais disposto a ignorar a realidade do que dar o braço a torcer a outros que não ele mesmo. A lista de suas estripulias epistêmicas aumentava, acabando por aproximá-lo cada vez mais de um acachapante solipsismo: ele passou a dizer que tentavam doutriná-lo cromaticamente na escola, que as decisões miméticas coletivas eram um estratagema para roubá-lo das melhores camuflagens ou, então, parte de uma conspiração para evitar que ele ficasse com os melhores lugares para capturar insetos. Ele chegou mesmo a, dos píncaros de sua presunção, acusar a instituição do Padrão de Tingimento de ser uma violação de sua liberdade individual de tingir-se como bem lhe aprouvesse. Tudo isto enquanto berrava “Abaixo a tirania do Padrão de Tingimento! Pelo direito cromático individual e contra o Padrão de Tingimento! A culpa é do PT!”

O camaleãozinho até cunhou um termo para atacar aqueles que considerava seus inimigos: chamava-os “Pretalhas”. Como a sociedade dos camaleões tem as cores em alta conta, visto elas serem pedra angular de seu modo de vida, aquela que é a ausência ou a negação das cores, o preto, converteu-se muito naturalmente em símbolo de negatividade, se não mesmo um mau agouro. E também esse velho tabu o camaleãozinho mobilizou para sua campanha pessoal de prepotente ceticismo. Todas essas manobras tornaram a situação do camaleãozinho junto ao bando muito delicada, e ele foi pouco a pouco sendo ostracizado pelos demais, levando a cabo a separação que ele próprio vinha tão diligentemente promovendo. Em tempo: não foi tanto o bando, mas sim o próprio camaleãozinho quem fez isto, já entorpecido por seu cinismo filosófico, o qual deixaria o próprio Diógenes estupefato na sua rabugice. O lance decisivo, no entanto, não foi feito por nenhum destes, mas sim por uma gralha que sobrevoava as imediações e que, vendo um pontinho azul no meio das flores vermelhas de um flamboyant, não teve dificuldades de armar o rasante fatal. Vejam vocês, o camaleãozinho tinha acusado o bando de ser “todos uns obcecados por vermelho” e adotou, pobre presa de sua vaidade, o melhor curso que pôde determinar nessas desfavoráveis condições, não a de daltonismo involuntário, mas a de voluntária cegueira.

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