A sociedade dos empregos de merda

Como o capitalismo contemporâneo cria sem cessar ocupações inúteis, enquanto remunera muito mal as mais necessárias. Quais as alternativas? Garantia de trabalho? Ou Renda Cidadã Universal?

David Graeber, 2016
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David Graeber, entrevistado por Eric Allen Been, na Vice| Tradução: Antonio Martins

MAIS:
Há seis excelentes textos de David Graeber na biblioteca de Outras Palavras. Tratam das ocupações inúteis, da crise do capitalismo, do declínio da ciência econômica e da revolução curda em Kobane, onde há fortíssimo protagonismo de mulheres. Os artigos podem ser acessados aqui

Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.

Mas enquanto muitos de nós julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro, “Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre outras obras, Dívida: Os Primeiros 5000 anos e The Utopia of Rules [ainda sem edição em português] é professor de Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).

A “Vice” encontrou-se há pouco com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.

Em primeiro lugar, o que são empregos de merda e por que existem?

Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda. Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.

Uma série de fatores contribuiu para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons” trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?

Até mesmo os empregos de merda garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas, por que isso é ruim?

Mas a questão é: se a sociedade tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos? Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.

Em termos individuais, isso pode ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo? Mas não são.

As pessoas contratadas para tais trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um trabalho de verdade.

Segundo seu livro, a sociedade pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham

É interessante. Chamo de trabalho real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante, trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências, faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a eles.

Porém, os empregos oferecidos aos estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas, essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.

E os empregos tecnológicos ou na mídia. Seriam, também, de merda?

Certamente. Por meio do Twitter, pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para “demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas julgassem o trabalho importante.

Na mídia, há um exemplo interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê estas publicações.

A automação é vista, muitas vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?

Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.

Como antropólogo, sei perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.

Pergunto: por que as pessoas agem como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema? Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem, temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em um sistema eficiente.

Um dos pontos mais interessantes do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.

Foi uma das coisas que, pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não. Alguns eram totalmente mainstream.

Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.

Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.

Aparentemente, você é pouco favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir a garantia de renda cidadã.

Sim. Sou alguém que não quer criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.

Acredito que a garantia de trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos o que queremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?

Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.

Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.

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14 comentários para "A sociedade dos empregos de merda"

  1. Felipe Duran Souza disse:

    Excelente texto! Aponto apenas que há uma repetição de parágrafos, os dois últimos.

  2. josé máro ferraz disse:

    Sou grato ao Outras Palavras pelas boas leituras que indica e livros que tenho comprado e que me alfabetizam politicamente. Só múmias espirituais contestariam a realidade de viver o mundo um descompasso insustentável. Nada justifica que as mediocridades recebem maior gratidão da sociedade humana. Aí estão “Famosos” e “celebridades” esbanjando riqueza em troca da exposição de enormes bundas, peitos, chiricas, jogar futebola, cantar porcaria, para cúmulo da baixaria, no Yahoo, um sujeito risonho se gabava de ter a bunda apalpada onde quer que aparecesse. É famoso por isso. Enquanto isso, categorias de grande utilidade não raro passam necessidade. Infelizmente as pessoas como o doutor David morrem cedo e as bestas humanas demoram mais.

  3. AldecirTomazini disse:

    O parágrafo abaixo se repete em duas respostas, talvez seja um erro de edição, não?
    “Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.”

  4. Obrigada pela preciosa dica

  5. Marcelo Marques Costa disse:

    Então não era para os enfermeiros ganharem mais que um CEO? Já que poucos querem ser enfermeiros?

  6. RODRIGO MORENO MARQUES disse:

    Existe um grave equívoco na tradução da entrevista, inclusive no título. O termo ‘bullshit’ NÃO significa merda.

  7. Giovanni disse:

    Nunca vi tanta bobagem e distorção da realidade.
    Esse Senhor David Graeber está devendo muito em raciocínio logico…
    Uma pessoa sem produzir, dar a sua contra partida para a Sociedade e para o Governo, não tem como ser sustentada pelo Governo. Alguém vai trabalhar por ela e pagar impostos para sustentá-la…David Graeber deveria estudar mais, Ciências Exatas, Economia, Administração, Matemática. Pergunte a um americano, se ele quer ser enfermeiro ou um CEO de uma empresa.
    Mesmo que os salários sejam iguais…
    Poucos serão enfermeiros…

  8. Henrique Nicoletti disse:

    Eu estou fascinado com seu site e com suas postagens, descobri ele por acaso no google, prefiro não citar o que eu estava pesquisando. Esse texto, como eu queria que muitas pessoas lessem do início ao fim. Eu achei simplesmente fantástico como concordo com tudo o que tu disse e cita. Realmente, nossa sociedade atual está muito apta a gerar empregos fúteis e recompensar as vezes mais quem “faz nada” do que quem realmente faz e contribui com um trabalho útil à sociedade, a exemplo desse seu texto. Muito bom!

  9. hnicoletti disse:

    Eu estou fascinado com seu site e com suas postagens, descobri ele por acaso no google, prefiro não citar o que eu estava pesquisando. Esse texto, como eu queria que muitas pessoas lessem do início ao fim. Eu achei simplesmente fantástico como concordo com tudo o que tu disse e cita. Realmente, nossa sociedade atual está muito apta a gerar empregos fúteis e recompensar as vezes mais quem “faz nada” do que quem realmente faz e contribui com um trabalho útil à sociedade, a exemplo desse seu texto. Muito bom!

  10. ebolinha disse:

    o que me deixa mais triste é que os empregos que são realmente importantes para a sociedade e que fazem sentido são extremamente mal pagos, como professores e pesquisadores.

  11. Lídia disse:

    Excelente entrevista. Muito boa.

  12. gustavo_horta disse:

    Raquel Sousa e Carlos Cleto: Desembargadores do TRF-5 desnudam as ilegalidades das “vendas” de Pedro Parente e Ivan Monteiro
    > https://www.viomundo.com.br/denuncias/raquel-sousa-e-carlos-cleto-desembargadores-do-trf-5-desnudam-as-ilegalidades-das-vendas-de-pedro-parente-e-ivan-monteiro.html
    PUTA QUE O PARIU!
    ATÉ QUANDO VAMOS FICAR DE QUATRO NESTE BORDEL A TOMAR NO CU PASSIVAMENTE?
    ATÉ QUANDO? SERÁ QUE ESTAMOS GOSTANDO?
    PUTA QUE O PARIU!
    O pior de tudo, companheiros, é que eles os fazem as coisas à luz do dia, sem qualquer escrúpulo ou receio, com a certeza da impunidade.
    Para esclarecimentos da jogatina e ilegalidades que a quadrilha de plantão desse governo está disposta a fazer para dilapidar o patrimônio nacional.
    Por 2 a 1, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5 barrou nessa terça-feira (05/06) a venda da TAG – Transportadora Associada de Gás –, subsidiária da Petrobrás.
    A TAG controla a maior malha de dutos de gás e óleo do Brasil.
    Ela estava sendo vendida sem licitação por Pedro Parente e Ivan Monteiro para a empresa francesa Engie.
    O preço do negócio é um acinte: US$ 8 bilhões, para uma empresa que, em 2016, deu lucro líquido de R$ 7 bilhões.
    Ou seja, o ex e o atual presidente da Petrobrás (era o diretor financeiro) queriam vender a TAG por um valor inferior a quatro anos do seu lucro.
    *Pior era a parte oculta da negociata: a Petrobrás, após vender a TAG para a Engie, ia ter de alugar da Engie os mesmos dutos que vendeu, para transportar sua produção*.
    Tinha ainda que assinar uma cláusula de “ship-or-pay”.
    Ou seja, a Petrobrás teria que pagar para Engie o valor referente à máxima utilização dos dutos, mesmo quando não utilizasse toda a capacidade deles.
    Conclusão: uma negociata predatória que causaria a Petrobrás um prejuízo bilionário, que excederia tudo o que foi apurado na Operação Lava-Jato.
    *Outro aspecto terrível: deixaria todo o abastecimento do Norte e Nordeste do Brasil nas mãos de uma empresa privada*, que teria controle total da movimentação do gás natural utilizado nessas regiões.
    Felizmente, os votos dos desembargadores Edílson Nobre e Rubens de Mendonça Canuto restabeleceram o império da lei e barraram esse crime contra o Brasil.
    A venda está suspensa até que seja julgado o mérito.

  13. Ana Márcia Lutterbach Rodrigues disse:

    O filme Almacenados fala do trabalho inútil de hoje (tem na Netfreak)

  14. Ivonil Gonzalez Varela disse:

    TODOS OS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS SÃO NOSSOS EMPREGADOS E
    A MAIORIA SÃO COMO VOCÊS DISSERAM

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