Tiaraju D’Andrea: Periferia brasileira, além dos clichês

Nenhum projeto de transformação social se realizará se não for abraçado pela maioria de brasileiros que vive nas quebradas urbanas. Mas nelas predomina, hoje, um imenso ceticismo em relação à política. Um sociólogo dá pistas sobre come compreendê-lo

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Entrevista a Antonio Martins

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> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista com Tiaraju Pablo D’Andrea. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

Eles são 76,1% da população urbana do país, segundo um estudo de 2017 do IBGE. Somam cerca de 130 milhões de pessoas, o que os faria o 10º país mais populoso do planeta. Vivem menos (em casos extremos, 23 anos, numa mesma metrópole) – e em condições que vão do desconfortável ao dramático. A covid os castigou muito mais. Mas eles foram os únicos a desenvolver, para enfrentar a pandemia, redes de solidariedade autônomas. E se transformaram, nas últimas décadas, num criadouro de invenções culturais. Ainda assim, os moradores da periferia urbana brasileira tornaram-se, nas últimas décadas, um ente estranho, para aquilo que se convencionou chamar de “esquerda”. As imagens associadas a eles são as igrejas evangélicas, a violência policial, as milícias, o crime organizado, os bailes funk.

O sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea, da Unifesp, é um dos pesquisadores que têm se dedicado a ir além do estereótipo e estudar o que chama de “sujeitas e sujeitos periféricos”. Em 25/6, em entrevista a Outras Palavras no âmbito do projeto Resgate, Tiaraju expôs algo de suas pesquisas e reflexões. A periferia que emerge de sua fala não é mágica – mas histórica. Surgiu devido a condições concretas e se transformou junto com o país. Ajudou a livrá-lo da ditadura, nos anos 1970. Regrediu com ele, nas décadas de reprimarização e precarização. Arrisca-se a submergir, como todos nós, no túnel de retrocessos e fundamentalismos. Mas pode surgir de lá, deste “possível novo quilombo de Zumbi”, o impulso capaz de resgatar o Brasil.

Como realidade e conceito, periferia urbana é um fenômeno recente em termos históricos, argumenta Tiaraju. Data de um tipo particular de urbanização, acelerada e segregadora, iniciado nos anos 1940. A vida tornou-se insustentável nas regiões mais pobres, e fez do Brasil o país de maior migração interna no mundo, no século 20. As multidões que acorriam às metrópoles em formação – São Paulo e Rio, especialmente – eram empurradas para áreas cada vez mais distantes, desprovidas de serviços públicos e mobilidade. Quase sempre precisavam, para se estabelecer, entrar em choque com a natureza: matas, mangues, mananciais aquíferos.

A industrialização nascente, prossegue Tiaraju, transformou estas periferias, aos poucos, em dormitórios proletários. Elas crescem de modo explosivo por décadas. Seus moradores envolvem-se em lutas sociais. Nos anos 1970, junto com o sindicalismo operário, que organizava em especial os homens, brotam as lutas territoriais cujas protagonistas são mulheres. Elas querem saúde e creches; organizam-se nos clubes de mães e no movimento contra a carestia – ainda que as mulheres também lutem nas fábricas e os homens, no bairro. Os partidos de esquerda ocupam algum espaço. E quem mais atua, nos planos simbólico e político, é a igreja católica ligada à Teologia da Libertação.

Nesse período, a quebrada se pensava diferente. As associações que se organizam para reivindicar melhor infraestrutura são de moradores de bairro. Trabalhador, povo e popular são as principais categorias utilizadas. Periferia era um tema mais empregado pelas universidades e pelos telejornais.

A partir dos anos 1990, continua o sociólogo, um terremoto econômico e político sacode as franjas das metrópoles. A desindustrialização encolhe dramaticamente a classe operária e espalha o desemprego nas quebradas. A esquerda, tanto laica quanto religiosa, retrai-se. Os partidos progressistas deslocam os quadros mais importantes para as instituições: os governos municipais e estaduais, as assessorias parlamentares e, mais tarde, Brasília. A Teologia da Libertação é golpeada pela devastação conservadora que marca o papado de João Paulo II. No espaço aberto pelo desemprego, as quebradas transformam-se em espaços de violência sistemática. Começa a política de encarceramento em massa dos pobres: entre 1990 e 2019, a população carcerária crescerá 900%. Avançam a criminalidade e o genocídio da juventude negra.

É nessa fase, apontam os estudos de Tiaraju, que a quebrada começa a usar, para si mesma, o termo “periferia”. Ela o faz, diz o pesquisador, como “um grito desesperado para unir aqueles que estão sendo abandonados nas metrópoles; para expor o que a sociedade não quer enxergar”. O período é contraditório. As lutas anteriores esvaziam-se. Mas surgem, pela primeira vez, o orgulho periférico; e a consciência de que a população que vive às margens dos centros e bairros “nobres” não é inferior, mas injustiçada. Na construção desta singularidade, a cultura é central. E na produção artística destacam-se os Racionais MC’sem álbuns como RaioX Brasil (1993) e Sobrevivendo no Inferno (1997).

Esta periferia, que aprofunda uma consciência de si mesma, sofre, no entanto, as influências contraditórias que marcam o país a partir de então. Ela vota majoritariamente no lulismo, a partir da virada do século, mas abre terreno para as igrejas do individualismo quando dissolvem-se as antigas formas de reivindicação de direitos trabalhistas e os próprios governos de esquerda deixa de apostar na mobilização popular. Vê seu território, abandonado pelo Estado, sob o controle de grupos como o PCC, cujo papel é ambíguo: defesa contra a brutalidade do encarceramento em massa e, ao mesmo tempo, empresariamento militarizado. Assiste à emergência de uma miríade de coletivos culturais, que são ao mesmo tempo espaço de criatividade e forma autônoma de geração de renda.

A resultante é ambígua, faz questão de ressaltar Tiaraju. Do ponto de vista estritamente político, o sentimento que predomina é a descrença. A abstenção eleitoral beira os 40%. Com o apagamento dos grandes projetos de país, abre-se espaço para a política como troca de pequenos favores.

Como envolver esta nova periferia na luta pelo Resgate do país? Tiaraju não tem respostas prontas, mas segue estudando. Ele o faz desde que, originário das quebradas da Zona Leste, chegou à USP em 2002 e chocou-se com o “abismo” entre a universidade e as maiorias. Ressalta: dois valores éticos, que se destacam nas periferias, podem ser bases para um novo tempo de reflexões e mobilização. O primeiro é a pluralidade. As quebradas são, por sua própria natureza, territórios instáveis e em renovação constante. Acolhem gente de múltiplas origens, que nelas busca um pequeno espaço para erguer uma casa de blocos e se proteger de algum modo da aridez insensível da metrópole. Todos sabem que são precários e desta noção nasce o respeito pelo outro. Talvez a consciência de território seja, neste aspecto, uma nova forma de consciência de classe.

E, pelos mesmos motivos, a periferia cultiva a solidariedade. Tiaraju lembra das redes comunitárias surgidas para proteger as populações da Covid em locais como o Complexo da Maré, no Rio, ou Heliópolis, em São Paulo. O sociólogo pensa que não é algo relacionado apenas à pandemia, mas uma atitude – a criação incessante do Comum – que a quebrada adota como estratégia de sobrevivência.

Tiaraju pensa, contudo, que esta conquista cultural e ética não substitui a presença do Estado e, em especial, sua capacidade única de promover a redistribuição de riquezas entre toda a sociedade. A parcela da riqueza social que é drenada incessantemente das periferias para a elite não pode ser recomposta por meio de ações solidárias entre os próprios moradores da quebrada. Para isso, é preciso um Resgate muito mais potente…


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