Bolsonaro, o invencível?

Parte da esquerda acha que o capitão não perde espaço – e, ao contrário, cresce ainda mais – quando vem à luz a reunião ministerial monstruosa de 22/4. É um erro grave, que se baseia em saudosismo e leva à paralisia. Há um antídoto

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Por Antonio Martins

Quem perdeu a capacidade de formular projeto, e pensar mesmo a médio prazo, vive esperando uma bala de prata que destrua o adversário e encerre o pesadelo. Não há isso na fita da reunião ministerial de 22 de abril. Dada a ausência, muita gente de esquerda, em análises e conversas nas redes sociais, voltou a entrar em depressão. Bolsonaro estaria fortalecido. Seus apoiadores fascistas já preparariam uma contra-ofensiva. Moro teria parido um rato. Estas avaliações expressam almas feridas, mas não são capazes de analisar objetivamente os fatos – o que impede de projetar as ações seguintes.

O que fez a força de Bolsonaro não é a mimetização das táticas políticas de uma suposta “era Bannon” – mas a conjunção de certos fatores políticos particulares. Nesse aspecto, há semelhança com o fascismo. É preciso haver vasta desconfiança nas “elites políticas” aparentes. É necessário um suposto “inimigo do povo”. Mas é indispensável, também, uma amplíssima unidade, em torno do “líder”, dos atores que controlam os aparatos de poder. Parlamento, Judiciário, mídia e em especial o grande poder econômico – todos estes precisam cooperar, por meio de ações e omissões, para que as monstruosidades do projeto ultradireitista passem em branco. E mais: uma vez no poder, é preciso que o novo governante não se limite a manter a retórica que permitiu sua ascensão; mas que também ofereça, às multidões que o viram como salvador, algum conforto.

No cenário brasileiro atual, os dois primeiros fatores continuam presentes. Os xingamentos de Bolsonaro ao “establishment”, durante a reunião, ajudarão a coesionar sua tropa de choque, e até a deixar em dúvidas quem está se distanciando do capitão agora. E o antipetismo ainda é um filão que pode render. Mas as duas últimas condições estão se desfazendo rapidamente – e o vídeo ajudará a dissolvê-las. Mais ainda: devemos agir para acelerar esta desconstrução, se não quisermos nos limitar à posição de comentaristas de uma conjuntura tenebrosa.

Faz brutal diferença uma Rede Globo que, ao invés de passar o pano para os ataques do ex-capitão à democracia, dedica-se a desconstruir, com bom jornalismo, seus argumentos. Os noticiários da emissora demonstram ontem como é inconsistente a alegação de que Bolsonaro não quis intervir na PF para proteger seus filhos e “amigos”, procurando apenas garantir sua segurança pessoal. O trabalho foi feito com profundidade e didatismo. Repercutirá ao longo dos dias, mesmo entre os bolsonaristas – que, ao contrário do que às vezes julgamos, em nossas visões persecutórias, são pessoas deste mundo, imersas e sujeitas às pressões e contrapressões do diálogo social. Também é muito animador que o presidente da OAB – esta mesma instituição que apoiou abertamente o golpe de 2016 – tenha dado uma resposta à altura, curta e grossa, ao general Heleno. Ou que o ministro Celso Mello, do STF, não tenha até o momento se deixado intimidar. Ou que a grande rede conservadora, armada até há pouco no Judiciário, esteja rompida, ainda que seja por solidariedade a Sérgio Moro. Ou que, no Legislativo, o presidente seja agora obrigado a barganhar com o Centrão, o que abre enorme espaço para escancararmos a falsidade de seu discurso “anti-establishment”.

A brecha pode alargar-se ainda mais porque o quarto fator indispensável ao avanço da ultradireita – oferecer alguma dignidade material às maiorias – está cada vez mais distante. A reunião mostrou uma equipe espantosamente alienada da realidade. Enquanto o país afunda em pandemia e mortes, os ministros alimentam seus próprios delírios, vociferam contra a China (e o presidente refere-se a Donald Trump com o “tio”), tramam (e ocultam) a privatização do Banco do Brasil, planejam “aproveitar a oportunidade” para “passar a boiada” contra a Amazônia. Como destacou Fábio Malini, esta demonstração aberta de que são dementes perigosos não passará batida. Repercutirá nas redes sociais, na TV, nos jornais brasileiros e internacionais. E Bolsonaro não terá outro caminho, exceto continuar alimentando seu universo de seguidores que, segundo mostram as pesquisas, encolhe lenta mas nitidamente.

Que fazer, diante deste cenário? Há duas opções. Uma é lamentar que não veio a bala de prata; que nosso desejo de sair do pesadelo não se cumpriu; e que podemos, portanto, nos dedicar ao culto dos tempos felizes que passaram. É o que parece fazer Lula quando, em meio a uma conjuntura tormentosa, julga importante afastar-se de… Ciro Gomes e Marina Silva!

A outra opção é construir alternativas políticas – baseadas nos objetivos possíveis agora. Se estamos diante de uma ameaça fascista; se o presidente fala sem pudor em armar seus seguidores contra os adversários; se a peste alastra-se agora pelo interior do país e pelas periferias, não pode haver confusão sobre o alvo de nosso combate – nem dispersão de esforços. A meta agora é derrotar Bolsonaro; estreitar cada vez mais seu espaço de manobra; reduzir sua base de apoio; ao final, condená-lo por seus inúmeros crimes de responsabilidade e comuns, tirando-o do poder e levando-o à cadeia. Nesse percurso, ou ao menos em parte dele, os nossos antigos adversários podem ser aliados. Entre eles – é bom ser claro – estão a Rede Globo, o juiz Sérgio Moro e os governadores que, embora eleitos com campanha à direita, estiverem dispostos a combater a pandemia e a defender a democracia.

Significa que nossa luta política terá de ser limitada e moderada? E óbvio que não. Em defesa da vida das maiorias e do combate ao fascismo há um vastíssimo leque de ações a desencadear. Algumas, defensivas e cautelosas. Defender as finanças dos Estados e Municípios, diante dos ataques de Paulo Guedes, requer trabalhar em sintonia com governadores como Dória e Witzel. Desarmar as milícias políticas, que começaram a se formar em Brasília, exige recorrer a decisões do Judiciário e a ações da Polícia Militar. Mas outras iniciativas, tomadas em nome da Saúde e da democracia, podem ser mais radicais – e abrir caminho para recuperar terreno perdido.

Por exemplo: o prolongamento da pandemia (devida, em grande parte, à negligência do governo), precisa abrir, agora, um debate político sobre a extensão do Auxílio Emergencial de R$ 600 – e sua transformação numa Renda da Cidadania autêntica, equivalente a, ao menos, um salário mínimo. Há um imenso espaço para defender esta ideia; para apresentá-la, nas periferias, como alternativa ao dá ou desce, (trabalha ou morre) de Bolsonaro; para transformá-la num instrumento pedagógico que demonstre como é possível fazer a redistribuição de riquezas também por meios monetários. Nesta defesa – e em muitos outros pontos – é evidente, estaremos em campo oposto ao da Globo.

A proposta de obrigar os bancos a reestruturar compulsoriamente as dívidas dos inadimplentes – com juros muito próximos de zero e prazos compatíveis com a renda dos devedores – permite denunciar a oligarquia financeira. A proibição das demissões (já em vigor em países como a Argentina) permite dialogar com os trabalhadores da economia formal e os sindicatos. No novo cenário, há espaço inclusive para ações diretas mais radicais. Será ótimo se se multiplicarem, por exemplo, manifestações como a de torcedores corintianos em São Paulo, ou dos coletivos antifascistas em Porto Alegre, que se confrontaram cara a cara, nas ruas, com manifestantes direitistas.

A disputa política pode ser, sempre, um território de mobilização, criatividade e inovação. Mas desde que não seja feita com base no passado, nem no próprio ego. Resta saber se haverá disposição.

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6 comentários para "Bolsonaro, o invencível?"

  1. susana olmos disse:

    O Governo é manifestamente contra a Educação. Ele precisa manter a ignorância para perpetuar-se no poder.
    Um movimento para ensinar a ler (de verdade, não a pantomima de saber escrever o próprio nome) me parece fundamental para evoluirmos como país.
    Como podemos organizar um amplo resgate do hábito da leitura? Podemos formar grupos de leitura, sem distinção entre crianças e adultos, dedicando gratuitamente algumas horas por semana?

  2. M.A. disse:

    Gostaria de fazer um comentário chamando a atenção para o parágrafo que inicia com “A brecha pode alargar-se ainda mais…”. A reunião governamental (ou desgovernamental) evidencia claramente um aspecto que não tem sido destacado: a incompetência e a falta de conhecimento dos integrantes mais íntimos de Jair Messias, e dele próprio. É visível que eles constituem uma turminha de amigos que agem como se estivessem em uma mesa de bar e não no escritório central de um país que está sendo assolado pela maior epidemia dos dois últimos séculos, pelo menos. Quando Jair Messias mostra a intenção de armar a população, acredito que ele está muito mais se referindo a uma convulsão social partindo das classe mais desfavorecidas e massacradas pela Covid 19, do que em armar para um golpe de estado. Não tem um bolsonarista que empunharia uma arma para defendee uma revolta armada no país. Não são ativistas de verdade. Serão os primeiros a se esconder. Durante a ditadura militar, cidadãos da direita ou ultra direita raramente empunharam armas para combater os “comunsitas”. E não o farão agora. Se houver golpe, o embate necessariamente terá os militares como peões.

  3. Del disse:

    Bom dia!

    Obrigado, Antônio, pelo belo texto. Irei compartilhá-lo por dar alento e força para enfrentar não só uma pandemia, como também um pandemônio.

    Boa semana!

  4. José Virgílio Leal de Figueiredo disse:

    Perfeita análise!

  5. José Virgílio Leal de Figueiredo disse:

    Perfeito

  6. Mário Júnior disse:

    O que esse quadro do rockeiro argentino Charly Garcia tem a ver?

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